A Filha da Tempestade
(do universo de Aera, o mundo dos Deuses Ventos)
Se tivesse sido encontrada em qualquer outro dia, não haveria problema algum. Afinal, não era incomum encontrar um bebê nas praias amarelas de Badi. Dizia o povo que eram os filhos de uma fada do mar com um habitante da cidade, deixados para crescerem com os pais já que não sobreviveriam embaixo d’água. Mesmo se ninguém reclamasse a criança, muitas famílias se disporiam a adotá-la, já que os filhos do mar traziam boa sorte na pesca.
Mas aquele não foi um dia bom. Amanheceu escuro como um quarto sem janelas, com nuvens pesadas cobrindo o céu do horizonte do oceano até as às longas planícies do continente, atrás da cidade. Nenhum homem se aventurou no mar naquele dia, e durante toda a manhã trabalharam para manter seus barcos seguros, e reforçaram suas casas.
Começou com um trovão. E então toda a fúria do céu desceu sobre Badi. As ondas tornaram-se imensas, a chuva açoitava as casas e o vento arrancava seus telhados. Logo o quebra-mar foi vencido pelas vagas, as amarras arrebentaram e inúmeros barcos foram afundados ou lançados contra os recifes. Alguns tentaram salvá-los, e tiveram o mesmo destino. O vento tornou-se tão poderoso que arrancava as raízes das árvores; casas vieram abaixo pela força do ar e raios incendiaram outras. As chamas elevaram-se, mesmo com toda aquela chuva. Muitos desapareceram, ou tragados pelo mar que esmurrava as praias, ou carregados pelo poderoso vento.
A tempestade durou o dia inteiro.
Os badianos só puderam descansar com o amanhecer do dia seguinte, e este foi um dia triste. Muitas famílias perderam suas posses, seus barcos, suas casas. Outras perderam seus amigos e familiares para a tempestade e para o mar. A cidade estava destruída e os prejuízos eram incontáveis.
Foi nesse dia que encontraram o cesto de palha na areia. Era ainda uma recém-nascida, como todos os filhos do mar encontrados na praia, humana em todos os aspectos, exceto pelos olhos cinzentos como as nuvens da chuva. Ninguém quis adotá-la. Um nascimento precedido pelo pior dos augúrios, no dia seguinte à pior das tempestades. Não a queriam, mas não podiam abandoná-la; isso traria a fúria da fada do mar e muita má-sorte para toda a cidade. Entretanto, não houve homem algum que a clamasse por filha, tampouco uma família que a desejasse.
_ Eu cuido dela – disse uma voz austera.
Todos olharam para quem falara. Os traços firmes, as roupas surradas, o olhar resoluto. Ninguém repara que o Faroleiro estivera presente, não até aquele momento. Abriram caminho quando ele se dirigiu ao centro da multidão, onde os chefes da cidade estavam reunidos. Ninguém se opôs e foi com alívio que a cidade viu a menina ser finalmente adotada.
Foi criada sozinha pelo solitário guardião do farol, um ex-navegante dos céus. Muito diferente dos outros filhos do mar, a menina era tratada com medo e ódio por aqueles que perderam seus entes para os ventos. Aliás, não a chamavam filha do mar, como os outros. Chamavam-na filha da tempestade, e ela carregou isso consigo toda a sua vida.
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_ O que ela pretende?! Diga!
O chicote estalou.
As costas desnudas da prisioneira sangraram sangue-seiva, manchando sua pele esverdeada de marrom-vermelho. A meia-fada ocultou uma lágrima de orvalho, seus cabelos de pétalas rubras, seu orgulho, agora murchos. Mas não trairia a capitã.
Outro estalo. O sangue da fada toca o convés pela primeira vez, e o segundo em comando tenta acalmar o capitão.
_ Im Jalal, senhor – disse, em voz baixa – Acho mais sensato comprarmos a ajuda dela. Se ela passar para o nosso lado, pode nos contar o segredo para derrotarmos...
_ Não temos tempo, imediato! – berrou o capitão do galeão real – Essa prostituta não vai se dobrar fácil, e enquanto falamos a tempestade se aproxima! Mas não perderemos esses piratas, não dessa vez!
As nuvens do quinto nível do céu estavam carregadas, negras, logo acima deles. O dia estava escuro como um fim de tarde, e era apenas meio-dia! Se não capturassem o aeronavio pirata rápido, logo a tempestade tornaria qualquer manobra impossível, arriscando inclusive os tripulantes da frota real.
Os dois galeões de Al-Mashur finalmente encurralaram o famoso Trovoada. Emboscados numa baía, entre recifes voadores e as falésias de Al-Tamim, os aeronautas piratas não tinham muita escolha. Ou avançavam por entre os recifes traiçoeiros – e uma mínima corrente de ar poderia fazê-los em pedaços – ou enfrentavam os inimigos. Num primeiro confronto, capturaram a pirata fada e perfuraram o casco do Trovoada com seus virotes. Agora, o aeronavio mantinha distância, imóvel na entrada dos perigosos rochedos.
_ Dorara não vai forçar caminho pelos recifes! – vociferou o capitão da frota real – Aquela vadia tem um plano, e você sabe qual é! Diga! – e o chicote estalou mais uma vez nas costas de Abalia.
Um trovão ressoou perigosamente perto.
_ Senhor, o aeronavio está com medo da tempestade – anunciou o timoneiro – Está travando o leme!
