O Guerreiro de Damasco
Décimo Primeiro Conto Heróico:
O Guerreiro de Damasco
O Antigo Califa
Península Arábica, Damasco, ano do nosso Senhor de 1567.
Todos conhecem a história do grande Califa Hamam iben El-Hashid, o garoto pobre que cresceu nas ruas de Damasco no início do século, vendo o melhor e o pior que o seu país tinha a oferecer. Em como ele viu as ameaças européias tentando marchar em sua direção contra a expansão Otomana, juntando-se às forças de combate contra o inimigo. E como um general, líder direto sob as ordens de Solimão, o Magnífico, viu a sua coragem, inteligência e sabedoria por trás daquele ímpeto jovial. Ele foi um dos melhores guerreiros do seu exército, um exército formado pelos melhores. O general tornar-se-ia Califa, e Hamam o seu ajudador.
Porém tudo deu errado.
– Morte aos bárbaros! – era a frase proferida naquela época pelos húngaros.
Apesar do primeiro Exército de Ataque, conhecido por Rumélios, e comandada por este general, sair-se bem, abrindo um caminho vitorioso para os exércitos seguintes, encerrando o destino dos seus adversários em sangue e fogo em apenas duas horas, apesar disso, foi repelido, levando a todos, inclusive o general, o futuro Califa de Damasco, à morte. No entanto, este não deixou de incumbir um homem para carregar o peso, este homem era Hamam iben El-Hashid, o único preparado até então, fosse pelo seu talento nato, fosse pelos ensinos do general. Era uma tarefa impossível de cumprir.
Mas Hamam fez isso parecer fácil, embora nunca tenha sido.
Ele lutava por aquilo em que acreditava, sendo um perfeito representante dos ensinamentos de Maomé aqui na terra e sempre levando o povo para mais perto de Alá. Ou por aquilo que ele acreditava ou por aquilo que deveria ser.
Mas algo de estranho sobreveio: acusaram-no dele ter se tornado um cristão. Acusaram-no de abandonar a sua fé, mas, infelizmente, era o que parecia. Ele fora acusado formalmente por causa de um pensamento que proferira uma vez em um devaneio solto ao ar em frente aos demais. O antigo Califa não aceitou tal acusação, apesar das aparências. Muitos se levantaram a favor, outros, contra. Muitos debates, várias disputas. Houve um grave conflito feroz, muito sangue foraa derramado em vão, porém Hamam, o Califa de Damasco, se rendeu à forças militares e religiosas. O violento combate terminou. Após a batalha mais improvável que qualquer habitante de Damasco já viu, o Califa rasgou suas roupas e vestes em sinal de dor e miséria, jogando cinzas para o alto, e desistiu da resistência.
Os homens que o defendiam, incluindo a mim, foram poupados e perdoados, talvez tenham entendido que não podíamos matar um homem com provas infundadas, nossa posição frente à luta era legítima. Por sinal, eu serei o próximo Califa, sinal que também entendem que não terão outra pessoa justa para ocupar o cargo.
Por fim, o grande conflito e a histeria que tiveram início com uma falsa acusação, e que exigiu explicações que o califa não poderia dar, se encaminharam para um tipo de final. No entanto, se a prisão de Hamam trará paz ou restabelecimento a este povo, ou até mesmo à nação, é uma questão que terei de enfrentar com sabedoria e não posso responder.
Aguardei nos degraus do prédio onde o homem que mais admirei seria julgado por suas ações. Deveria ser eu a pessoa a presidir o julgamento, porém o Sultão enviou seus próprios julgadores, justo para que fossem imparciais, e ele tivesse um julgamento claro.
A praça em frente ao prédio estava vazia pela manhã, mas os habitantes rederam-se ao acontecimento, mostrando-se lotada pela tarde. Mesmo com a acusação de ser um maldito cristão, o antigo califa ainda permanecia como um ícone, muitos não concordavam com o que estava acontecendo. A multidão se aglomerava e continuava a crescer.
– Isso é um pesadelo. – comentou um dos guerreiros ao meu lado, seu nome era Omã.
– Apenas se mantenha em posição, Omã. – respondi. – É um plano arriscado, mas vai funcionar.
– Melhor dar certo. – respondeu ele. – Eu não vou ver esse homem sofrendo um julgamento injusto. Não ele...
Quantos anos nós tínhamos quando tivemos as primeiras notícias sobre Hamam pela primeira vez? Omã deveria ter uns sete, eu, uns três anos. Parece que tivemos notícias dele por toda a nossa vida. Anos mais tarde, viemos a servi-lo, embebidos pelas suas histórias, dominados por sua postura e sabedoria. Também éramos guerreiros, ele, estranhamente, precisava de tais homens, mas os seus ensinamentos eram melhores do que qualquer paga.
Seria difícil entender se não o tivesse visto cara-a-cara, assistindo-o em suas atitudes e ações, foi revelador. E entendi porque aquele general daquela “velha história conhecida” o havia escolhido. Porque ainda que fosse um antigo soldado, quase no auge de sua decrepitude, podia-se quase sentir a bondade por trás daqueles olhos endurecidos pela guerra e pela idade. Ele havia lutado nos piores dias do século e ainda assim era o homem mais decente que se poderia encontrar.
