O Sonho do Pântano
(do universo de Aera, o mundo dos Deuses Ventos)
O pântano que nasce na face leste da Cordilheira Ete’d era muito extenso e muito antigo. Cobria facilmente centenas de estádios de uma ponta à outra, o que garantiria vários dias de caminhada por entre árvores retorcidas, terreno lamacento e toda sorte de insetos. Por isso muitos preferiam contorná-lo, se desejassem chegar ao outro lado, do que forçar passagem por seus brejais. E também por isso, seus habitantes ficaram por tanto tempo em paz. As fadas o chamavam de Tarlamo, e os outros seres aprenderam a chamá-lo assim.
Tarlamo tinha um sonho. Toda noite, quando suas árvores dormiam e seus animais repousavam, quando o único som era o dos sapos e dos insetos, o pântano suspirava um suspiro inaudível, olhava para o Céu, adormecia. E sonhava com os ares, com as nuvens e as ilhas voadoras do leste. Sonhava que podia voar, sim, galgar os ares, que podia ver a Cordilheira de cima, não mais de baixo, e sentir o vento forte das grandes altitudes. Sonhava com o ar, este sonho tão distante para um pântano de terra.
Mas, dizem, certa noite o vento ouviu seu sonho. Carregou-o em forma de prece ao grande Éolo Pai de Todos, que sempre dorme, e o sussurrou ao seu ouvido. Dormindo, o vento-pai gostou do que ouviu.
Estava decidido.
Naquela mesma noite, uma noite escura de lua nova, o sonho de Tarlamo nasceu. Começou devagar, como todo sonho que começa, apenas uma vontade, pequeno, para então ganhar força, ganhar tamanho, ganhar propósito. Naquela noite nasceu o sonho de Tarlamo, um dragão feito do pântano. Todos os seus habitantes ouviram o rugido de felicidade de Tarlamo-dragão, que nascia de seu próprio sonho, que era pântano e criatura. Feliz, Tarlamo estendeu as asas recém-nascidas, e voou por toda a noite.
E então, quando as fadas-aurora desfraldaram suas asas alaranjadas no horizonte, ele pousou no meio de um grande lago e adormeceu. Pedra, raiz, terra e folha se desfizeram, retornando ao solo. Tarlamo-pântano acordou.
As fadas-libélulas comentaram a novidade da noite aos homens dos brejais, que passaram a prestar homenagem ao dragão de musgo e raiz. Ergueram grandes totens escuros, esculpidos em braúna-do-pântano, e os espalharam por toda a extensão de Tarlamo. Fadas e animais prestavam reverência se viam tais totens, e não raro depositavam oferendas das mais variadas. Toda noite o pântano dormia, seu sonho nascia, visitava os totens e guardava seus presentes, fundo na lama. Tarlamo tornou-se guardião de si mesmo e de seus habitantes, todas as noites, até que nascesse o dia, quando acordava e a vida recomeçava.
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– Pelo Vento Sul! – exclamou Ialarana, batendo rápido as asas com o susto. Seus olhos multifacetados refletiam, ao longe, dezenas de casas-árvore recém-plantadas, sobre as colinas da fronteira sul do pântano.
Pousou sobre uma folha de azaléia e coçou o pequeno queixo. Sem dúvida, homens de além-pântano se aproximavam. Se de passagem ou moradia fixa, não sabia dizer, mas era uma informação importante para o conselho da Cidade do Lago.
Uma aranha se moveu sorrateira pelo caule do arbusto, por trás da pequena fada-libélula. Saltou para frente, segundos depois de Ialarana ganhar o ar. Seus olhos viam em todas as direções. Mostrou a língua para a predadora, e se dirigiu para casa.
A Cidade do Lago era um aglomerado de arbustos perto de um pequeno córrego que empoçava nas pedras. As fadas-libélula trançavam folhas secas nos galhos dessas plantas, construindo casulos que se espalhavam por toda a margem do laguinho. Na água, fadas-jovens, desprovidas de asas, caçavam peixes que levavam para suas casas sobre as pedras da margem. Num canto distante, afastado do lago e escondido por uma pequena depressão, havia um totem negro do tamanho de um braço humano, que exibia o dragão do pântano. Um presente dos homens dos brejais.
Logo quando chegou, Ialarana se dirigiu ao arbusto mais alto da cidade, onde estava o Casulo do Conselho. Pousou sobre a porta de entrada, ajeitou a roupa de folhas verdes e entrou. Um macho a saudou.
– Ialarana, que os ventos a abençoem – suas asas eram esbranquiçadas, sinal de idade entre seu povo.
