A Maldição de Gelo - Parte 2
Ela era a rainha do gelo. Se alguém tocasse em sua pele gélida, morreria no mesmo instante. Por isso, decidira viver isolada em seu castelo de paredes altas e grossas, que mantinham afastado todo e qualquer visitante.
Muitos anos haviam se passado desde que se instalara no castelo de gelo. No entanto, sua aparência continuava a mesma do dia em que recebera a maldição. Talvez, suas células estivessem tão congeladas que não envelheciam. Ou talvez o tempo simplesmente não passasse dentro do solitário castelo.
De vez em quando, quebrando a monotonia da paisagem invernal, um viajante se arriscava a andar pela floresta e acabava nas imediações do castelo. Contudo, nenhum deles se atrevia sequer a pensar em conhecer seu interior. A maioria não se dava ao trabalho de pensar numa forma de invadir uma construção tão bem protegida. Outros, porém, conheciam as lendas: algumas diziam que dentro do castelo era ainda mais frio do que fora, e assim que alguém colocasse os pés dentro dele, se tornaria uma estátua de gelo; outras contavam que ali morava a rainha do gelo, uma mulher que misturava gelo e sangue humano para fazer sorvetes. Mas, indiferente aos motivos, contentava à rainha do gelo a solidão. Ao menos assim, não poderia ferir ninguém, ou ser ferida. Só que sempre existe algo para abalar as paredes da fortaleza...
Ele era um aventureiro corajoso, belo e forte. Mas, no fundo, não passava de um tolo sonhador. Inconformado com a vida ociosa e desempolgante da nobreza, enredara-se numa aventura impensada e acabara se perdendo no meio da floresta do eterno inverno. Era um dia particularmente frio, e à medida que a noite caía, o vento gelado se misturava à nevasca e tentava congelar-lhe até mesmo os ossos.
Quando achava que o único calor que lhe restava era o dos braços da morte, o jovem nobre avistou um imponente castelo em meio às árvores pálidas. Entusiasta das histórias fantásticas, conhecia todas as lendas sobre a rainha do gelo. Contudo, ainda assim, duvidava que enfrentar qualquer monstro pudesse ser pior do que continuar naquela nevasca.
Então, arrastando-se com dificuldade em meio ao frio que limitava seus movimentos, o nobre alcançou o castelo e bateu na porta. Aparecendo na janela, a rainha acompanhou com os olhos o que acontecia na entrada.
__ Vá embora daqui! – gritou ela, desacostumada a lidar com tamanha ousadia.
__ Eu estou congelando aqui fora! – o jovem uniu todas as poucas forças que lhe restavam para fazer a voz alcançar a rainha – Será que não poderia entrar só um pouquinho?
__ Quer mesmo se esquentar em um castelo de gelo? – devolveu ela, rindo sarcasticamente – Se entrar, morrerá congelado.
__ Se ficar aqui, morrerei de qualquer jeito. Ao menos as paredes do castelo protegem contra o vento.
__ Pois por mim, pode congelar aí fora. Não me importo.
__ Você não pode... – o frio começou a entrecortar suas frases, e suas mãos arroxeadas iam perdendo a sensibilidade -... ser tão má assim.
__ Posso sim. Afinal, o que você esperava de uma rainha do gelo?
O nobre pretendia retrucar, mas o frio intenso fez com que perdesse os sentidos e desmaiasse à porta do castelo. Ao ver a cena, a rainha lembrou-se de seu pai e das outras pessoas a quem ferira com seu toque mortal. No mesmo instante, fechou a janela. Segundos depois, já havia descido as escadas e aberto a porta de entrada.
Ficou alguns segundos contemplando a figura desmaiada, até que resolveu carregá-la para dentro. “Vou acomodá-lo em um dos quartos do castelo até que se recupere. Depois, ele seguirá seu caminho”. E assim fez. Cuidando para não encostar em sua pele, mesmo estando de luvas, arrastou o inesperado hóspede até o quarto mais próximo.
Quando o nobre despertou, se achava deitado sob uma grossa camada de cobertores, e já sentia suas extremidades novamente. Na verdade, estava disposto o bastante para levantar da cama e procurar sua anfitriã a fim de agradecer por ter-lhe salvo a vida.
