A Maldição de Gelo - Parte 1

Ela mal havia deixado de ser criança quando renunciou ao amor. Seu jovem coração estava destinado aos deveres reais, tornando inexistente o espaço para sentimentos que a distraíssem. Muitos nobres cortejavam a princesa, traziam-lhe flores, escreviam poemas de amor em sua homenagem, saíam em aventuras em nome dela, mas a moça esmagava-lhes os sentimentos como se fossem formigas.

No entanto, o que a princesa não sabia era que um dos nobres que rejeitara era um bruxo muito poderoso, e tão vingativo quanto ela própria o era. Depois de usar todos os meios proporcionados pela magia para criar presentes que pudessem impressionar a gélida princesa, e ver os métodos falhando um por um, resolveu lançar-lhe um feitiço:

“A moça que brinca de rainha do gelo, rainha do gelo irá se tornar. A alma que nenhuma outra quis amar, corpo nenhum poderá tocar”.

No momento em que as palavras foram proferidas, o vento levou a maldição que continham até os jardins do castelo, por cujos caminhos de ladrilhos passeava a princesa. Assim que o feitiço atingiu a moça, seus cabelos negros foram clareando, até se tornarem tão brancos quanto o gelo em seu coração. E as mãos dela, macias e quentes, tornaram-se frias e secas. Subitamente intrigada, ela colocou a mão no próprio rosto, e a frieza de seus dedos quase o congelou. Contudo, a princesa não ficou abalada. Esticou a mão e colheu uma flor da roseira mais próxima. No instante em que a encostou, a rosa se cobriu de uma camada fina de gelo e começou a murchar, até se desmanchar em sua mão.

“Seja lá quem tenha feito isso, fez um ótimo trabalho. Uma princesa – e futuramente rainha – que não pode ser tocada certamente será respeitada”.

Com a cabeça erguida e mais orgulhosa do que nunca, a princesa tomou o caminho de volta ao castelo. Ao aproximar-se do portão, porém, foi barrada pelos guardas, que não a reconheceram.

__ Tolos incompetentes! – gritou ela, furiosa – Não são capazes de distinguir sua própria princesa?

Imaginando tratar-se de uma pobre moça perdida e confusa, um dos soldados dirigiu-se a ela, procurando expressar tranqüilidade:

__ Não sei quem você é, mas não posso deixar que entre no castelo. Sinto muito, mas terei que levá-la de volta à cidade.

Contudo, no momento em que dois guardas seguraram seus pulsos a fim de contê-la, a frieza proveniente da maldição começou a penetrar em seus corpos, até desmanchá-los em pequenos cristais gélidos de poeira. Os demais guardas, percebendo o olhar indiferente da moça enquanto isso acontecia, reconheceram nela sua princesa e, assustados, abriram caminho. Ela simplesmente passou entre eles sem dizer palavra.

Chegando ao corredor principal do castelo, encontrou o primeiro-ministro, importante conselheiro de seu pai. Por um momento, o homem analisou-lhe o rosto com alguma estranheza, mas não demorou a reconhecer os olhos azuis que amedrontavam todo o reino.

__ Minha criança! O que aconteceu com você? – intrigado, o velho político aproximou-se da moça – Quem poderia ter feito semelhante bruxaria? – curioso, levou as mãos aos cabelos da princesa, mais claros que os dele próprio. Todavia, antes que ela tivesse chance de se pronunciar, os dedos dele escorregaram levemente para a sua bochecha. Foi o suficiente para tirar a vida de um dos homens mais sábios do reino.

“Tolo” pensou ela “Deveria saber que nada de bom viria de se aproximar tanto de mim”.

A princesa teria seguido normalmente com a vida e encontrado o caminho para o seu quarto, não fosse o fato de o rei estar passando por ali naquele exato momento e ter presenciado tudo. Assustado com o que vira, ordenou aos guardas que contivessem aquela aberração. No entanto, mal tocavam nela e se desmanchavam.

__ Pai, sou eu! – dizia ela, em meio aos golpes desesperados dos soldados – Sou a princesa que um dia governará todo este reino. Eu mudei, mas estou mais forte agora. Forte para desempenhar a função que o destino me reservou.

__ Você não é minha filha! Não é nada mais que uma aberração e seu lugar é longe desse reino.

Percebendo que era inútil tentar convencer o soberano, a moça decidiu dar seu ultimato:

__ Muito bem. Não pretendo ficar em um lugar onde não há viva alma que deseje minha presença. Partirei para o exílio, mas, antes de ir, deixe-me dar-lhe um abraço de despedida.

Livrando-se dos últimos guardas que a impediam, a moça se aproximou do rei. Ele sacou a espada, mas ela inutilizou a arma com apenas um toque. Então, o rei tentou recuar, mas a princesa atirou-se em seus braços e, tocando com o seu o rosto apavorado do pai, transformou-o na mesma névoa a que havia condenado os soldados.

Porém, ao perceber o que havia feito, com uma chama de arrependimento brotando em seu ser, a moça entendeu o que significava de fato aquela maldição.

“Meu pai tinha razão. Não há lugar para mim aqui. Não há lugar para mim entre os humanos. Terei de me manter longe deles para sempre se não quiser feri-los outra vez”.

Resoluta, a princesa foi até o seu quarto, tirou do armário uma grossa capa branca, colocou-a por sobre seu vestido azul-claro e saiu andando errante pelos bosques do reino.

Deixando para trás o passado, o que era e o que desejara ser, a moça caminhou durante muitas horas, sem hesitar ou parar para descansar. Era como se o mundo atrás dela fosse deixando de existir, e os pinheiros à sua frente ganhavam contornos cada vez mais nítidos. De repente, porém, foi barrada por um obstáculo da natureza: um enorme paredão de pedra, que marcava o início de uma montanha, se estendia diante dela.

Inabalável, a moça tirou uma das luvas que havia vestido antes de sair e pôs a mão gélida contra a pedra. No mesmo instante, a montanha tomou a forma de um imenso castelo de gelo.

“Hoje, nasce a rainha do gelo. E este será seu impenetrável domínio, que conterá a maldição até o fim de seus dias”.

(Este poderia ser o fim da história. Mas, na verdade, é apenas o começo...)