– Onde está Abbas? – era Omã.
– Abbas? – respondi procurando com os olhos. – Sim, eu posso vê-lo, está embrenhado em meio ao povo da praça.
– Fiquemos prontos para seguir em sua direção. – concluiu. – Isso pode ficar complicado.
– Sem problemas, Omã, apenas esteja pronto quando ele chegar ao nosso alcance.
– Eles desconfiam de nós, Abd.
– Desconfiem à vontade. Eu...
Não pude continuar.
– Inferno...
Eles haviam chegado. E estavam exibindo o antigo califa Hamam como um delinqüente qualquer, como se esquecessem tudo que ele havia feito por nós. Como poderiam esquecer? Antes de conhecê-lo, aquele homem já era uma lenda. Sua idade, mesmo nos dias de hoje, não impedia ninguém de se impressionar com a sua postura e a sua sabedoria. Demorei semanas para me acostumar com a ideia de ser considerado por ele como um igual. Mas, antes que eu percebesse, éramos irmãos. Eu sabia que nunca teria aquela benevolência, aquela dignidade sob pressão, ou aquela força em face ao horror.
Mas todos se esqueceram disso.
O antigo califa andou cercado de soldados, levando-o a ferros. Isto estava errado. Só conseguia ver a multidão se alvoroçando. Mas já estava tudo preparado: quando o califa colocasse os pés sobre aqueles degraus, eu cuidaria dos homens que o prendiam e Omã levaria o velho califa pelo caminho aberto no meio da multidão por Abbas. Eu retardaria todos os outros adversários com a minha vida, pois eu, Abd El-Ramahn, não deixaria que o maior homem que já conheci em minha vida fosse morto aqui.
Faltava pouco.
Preparei a minha espada, fitei cada soldado. Todos desconfiavam de nossas ações, é claro que haviam mais homens à postos para nos deter se fizéssemos alguma besteira, não sabiam eles como estavam certos. Primeiro, feriria o mais próximo a mim, depois avançaria contra o que estava próximo de Hamam. Minha mente ficou silenciosa, concentrada. Cada passo ecoou em meus ouvidos. Apenas mais um passo.
– Não. – disse o califa jogando-se em minha direção. – Proteja-se!
Não entendi o que estava acontecendo até o momento em que ouvi um estampido ao longe e vi um fio de sangue saltar das costas do homem que viria proteger. Ele jogou-se na frente da linha de tiro que estava destinada a mim. Como ele percebeu aquele disparo? Quem atirou sabia que ele havia percebido, por isso mirou em mim. Sabia que Hamam me protegeria e não erraria o alvo. Eu ajudei na morte do meu maior amigo!
Todos se alvoroçaram mais uma vez, vários saíram correndo.
Os soldados abandonaram o corpo frágil e moribundo do califa nos degraus da escada. Omã correu para ajudá-lo.
– Alguém! – dizia ele. – Alguém me ajude aqui!
Era em vão.
– O povo... – foram essas as últimas palavras daquele homem. – Cuide do povo...
Meus olhos encheram-se de lágrimas. Procurei por Abbas, este já corria em direção de algo, só podia ser de quem havia dado o disparo, talvez o maldito que acusara em falso aquele que considerava o meu irmão. Parti em disparada. Tentei alcançá-lo tentando imaginar quem seria o maldito. Apenas o vi saltando como uma fera para o alto de um casa e se jogando para dentro de uma janela, o atirador só poderia ter uma boa visão de toda a praça dali.
O alcancei alguns segundos depois. Abbas procurava com os olhos, mas parecia não encontrar mais nenhum indício do maldito assassino.
– Fale, Abbas! – disse ainda de forma afoita.
– O local estava vazio, – respondeu. – mas é certo que foi daqui que veio o disparo!
– Então, ele não está longe!
Olhamos em volta, percebemos uma corda jogada ao chão. Fitamos rapidamente uma outra abertura que dava entrada para o sol mais acima, feita no teto, com a ponta da outra corda cortada. Ele só poderia ter fugido por ali.
– Ajude-me a subir. – falei.
Abbas deu-me apoio, consegui tocar com as pontas dos dedos. Abbas forneceu-me impulso enquanto saltava e me esticava. Suspendi-me no ar, apesar dos meus quarenta anos, ainda tinha bastante força. Saí no teto daquela casa e fitei a imensidão de telhados. Consegui captar o rastro do possível assassino. Não pensei duas vezes. Abbas queria arremessar a corda para que eu a prendesse, mas isso levaria tempo, se conteve. Partir no encalço do maldito.
Captei alguém fugindo por sobre os telhados já há uma boa distância. Puxei uma arma de fogo, era humanamente impossível acertá-lo, mas não estava disposto a questionar isso, o disparo sequer iria causar algum ferimento, mas queria atrasá-lo. Mirei. Atirei.
Só fui capaz de ver um corpo caindo, foi um milagre.