Assim que conseguiu firmar os pés no chão, tratou de percorrer todos os corredores do castelo. Depois de se perder algumas vezes encontrou a rainha numa sala toda feita de gelo, cuja única decoração consistia em um piano do mesmo material, o qual ela dedilhava com graciosidade. Ao ouvir os passos do jovem, porém, parou de tocar e exasperou-se:
__ O que está fazendo fora da cama?
__ Já me sinto muito melhor. – e, contemplando a sala, acrescentou – O castelo não é tão frio como dizem as histórias.
__ Você diz isso porque estava há pouco embaixo dos cobertores. Se já se sente tão bem assim, é melhor ir embora antes que congele de verdade.
__ Sinceramente, duvido que isso vá acontecer. – disse o nobre, corajosamente.
__ Por que diz isso? – indagou a rainha, mais uma vez irritada com a ousadia do jovem.
__ Não acho que alguém que acabou de salvar minha vida deixaria que eu morresse dentro de seu próprio castelo.
__ Só porque não queria um cadáver em minha porta não significa que me importe com seus sinais vitais. Agora vá embora, ou eu mostrarei do que a rainha do gelo é capaz!
__ Da forma como age, parece que faz anos desde a última vez em que falou com um ser humano. – olhando fixamente para a rainha, continuou – Eu até não me importaria em ir embora, mas acontece que você salvou minha vida, e portanto eu lhe devo um favor. Então, já que esse castelo parece tão solitário, decidi fazer companhia a você por alguns dias.
__ Isso é absurdo! Será que não entendeu ainda que enquanto estiver dentro deste castelo sua vida correrá perigo?
Cada vez mais entusiasmado com a aventura que seria conviver com a rainha do gelo e cansado de suas recusas, desafiou:
__ Por acaso está tão presa em seu mundo de gelo que não consegue conviver com outro ser humano?
__ Não admito que me desafiem! – a rainha do gelo mordera a isca – Posso sobreviver à sua companhia petulante sem problemas. Aliás, se faz tanta questão de torturar a si mesmo, fique. Agirei como se não estivesse aqui.
E foi assim que o primeiro raio de sol conseguiu causar estrago na estrutura do castelo de gelo. O jovem nobre, que a princípio só fizera a proposta no intuito de mais tarde poder gabar-se para os amigos com relação à aventura gelada, acabou ficando intrigado e comovido com a existência solitária da rainha. E resolveu que faria alguma coisa para tentar-se aproximar e descobrir o motivo para tanto isolamento.
A rainha, por sua vez, conseguiu, nos primeiros dias, cumprir com o que dissera e agir com total indiferença para com ele. No entanto, o jovem estava tão determinado a arrancar um sorriso daquele ser do gelo, que vivia criando situações inusitadas e algumas até mesmo cômicas, que acabaram por perturbar sua aparente inabalável solidez. Afinal, embora o auto-controle da rainha tivesse permitido evitar os risos na frente dele, algumas vezes se viu obrigada a sorrir em segredo.
Estranhamente, os dias não pareciam mais tão longos. A rainha do gelo não falava muito, mas ocasionalmente ouvia as narrativas do nobre a respeito do mundo fora de suas muralhas. Um mundo ao qual nunca mais poderia pertencer, e do qual jamais se permitiria sentir saudades, e que agora a tocava de repente como um choque de alta voltagem. Tanto que seu coração chegou a doer. E foi quando ela percebeu que havia ido longe demais.
__ Já chega! – exaltou-se, levantando da poltrona na qual estava sentada – Vá embora daqui e volte para o seu reino! Você não pertence a esse lugar.
Ainda que não quisesse deixar a rainha do gelo – pois havia, de coração, se afeiçoado a ela -, o nobre sabia que era hora de partir. Contudo, fez uma promessa:
__ Vou partir agora, pois tenho assuntos a tratar em meu reino. No entanto, voltarei. E garanto que sentirá minha falta.
Prestes a ter um ataque de nervos, a rainha devolveu:
__ Vá logo antes que eu o transforme num cubo de gelo.
E o jovem nobre partiu rumo ao lugar de onde viera. Ao fechar a pesada porta do castelo, a rainha do gelo deu um suspiro aliviado. Enfim, teria paz. Ou, pelo menos, era o que pensava.