– Que a Brisa da Graça sobre ti, Faenaú. Tenho notícias para o Conselho.
O ancião coçou o queixo intrigado. Ouviu o que ela tinha a dizer, e decidiu reunir os demais.
A questão foi amplamente debatida durante todo o dia; a vinda de homens de além-pântano era preocupante. Os homens dos brejais viviam bem entre as fadas, mas, salvo raros viajantes que passavam por Tarlamo, nada sabiam dos homens de fora. Batedores foram designados para vigiá-los, Ialarana entre eles, e, dia após dia, traziam a notícia do avanço dos homens. Avançavam algumas casas-árvores por semana, deixando secar as primeiras e plantando outras. Estudavam o terreno conforme avançavam, até pararem no limite dos brejos. Que queriam os forasteiros?
As fadas-de-lama tranqüilizavam os outros. Os lamaçais de Tarlamo eram por demais instáveis, não permitem que casas-árvores vinguem. Era por isso, disseram, que os homens dos brejais construíam suas casas sobre as pedras do pântano. E realmente os forasteiros não avançaram mais.
E então a surpresa. Vindas de longe, chegaram ao acampamento máquinas estranhas, provavelmente alimentadas por magia. Os homens enterraram na lama suas grandes trombas de metal flexível, e vomitaram fumaça negra no ar. Fizeram isso por dois ou três dias, e então as desligaram. Plantaram então casas-árvore onde antes não era possível, e o acampamento continuou a avançar. Nenhuma notícia das fadas-de-lama.
Ialarana não entendia o que estava acontecendo, mas não gostava da fumaça escura dos homens de além-pântano. Que queriam eles? Fixar moradia em Tarlamo? E o que faziam ao brejo, para poderem plantar suas casas? Avançavam e avançavam, até que alcançaram as primeiras árvores. Quando as botaram abaixo, tudo ficou claro. Abriam caminho por Tarlamo.
Assustada, Ialarana voou para o Casulo do Conselho. Tinha que avisá-los! No caminho, mal reparou um enorme saco de tecido – enorme para o seu povo – cheio de sementes, que várias fadas-libélulas descarregavam. Urgente, encontrou Faenaú. Ele foi categórico:
– A Brisa da Fortuna nos trouxe os forasteiros, pequena. Ontem fomos ter com seus líderes, e não apenas nós, mas membros dos homens dos brejais, das moscafadas, do povo-sáurio e alguns outros. Os forasteiros vieram atravessar Tarlamo, e criar uma estrada permanente que ligue o norte e o sul. São ricos, Ialarana. Prometeram-nos paz, e pagaram a cada povo o seu tesouro, para que colaborássemos. Viu o saco de sementes na beira do lago? É um saco com mais de duzentas sementes de flor-de-mel! Com elas, criaremos hortas para atrair abelhas, teremos mantimentos garantidos por mais de cinco anos!
A Cidade estaria preservada, mas, e o pântano? Ialarana estava confusa. Assustava-lhe a idéia de ver seu lar dividido em dois. Deixou Faenaú sem dizer palavra.
Vagueou o dia inteiro, evitando se aproximar das estranhas máquinas e suas fumaças mal-cheirosas. Não caçou nem comeu nada aquele dia, estava sem ânimo. O sol se escondeu atrás de Ete’d, a grande cordilheira. Ela voou para perto das árvores derrubadas pelos forasteiros, pousou sobre uma folha próxima do chão e suspirou resignada. Foi quando ouviu uma voz.
Seus olhos vasculharam em centésimos de segundos a região ao redor, mas mesmo seus potentes olhos foram enganados pela escuridão. Demorou a entender que quem falava era um pedaço de barro, preso embaixo do tronco de árvore. Uma fada-de-lama.
– Ei, ei! Ei você, pode me ouvir?
As fadas-de-lama são muito maiores do que uma fada-libélula, mas ainda assim atingem apenas trinta centímetros de altura. São feitas inteiramente de barro muito mole, que dança como se fosse escorrer, de forma quase humana e olhos feitos de sementes escuras. Mas o corpo dela estava quebradiço, rígido, isso não podia significar boa coisa. E estava presa.
– Eu, aqui embaixo – disse, quase num sussurro. Era uma fêmea.
– Eu te vi, sim. Está presa?
– É, estou!... Não posso sair. Ouça...
– Espere aqui, vou buscar ajuda. Sou muito pequena para te carregar.
– Não! – ela ergueu a mão, chamando-a de volta – Não, não vá. Ouça, pequena, não tenho muito tempo. Meu corpo começou a endurecer, não há volta. Já estou há um dia sem água, um dia! É o meu fim... Pelo menos me ouça: tenho que avisar o grande dragão! Meu povo... eu preciso avisá-lo!