_ Pois então gire mais forte! Ou alcançamos aqueles demônios antes da chuva, ou caímos com eles!
O imediato olhou apreensivo para o céu, e um vento frio percorreu o convés do galeão. Eles não se arriscariam se aproximar; os galeões são difíceis de manobrar e se pegassem um vento desfavorável poderiam se chocar contras os rochedos. O Trovoada parara na entrada dos recifes, de costas ao inimigo, e não fazia mais movimento. O capitão era um louco em insistir na perseguição, pois se a tempestade começasse, o aeronavio pirata seria o primeiro a cair. O melhor que fariam era mantê-los naquela posição e procurar por abrigo, tão logo caíssem as primeiras gotas.
O Trovoada estava numa posição perigosa, mas enquanto se mantivesse ali, eles não podiam se aproximar.
_ O que ela pretende? Ganhar tempo?! – gritou Jalal para Abalia – Dorara não é estúpida, não vai se jogar no meio dos rochedos com esse tempo, então porque não nos ataca?
Não importava quantas chibatadas levasse, Abalia nada dizia.
Na trigésima, Jalal perdeu a paciência. Largou o chicote, desembainhou sua espada e correu até a pirata.
Abalia o viu se aproximando com um brilho perigoso nos olhos. Ele a levantou pelos cabelos vermelhos e esbofeteou seu rosto. Carregou-a até a borda do navio e a dependurou com a cabeça para fora. Não havia tantas nuvens nos níveis abaixo, e ela pôde ver a face do continente, distante.
_ Quantos estádios de altura? Quatro, cinco? Daria pra você morrer umas dez vezes antes de chegar ao chão – segurou a cabeça dela, forçando-a para fora. Sem forças, ela não lutava – Agora me diga, o que ela está esperando?
Um outro trovão, e então um pingo grosso de água molhou a face surrada de Abalia. Nesse momento, ela pôde sorrir.
_ A chuva – respondeu.
_ CAPITÃO! – berrou o imediato – Dorara vai atacar!
Tão logo caíram os primeiros pingos, o Trovoada manobrou e se voltou contra os galeões. Num repente, os piratas desfraldaram suas velas e o aeronavio remou com força suas membro-asas. O seu tamanho diminuto lhe conferiu velocidade, e ele ganhou metade da distância que os separava em poucos segundos.
Um barulho de explosão sacode o galeão de Jalal. Os piratas tinham pedra-de-fogo! A chuva torrencial que começou a cair impediu o incêndio, mas os ventos tornaram-se mais fortes e o barco foi jogado para o lado.
Homens correram para segurar as amarras, o timoneiro lutou com o leme, os armeiros prepararam as bestas de guerra. Virotes cruzam o ar e três cravam-se no casco do inimigo. O Trovoada soltou um uivo de dor, audível mesmo com a tempestade, mas não deixou de avançar.
Relâmpagos brilharam nas nuvens e raios riscavam os céus. Abalia, esquecida no convés com o início do ataque sorri mais uma vez, antes de procurar abrigo. Era agora, agora que iriam descobrir porque o chamavam Trovada.
_ Arqueiros, preparar! – ordenou Jalal.
Outro relâmpago incendiou o céu, e acima do fogo, da fumaça e das flechas, uma mulher se aventurou no cesto da gávea do aeronavio pirata, com a destreza de quem escalava o farol de Badi todo dia para brincar. Os ventos são fortes e o barco dançava no ar; mas o Faroleiro a ensinou a não temer os céus. Ela se põe de pé e estende os braços para cima. Seus olhos faiscavam.
Jalal a vislumbrou nos segundos do relâmpago. O Trovoada agora estava exatamente entre os dois galeões, e no momento em que o céu se iluminou, Dorara olhou para o seu inimigo, e estendeu seus dedos em sua direção.
Os arqueiros retesaram seus arcos e no exato momento em que Jalal ia dar a ordem, a grande luz desceu do céu, veloz como nenhum vento; tomou convés, arqueiros, tudo. O raio foi tão poderoso que partiu o mastro, perfurou o convés e alcançou a quilha, a alma do aeronavio. O som que se seguiu foi o grito de morte do galeão, que fez eco ao trovão que ensurdeceu o céu.
O corpo queimado de Jalal vacilou no ar quando o galeão tombou de lado, e caiu no abismo. Ainda havia tripulantes vivos, mas um aeronavio morto não pode flutuar. O galeão mergulhou e afundou, levando os gritos dos homens consigo. Antes, porém, um gancho com corda foi arremessado do casario até o Trovoada, e uma figura esguia se lançou logo depois.
Um outro relâmpago, um novo raio nas mãos de Dorara, e o segundo galeão ardeu em chamas. Os ventos o fizeram rodopiar e perder controle, e logo seus tripulantes esqueceram a batalha para salvar suas vidas.
A tempestade forçava o Trovoada contra as falésias da ilha voadora, mas o braço forte do timoneiro e a boa sorte de sua capitã os guiaram até o abrigo abaixo da ilha, uma caverna longe da chuva e dos ventos perigosos.
Os olhos dela ainda brilhavam como tochas. O cabelo esvoaçava incontrolável, e sua aparência emanava poder. Molhada pela chuva, ela caminhou até a jovem meia-fada, surrada e sangrando, prostrada no convés. Sorriu e estendeu-lhe a mão. Abalia não pôde conter as lágrimas de orvalho.
_ Bem vinda de volta, aeronauta.