Logo no segundo dia após a partida do nobre, a moça percebeu o quanto era estranho voltar à solidão. Havia corrido um risco deveras grande ao se aproximar de um humano dessa maneira, mas não se importara. Imaginou que era forte o bastante para manter-se indiferente. Imaginou que venceria o desafio e retornaria à vida de sempre. Imaginou que um tímido raio de sol não fosse o bastante para abalar suas grossas paredes de gelo. Mas não imaginou que o retorno às trevas geladas pudesse ser tão vazio.
Concentrava todas as forças na tentativa de não admitir para si mesma que sentia falta daquele mundo virado de cabeça para baixo, mas, ainda assim, não conseguia tirar da cabeça aquele que o virou. Sabia que ele havia falado a verdade ao dizer que voltaria, mas não conseguia se conformar com o fato de desejar que ele voltasse. Sua preocupação se justificava pela maldição de gelo: “Não é o fato de um humano se aproximar de mim que mudará a morte causada pelo meu toque. E é por isso que tenho que afastá-lo o quanto antes”.
Em certo momento, a rainha resolveu analisar as paredes do castelo. Foi quando percebeu que parte delas estava derretendo. Resolvida a restabelecer s proteção de sua fortaleza, tirou as luvas e pôs os dedos finos na parede. O gelo começou a se multiplicar e a parede se fortificou novamente. No entanto, jamais conseguiria voltar a ser como antes.
Os dias voltaram a passar em seu ritmo preguiçoso que parecia tornar incoerente o uso da palavra no plural. Perigosamente, a rainha passara a se alimentar das lembranças, o que conseguira confundir a certeza que outrora representara seu mundo branco.
Do outro lado do pequeno mundo em que viviam, estava o nobre. Ao contrário da rainha, possuía uma vida cheia de afazeres e lidar com os mais diferentes tipos de pessoas era parte habitual de sua rotina. Contudo, por algum motivo, não conseguira esquecer o ser do gelo que conhecera e ansiava pelo retorno ao castelo. Então, após encaminhar os negócios pendentes em seu reino, decidiu pegar a estrada e rumar à floresta do eterno inverno. Algo em seu coração lhe dizia que devia ver a rainha do gelo mais uma vez.
Pouco tempo depois, o nobre estava à porta do castelo, batendo ansiosamente. Procurando conter a alegria que se instalava nela e retornar ao tom que condizia com ela, a moça abriu a porta.
__ Então você voltou mesmo?
__ Eu fiz uma promessa. E não costumo faltar com a palavra que dei.
__ Você não deveria estar aqui. – embora as palavras fossem verdadeiras, o tom de indiferença certamente não o era.
__ Vai me expulsar do castelo?
__ Não. – a palavra foi mais rápida que o pensamento. Era tarde demais para tentar consertar alguma coisa – Pode ficar.
A alegria e a irreverência voltaram a competir com a frieza e a seriedade presentes no castelo. As paredes de gelo se afinavam mais uma vez, e ninguém duvidaria que viessem a cair algum dia. A proximidade tornava mais difícil lutar para manter-se firme, mas seu coração era frio demais para acolher os sentimentos que nele brotavam. Chegara até mesmo a imaginar como seria se pudesse tocá-lo, e isso foi suficiente para tomar consciência do perigo.
“Estou sendo egoísta. Não posso mantê-lo perto de alguém que pode matá-lo com um único toque apenas porque sua presença me faz bem. E devia saber que uma hora teria de deixá-lo para sempre. Jamais devia ter me aproximado de um humano”.
Com o passo soberano de alguém que é movido apenas pelo orgulho, a moça caminhou até o quarto onde ele estava e disse, rapidamente, antes que algo a impedisse:
__ Já joguei os seus jogos e deixei que vivesse sua aventura invernal. Agora, quero que vá embora desse castelo e não volte nunca mais.
Com os olhos arregalados, o jovem contemplou a rainha. “Por que ela tem que complicar tanto as coisas?” pensou. Há algum tempo, percebera que a rainha do gelo possuía um lugar especial em seu coração. E resolveu falar o que guardava dentro deste:
__ Não posso ir embora. Faz tempo que isso deixou de ser apenas uma aventura. Pode ser que eu pertença a outro mundo, mas permanecerei no mundo de gelo se estiver com você. Diga que sou tolo se quiser, mas eu me apaixonei pela rainha do gelo.
__ Patético! – a rainha obrigou-se a dizer – O amor é mesmo uma coisa completamente inútil! Não deixarei que abandone sua vida inteira só por causa de um sentimento tolo.