– Avisar o que, pelos ventos? E onde está o resto dos seus?
Os olhos escuros derramaram uma gota de lama.
– Eu sou a última. A última das fadas-de-lama dessa fronteira. Todos os demais secaram.
– Como?! – Ialarana elevou os quatro braços em surpresa. Realmente, fazia tempo que não via ninguém do povo de lama. Estavam... mortos?!
– Os forasteiros – sussurrou a outra – estão drenando os brejos. Todo o meu povo secou, encontrei seus corpos... Eu não estava lá quando aconteceu, não estava, quiseram os ventos me poupar para que pudesse avisar o grande Tarlamo... Eu encontrei seus corpos secos quando essa maldita árvore me prendeu, entre a madeira e o solo duro. Não posso me mexer, não posso nadar. Você tem que avisar ao grande dragão! Os forasteiros destruíram o meu povo!
– Mortos... – soluçou a pequena. Tinha amigos entre o povo de lama, e sentia o peso da notícia – Eu... Sim, avisarei! Mas, e você? O que posso fazer?
– Avisá-lo, apenas isso, pequena. Minha água está acabando. Antes que a lua nasça serei apenas um monte de terra. Prometa-me, por Noto, que avisará o grande dragão.
– Prometo por todos os ventos – respondeu a fada-libélula.
– Que a brisa da Graça te abençoe – ela sorriu um riso triste, e suspirou de alívio – Agora, vai, vai! Já é quase noite, o pântano já dorme, logo dragão nascerá. Vai!
Ialarana deixou a pobre fada para trás, apressada. Não havia lágrimas em seus olhos – o seu povo não podia chorar – mas se pudesse teria encharcado seu pequeno vestido. Suas asas batiam velozes, dirigia-se ao totem da Cidade do Lago. Todas as noites Tarlamo-dragão visita os totens do pântano, precisava encontrá-lo antes que fosse embora!
Ela sabia, sentira alguma coisa errada na fumaça negra das máquinas. Era a energia... As máquinas cuspiam a vida do povo de lama no ar. Piscou os olhos como se pudesse chorar. Lembrou de Faenaú, e do acordo selado por seu povo. Não podiam intervir, não podiam quebrar a lei. Mas Tarlamo podia, era seu dever proteger seus habitantes. Era o guardião de todos.
Voou veloz para a Cidade do Lago. O saco de sementes ainda estava lá, quase vazio agora, apenas vigiado por alguns guardiões. Ialarana voou para o totem e pousou diante da escultura, diante das oferendas.
Esperou.
Esperou muito, até a Lua atingir o zênite, mas nada de Tarlamo. Ela sentia sono... A falta de comida cobrava seu preço. Sentiu o pequeno estômago roncar, e pensou em pegar comida em casa. Mas... e se Tarlamo surgisse enquanto ela estava longe? Não, tinha que esperar. Logo ele estaria ali, logo. E a Lua descia o céu.
Um rufar pesado de asas.
Seu coração acelerou, ela nunca vira o grande dragão, conhecido apenas das histórias dos mais velhos. Temerosa, escondeu-se atrás de um arbusto. Logo uma grande sombra surgiu dos céus, balançando árvores e folhas, e pousou em frente ao totem. O grande dragão.
Seus músculos eram feitos de raízes e terra úmida, por vezes coberta de musgo jovem. Suas grandes garras – e eram imensas para Ialarana – eram de pedra escura e madeira afiada. Afundaram no solo mole quando Tarlamo pousou, fazendo parecer que seu corpo inteiro brotava do chão. Sua cabeça era larga, no alto de um grande pescoço de cavalo, e larga também era sua cauda, embora curta. Seus olhos eram negros como os lagos do pântano, e suas asas eram feitas de folhas sobrepostas e musgo. Pequenos arbustos nasciam de suas costas. Mesmo quando dragão, Tarlamo não deixava de ser pântano. Aproximou-se das oferendas, mas não as recolheu.
– Ialarana, pequena fada, por que se esconde? – disse o dragão.
Surpresa, ela saiu poucos passos de seu esconderijo. Tarlamo-dragão era enorme.
– E-eu tenho algo pra falar, senhor, algo...
– Calma pequena, não se assuste – a voz de Tarlamo era grave, e devagar como a água do pântano – Eu lhe conheço desde você que nasceu, eu sou o seu lar. Calma. Os arbustos me contaram onde você se escondeu. E não me chame de senhor, você mora em mim.