Não respirei, larguei a arma e segui em sua direção, agora armado de minha espada. Quando alcancei o local onde ele havia caído, ele não estava lá, mas havia um rastro de sangue. O segui. Só fui capaz de ouvir, ao mesmo tempo, o som de um estampido de uma arma de fogo e o zunido do disparo coçando o meu cabelo. Agradeci por mais esse milagre. Avancei contra ele. A primeira espadada arrancou-lhe a mão, era o mínimo que ele merecia. A segunda cortou-lhe o peito.
Estava pronto a questioná-lo quem o havia mandado, mas não foi necessário. Ao longe, percebi um grupo de cavaleiros, disparando em desembalada carreira, deixando o seu peão para trás.
O atirador já estava indefeso com o disparo que levara, com o golpe de espada, ficou inútil. Abbas chegou em seguida. Deixei-o com ele e segui para tentar alcançar os seus comparsas, mas foi em vão. Corri por um bom tempo, mas era impossível alcançá-los. Retornei frustrado.
Quando me acheguei ao local onde havia deixado o atirador, o maldito estava morto, mas Abbas havia conseguido arrancar alguma informação.
O mandante do crime era um Paxá, um maldito governador local, seu nome era Raed. Era um homem desprezível que tinha divergências com o antigo Califa. O homem queria escravizar o povo através da oratória e influência, e sabia que o Hamam tinha as palavras certas, mas se recusou a fazê-lo. Então a “solução” seria retirá-lo do poder. Daí os malditos boatos.
Quando segui para o seu palácio, ele não estava mais lá. Não fui bem recebido, tentaram me prender, mas isso não era problema, dexei-os com um monte corpos amontoados, porém não os matei.
– Onde ele está? – perguntei a um dos moribundos enquanto afundava a minha mão no rosto do infeliz. – Onde está o Paxá Raed?
O desgraçado cuspia sangue.
– Eu sei que foi ele que agiu por detrás de tudo! – insistia.
– Você nunca trará o seu senhor de volta. – disse.
Meu golpe seguinte o deixou inconsciente.
Era fato, eu não sabia aonde encontrar o maldito que armou contra o antigo califa. Foi quando ouvi uma risada desdenhosa. Observei quem era o moribundo que ainda se prestava a rir. Aproximei-me.
– Você nunca o encontrará. – disse.
Abaixei-me.
– Para onde ele foi?
Encostei a lâmina de minha cimitarra em sua fronte., ele continuava a rir.
– Você é o próximo da lista. – continuou ele. – Vão matá-lo antes do dia se levantar amanhã de manhã.
Corri lentamente a espada, um fio de sangue correu para o seu olho.
– Onde?
A risada parou.
– Você nunca irá encontrá-lo. Ele sabia que você viria, só retornará quando você estiver morto.
Pressionei a espada.
– Onde?
– Está longe agora. Ele se refugiou em um país europeu.
O desgraçado começou a falar enquanto eu guardava cada informação. O Paxá Raed havia partido para se esconder como um mercador em uma cidade chamada de Eurico, no reino de Portugal. O desgraçado era tão covarde que contratou homens para me eliminar, sabendo que eu vingaria a morte de Hamam.
Pois saiba, Raed, que agora partirei em teu encalço. Seguirei para a Europa em busca de ti, o assassino de meu antigo amigo. Acusaram-no de ser cristão apenas por motivos egoístas, pessoais e baixos. Apegaram-se a um único pensamento para que este causasse o alvoroço que causou. Jogaram aos quatro ventos, difamando a sua imagem, distorcendo-a. jogaram-no contra as autoridades, contra homens de igual valor. Por isso ele demonstrou um valor ainda maior, recusando-se a lutar contra homens tão honrados quanto ele, demonstrando a sua miséria e pensando no povo. Mas, apesar dos pesares, este pensamento do meu antigo senhor era carregado de lógica. Ninguém diz que Jesus Cristo era um falso mestre, um louco, perdido em devaneios, ou, sequer, um mentiroso, muito pelo contrário. Mas Ele afirmava ser o filho de Deus, algo que eu sequer seria capaz de acreditar. Então o antigo califa seguia apenas uma lógica: se este profeta de fato fosse sincero, porém sequer tivesse a natureza que dizia ter, então era louco e todos os seus ensinamentos e citações em qualquer livro de qualquer cerne deveriam ser riscados, e isso não batia com a lógica. Se este profeta alegasse ser quem fosse, mas ainda estivesse mentindo, todos os seus ensinamentos não teriam valor algum, o que também não era verdade. Então, se este profeta não era louco, nem mentiroso e estava sendo sincero, então Ele falava a verdade e agia como o bom mestre, significando que Ele, verdadeiramente, era o filho de Deus.
E foi por esse pensamento que mataram um grande homem.
Partirei para Europa e pensarei nessa lógica enquanto caço o assassino do antigo califa.
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Boa Leitura!
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"Contos da Era Heróica" são contos anteriores à trilogia "Os Confins da Terra", clareando dessa forma um pouco mais o contexto da história e onde cada personagem se encaixa.
Neste caso, vimos um pouco mais das aventuras vividas por Abd El-Ramahn antes dele se tornar califa.
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