Ousado como sempre, o nobre revidou:
__ Vamos lá! No fundo, nem você acredita nisso! Ou vai dizer que depois de todo esse tempo isso não passa de um desafio para você?
__ Não importa! O que eu sinto não importa! – e concluiu – Apenas não posso deixar que fique perto de alguém que pode matá-lo com um toque!
Confuso, como se tivesse sido atingido por um golpe, o jovem abaixou a voz e indagou:
__ Do que está falando?
__ Eu não sou uma moça como as outras. Não escolhi me isolar no castelo de gelo e manter longe qualquer ser humano. A rainha do gelo não é aquilo que eu nasci sendo, mas o fruto de uma maldição. Uma maldição que faz com que qualquer um que toque minha pele morra congelado.
Ainda mais confuso, o nobre manteve os olhos fixos no rosto pálido da rainha do gelo. Seu cérebro lhe dizia que deveria estar com medo, mas por algum motivo sua única reação era uma perigosa emoção que lhe fazia ter vontade de abraçá-la e consolá-la.
__ E então? – indagou a moça, exasperada – Não vai fazer nada? Não vai sair correndo antes que eu teste meu poder em você ou sacar sua espada e tentar matar essa aberração na sua frente?
__ Não. – respondeu ele, calmamente. – Não vou fazer nada disso. Você não ouviu o que eu acabei de dizer? Eu amo você! E não vou fugir, não importa o quanto tente me afastar. Sou incapaz de acreditar em qualquer de suas palavras quando diz que não acredita no amor.
Naquele instante, foi demais para a rainha do gelo suportar. Com uma leve gota de gelo pingando de seu olho esquerdo, desabou no chão, angustiada:
__ Como pode um simples humano adentrar tão facilmente nos mistérios de um coração de gelo? Eu nunca acreditei no amor, é verdade, nunca o considerei mais do que um sentimento inútil e foi isso que me condenou. A ausência de amor em meu coração causou a maldição de gelo, e passei a ser o que sou. Mas, agora... – tão repentinamente quanto começara a despejar as palavras, a moça parou.
__ Agora o quê?
__ Nada. Esqueça. Falei demais.
__ Não. Passei todo esse tempo tentando entender o que se passava dentro do coração de gelo, e quero ouvir o que tem a dizer.
__ Eu... – depois de alguns momentos de silêncio, a rainha levantou-se e, andando na direção contrária à do nobre, criou coragem para falar – Eu... vivi nessa fortaleza obrigando meu coração a esquecer qualquer possibilidade de alegria ao lado dos humanos e agora... ele não me obedece mais. Desde que você chegou aqui e trouxe um raio de sol ao meu castelo, eu... passei todo esse tempo... querendo me aproximar.
Milhares de pensamentos cruzaram a mente do nobre naquele momento. Ficou imaginando a força que a rainha tivera de fazer para se manter longe do único humano que já tentara se aproximar dela. Imaginava o verdadeiro sentido das palavras duras que ela dissera, palavras que, mais do que feri-lo, queriam protegê-lo. Imaginava que, de alguma forma estranha, ela lhe queria bem. E agora era sua vez de mostrar-lhe seu afeto.
__ Então, venha. Aproxime-se.
__ Não. – respondeu, cautelosa. – Não quero machucá-lo.
__ Você não vai me machucar. – devolveu, estendendo-lhe a mão gentilmente – Vai ficar tudo bem.
Hesitante, a passos lentos, a rainha do gelo se aproximou do nobre. Quando deu por si, a distância que os separava era menor que um passo. O aventureiro então aninhou entre as suas as mãos da moça, cobertas por luvas, e repetiu:
__ Vai ficar tudo bem.
Ao perceber o toque da mão dele, uma sensação estranha tomou conta da rainha. Mal podia se lembrar da última vez em que tocara um ser humano, e com certeza não se lembrava de tê-lo feito sem causar sofrimento. Apesar de tudo, a sensação era boa.
__ Obrigada. – disse ela, para em seguida esconder seu rosto contra o peito dele e – com todo o cuidado para não tocar em sua pele – abraçá-lo.