– Senh... – ela recomeçou, batendo rápido as quatro asas – Grande Tarlamo, tenho algo urgente para lhe contar.
– Sobre o povo de lama da fronteira Sul? – interrompeu ele – Perdi consciência do que acontece naquela fronteira, e há algum tempo não os vejo – Ele aproximou os grandes olhos da pequena fada-libélula. Havia um brilho distante naquelas pupilas escuras, quais vaga-lumes perdidos na imensidão da noite. Aproximou-se dela e falou devagar – Lembro de tê-la visto conversando com uma fada-de-lama, Kkakkatta, antes de dormir. O que conversaram? Onde estão os outros?
Ialarana tremeu diante da notícia que deveria dar. Mas lembrou dos seus amigos, perdidos nos brejais drenados. Seus olhos tremeram.
– Kkakkatta era a última fada-de-lama da fronteira sul. Os forasteiros estão drenando os brejos para abrir caminho pelo pântano! O povo de lama... Estão todos mortos, grande dragão. Todos mortos!
Os olhos negros arregalaram-se em surpresa, e então de ira. Tarlamo-dragão ergueu a cabeça e rugiu alto, rugiu para todo o pântano ouvir. O chão tremeu, as árvores acordaram, pássaros revoaram assustados, insetos fugiram de seus lares, fadas despertaram surpresas. Nas tribos dos brejais, os homens levantaram de susto e aumentaram as oferendas de seus grandes totens. No acampamento, os homens saíram de suas casas-árvore, preocupados. O coração de Ialarana disparou cem vezes a velocidade usual, e o medo a paralisou.
– Invasores! – rugiu ele – Invasores que ousam atacar meus habitantes! Foi por isso, por isso perdi a consciência da fronteira, meus brejos estão secos, o povo dali está morto. Basta. Basta! Tarlamo vai cobrar o seu preço. Pequena! – voltou-se para Ialarana, que a muito custo não saíra voando dali – Avisa seu povo. Eu sei da barganha que fizeram com os homens de fora, sei que muitos povos deram sua palavra em juramento. Eles traíram o povo de lama?
– Eles... não, claro que não! – sua voz era um farfalhar de folhas contra o trovão da voz de Tarlamo – Tenho certeza de que eles não sabiam disso, certeza!
O dragão fechou os grandes olhos, inspirou fundo e o vento agitou até as árvores mais grossas.
– Os povos juraram pelos ventos sagrados que não iriam interferir no projeto dos homens, eu os ouvi durante o dia. Não posso pedir que quebrem um juramento sagrado. Se não traíram o povo de lama, o fizeram na ignorância. Então... só Tarlamo pode intervir. Pequena... o pântano é grato pelo aviso.
Ele estendeu as longas asas, que mal couberam entre as árvores, e levantou vôo. A pressão do vento quase arremessou Ialarana pelos ares. Quando o dragão sumiu no céu da noite, ela esqueceu o sono, esqueceu a fome, o cansaço. Voou para a fronteira.
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Tarlamo chegou rugindo trovão, pedra e lama. Confusão, gritaria, medo. Surgiram as tochas, luzes agitadas dançando na escuridão da noite. Os homens correram às armas, urgentes, alguma coisa atacava do céu, destruindo as máquinas, derrubando as casas. Acordaram seus feiticeiros.
A canção escudo ecoou pelos brejais, elevando uma barreira plácida, translúcida no céu. Tarlamo vomitou ácido sobre o encantamento dos homens, que deslizou pela barreira e caiu inerte na fronteira do acampamento. Irado, mergulhou, rasgou o escudo com suas garras de pedra, entrou. Homens com lanças de madeira surgiram, e ele os quebrou, um a um, abrindo seus ventres, lançando-os longe. Urrou sua vitória. Mas vieram guerreiros com lanças e espadas de ferro frio, armas do Norte, e ele sentiu a dor do metal em sua carne de terra. Os feiticeiros cantaram, e às primeiras notas Tarlamo sentiu as raízes das árvores enredando-o, prendendo-o sob a mira dos homens. Suas árvores. Rugiu tão alto que acordou as pedras, e as raízes libertaram-se do encantamento. Livre, Tarlamo atacou com mais fúria. Logo o chão encheu-se de corpos e armas fendidas.
Ialarana via as luzes das tochas dançando na escuridão, e não demorou muito para que vários outros seres do pântano também surgissem na fronteira. Uma máquina explodiu numa nuvem púrpura, lançando magia e fumaça na noite. Eles observavam a luta dos homens contra o pântano, e seu lar estava ganhando.