Por algum tempo, os dois permaneceram parados desse jeito, como se o mundo lá fora, a maldição e tudo o mais fosse irrelevante ou estivesse distante demais para atrapalhar aquele momento. Em seguida, a rainha do gelo reergueu a cabeça e, encostando a luva branca no rosto do nobre, ousou pela primeira vez contemplar de verdade seus olhos tão gentis. Era como se através deles pudesse ver seu coração, e sentia como se estivessem tão próximos que eram um único ser. Então, tristemente, percebeu que era esse o máximo de proximidade a que podia chegar. Ainda com a mão colada ao rosto dele, falou:
__ Você foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Nunca vou esquecê-lo. Mas sei muito bem que isso não pode durar. Peço-lhe, pela última vez, que vá embora, antes que aconteça alguma coisa que machuque profundamente a ambos.
__ Outra vez com esta história? – exaltou-se, afastando-se um pouco da moça – Será que ainda não consegue perceber que é possível que alguém ame de verdade a rainha do gelo?
__ Eu acredito que esteja sendo sincero agora. Mas sei que o efeito desse feitiço da loucura que é o amor não irá durar. E, mesmo gostando de estar com você, não pediria que permanecesse no castelo arriscando sua vida enquanto a emoção cega sua percepção.
“O que eu faço para ela entender?” pensou ele, pouco antes de ser tomado por uma súbita e desesperada ideia e sentenciar:
__ Eu partirei para sempre da sua vida. Mas, antes, deixe-me apenas fazer um último pedido. – a rainha permaneceu quieta enquanto ele completou – Beije-me.
__ O quê? – a rainha fitou-o, abismada – Você está louco? Se eu fizer isso, você morrerá.
__ Eu já entendi que você me ama, ainda que de um jeito diferente. No entanto, nada do que fiz parece ser capaz de provar meu amor por você. Prefiro morrer tendo a certeza de que toquei seu coração do que permanecer vivo sabendo que não fui mais do que qualquer um que passou pela frente do castelo e seguiu seu caminho. Se eu conseguir fazer com que conheça o amor verdadeiro, viver já terá valido a pena.
Ainda que desejasse avidamente tocar os lábios de seu amado, a rainha recuou alguns passos, dizendo:
__ Eu... não posso fazer isso!
A moça continuou a recuar, mas o jovem, decidido, aproximava-se no mesmo ritmo. De repente, a rainha do gelo parou, sentindo a parede fria tocar suas costas. Foi quando o nobre a abraçou e, com o amor barrando todo o medo em seu coração, tocou os lábios dela com os seus.
De repente, o mundo parou. Desesperada, a moça aguardou que seu amado virasse névoa. Contudo, seu coração gelado começou a absorver o calor que vinha dele e, pela primeira vez desde a maldição, ela não sentiu frio. E deixou-se levar pela magia do momento, correspondendo com todo o seu ser ao beijo que tanto desejara.
Todavia, enquanto a rainha perdia-se nos braços do amado, seu coração de gelo continuava a sugar todo o calor do corpo dele. E à medida que os segundos iam passando, o corpo dele ia ficando cada vez mais roxo e frio, até que a moça pôde senti-lo desmanchando-se entre seus braços.
__ Nããããããão! – ao perceber o que estava acontecendo, ela desvencilhou-se dele, mas era tarde demais. A maldição de gelo já cumprira seu papel.
__ Eu te amo. – sussurrou ele, antes de se desmanchar completamente em névoa e perder-se junto ao vento.
__ Eu sei. – disse ela, entre lágrimas. – Também te amo. – inconformada enquanto olhava os últimos cristais de gelo voarem para longe, continuou falando, talvez para si mesma, talvez para o vento frio que acompanhava seu lamento – Tolo. Eu não queria seu toque. Eu não queria o seu beijo. Só queria que você continuasse vivo e espalhasse pelo mundo sua luz tão especial. Com sua partida, o mundo ficou mais escuro agora.
Sentindo-se sozinha como nunca antes – pois só quem já se despediu do amor conhece a verdadeira solidão – a rainha do gelo desabou no chão e, tirando as luvas, cobriu o rosto com as mãos e se pôs a chorar. Pouco depois, o frio oriundo de seus dedos – demais até para a própria rainha do gelo agüentar muito tempo – começou a desmanchar seu corpo em névoa.
Ao menos, o vento a levaria para perto de seu amado, em algum lugar onde o sol brilhasse acima da neve gélida, forte o bastante até mesmo para derreter um coração de gelo.