Mas os forasteiros vieram preparados. Colunas de terra cresceram como braços gigantes e atacaram o dragão por todos os lados. Magia parda. Os homens usavam o próprio pântano para vencer o pântano. Os feiticeiros da terra dançaram sua dança marcial, elevaram pedras da lama e lançaram-nas contra Tarlamo. Os guerreiros se recompuseram, cercaram-no, arremessaram suas lanças. Logo a fera era toda espeto e terra fendida, sua delicada pele de musgo perfurada e seus ossos de raízes à mostra. Sangrava água. Os feiticeiros azuis voltaram, cantaram proteções para seus guerreiros. As garras de pedra e raiz se partiram contra os corpos encantados. Tarlamo urrava de dor, e todo o pântano tremia com ele.
Surgiu então um grande Mestre entre os feiticeiros pardos. Os músculos escurecidos com piche brilharam na luz da lua, os cabelos trançados com mel de abelha, os braços largos. Sua canção de guerra reverberou pelo chão lamacento e atingiu Tarlamo em cheio. Ele viu surgir em seu corpo a caligrafia vermelha brilhante, a mesma magia das âncoras rúnicas dos aeronavios do Leste. Seu corpo travou no espaço.
Tarlamo perdeu! Milhares de olhos observavam-no da fronteira das árvores, milhares de olhos viram o grande dragão de terra e musgo parar a meio golpe. Os homens cercaram-no, armas em punho, mas não atacaram. Os olhos escuros da fera injetaram-se de ira, a terra tremeu, mas nada aconteceu. Estava aprisionado. Então, o Mestre pardo se aproximou. Todas as criaturas do pântano seguraram a respiração, seus corações pararam por um breve segundo quando ele tocou a larga cabeça com a mão. Tarlamo fechou os olhos. Seu corpo de terra explodiu.
Choveu lama.
Os homens comemoraram a vitória sobre a besta, cuidaram de seus feridos. As criaturas do pântano ficaram ainda, ali, ouviram as cornetas fúnebres dos homens dos brejais. O sonho do pântano morreu, e uma parte de cada um de seus habitantes morreu com ele. Voltaram para as suas casas, tristes; animais, fadas e homens cantando juntos a canção de morte de Siroco. De luto, a Lua se cobriu nas nuvens.
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A estrada que liga as cidades das colinas com as florestas ao sul é a principal rota de mercadores e viajantes. Antes, diziam, era preciso contornar toda a região, o que levava a semanas de viagem desnecessária. Diziam também que os dois pântanos que nascem em cada lado da grande estrada já foram um só, mas só os mais velhos podem saber. A grande estrada ajudou o comércio entre os reinos, e é constantemente vigiada e mantida pelos regentes daquelas terras.
Pousada num totem velho e podre da Cidade do Lago, uma fada-libélula de asas muito brancas observa o tempo passar. É a mais velha conselheira da cidade, mas hoje não está presa às suas obrigações. É o aniversário de morte de Tarlamo-sonho.
Ialarana orava uma prece aos ventos, diante do Aei fúnebre. O ornamento, feito simplesmente de um galho fincado no chão e de uma tira de algodão amarrada, que dançava com o vento, servia para lembrar a passagem temporária da vida, e a perpetuidade da lembrança. Ela era a última do seu povo que vira a grande batalha.
Desde aquela noite, o pântano nunca mais foi o mesmo. A estrada secou os brejos por onde passava, e a vegetação se recolheu de cada lado. As fadas-de-lama remanescentes fugiram para longe dos drenos, o povo se dividiu. Não havia mais Tarlamo, mas dois pântanos, que aprenderam a viver em separado. Tarla, o pântano do oeste, e Lamo, o pântano do leste.
Ialarana terminou sua prece. Não sabia se um sonho tinha um corpo de vento no outro mundo, mas mesmo assim orava por ele. Desde aquela noite, ela sabia, o pântano nunca mais sonhou.
Mas os jovens aprenderam a viver no pântano de Tarla, e tão logo desenvolveram suas asas, organizaram grupos de comércio com os viajantes. A Cidade do Lago cresceu, quase o dobro do tamanho original, prosperou. Dizem que os ventos da mudança são tão inevitáveis quanto os ventos da morte. Deve ser verdade.
Ialarana foi pra casa.
Naquela noite, quando o sol se punha, os pântanos gêmeos suspiraram um suspiro inaudível, olharam para o céu do crepúsculo e adormeceram. Naquela noite, a primeira em decênios, tiveram um sonho de liberdade. E o vento os ouviu.
Quando a lua cheia iluminava o zênite nasceram Tarla-dragão e Lamo-dragão.