O Primeiro Mago
Seu braço parou na metade do movimento, e logo o resto de seu corpo também foi aprisionado pelo feitiço. Yo’te’lev, o mago mais poderoso de todos os reinos, o descobridor e primeiro mestre da Magia, foi capturado. À sua frente estava Ag’te’mov, seu mais ávido pupilo, mal disfarçando um sorriso de êxtase.
Yo’te’lev não disse nada, nem podia, pois também a sua língua era vítima do encantamento. Sua incompreensão durou o tempo exato do pulsar de um vaga-lume-estrela, e então ele entendeu. Ag’te’mov, seu dedicado discípulo e preferido entre os atuais alunos, iria matá-lo. Desejoso de poder e impaciente como uma criança, o jovem tomaria o posto de Mestre dos Mestres à força, pela lei da guerra. Era exatamente essa arrogância que fez Yo’te’lev desqualificá-lo para o cargo de Grão-mago.
_ Mestre, ó, mestre! Nunca, em meus devaneios mais ousados, imaginei que seria tão fácil derrotá-lo! Essa é a prova da minha capacidade, a capacidade que você desprezou! Finalmente! Agora... Agora todos saberão do poder de Ag’te’mov, que venceu o Primeiro Mago em batalha!
O jovem continuou a dizer mais, mas o velho ignorou as palavras vazias. Era chegada a hora. Depois de mais de três milênios, sua vida chegava ao fim. Yo’te’lev era sábio, mas todo o seu conhecimento era agora inútil: é impossível quebrar, sozinho, o Feitiço Imobilizador do Sétimo Arco. Ele sabia porque ele mesmo o criara, assim como criara mais de dois terços de todos os encantamentos conhecidos.
Uma brisa triste afagou seu manto de seda-espelho, que refletia o brilho do sol poente. E então, sem o auxílio de qualquer encantamento, ele conseguiu ouvir todos os segredos escondidos no vento, em cada lufada de ar. As árvores do jardim dançaram, e Yo’te’lev teve a impressão de que as conhecia desde sempre, apesar de ter se mudado para a Escola de A’bra’niv havia poucos anos. De repente, o céu pareceu-lhe muito familiar, como um amigo que encontramos depois de muito tempo e do qual havíamos nos esquecido. A iminência da morte aguçava-lhe sentidos de tal maneira que nenhum de seus feitiços lograram fazer. Ag’te’mov gesticulava ainda, mas o que o velho mago descobria era maravilhoso demais para ele lhe desse atenção. O sol que se ia, a terra que seus pés paralisados pisavam, tudo lhe pareceu estranhamente parte de si, um desenho que fizera há muitos e muitos anos e do qual conhecia cada risco, cada traço, cada cor...
Era a consciência da morte que lhe revelava tantos segredos e sensações? Não, havia algo mais... A brisa aumentou subitamente, a terra pulsou um tremor que apenas Yo’te’lev pôde sentir; por um átimo de segundo o sol fulgiu com mais clamor, e as nuvens rodaram mais devagar a roda do tempo. As sensações não vinham apenas dele, mas sim...
...do mundo! Era o inconsciente do mundo que lhe sussurrava tantos segredos e tantas lembranças. O mundo inteiro, tudo à sua volta parecia se alarmar com esse momento, seu derradeiro momento, e ele entendeu isso, mesmo que nada lhe fosse realmente dito, porque ele conhecia os sonhos das coisas melhor do que elas próprias. Mas como? De onde vinha tanto conhecimento?
Um arrepio balançou seu corpo imobilizado com o poder de mil terremotos. Pela primeira vez em três milênios, a Verdade tocou sua mente, queimando como só a verdade pode queimar. Pela primeira vez em toda a sua vida – essa vida –, Yo’te’lev teve consciência de sua existência passada, antes de ser Yo’te’lev, antes da magia existir. Não, antes sequer do Mundo existir. Porque antes não havia mundo. Antes de tudo...
...estava flutuando no espaço escuro e brilhante da não-existência, desespero infinito dentro dele. Estava sozinho nessa versão da realidade, e sequer existia ainda uma realidade para se estar. Pareceu-lhe passar três eternidades inteiras antes que tivesse a idéia de preencher o vazio, o Seu vazio.
Yo’te’lev, que então não era seu nome, começou a sonhar. Começou imaginando o vento, movendo e empurrando tudo o que viria depois. Imaginou a terra e a água, a luz e as cores. Seu sonho cresceu e tornou-se Mundo, e ele escreveu a história de cada ser que imaginou pra habitá-lo, e escreveu a história dos filhos destes seres, e dos filhos de seus filhos. O Mundo, as montanhas feitas de sombra de U’lu’mus, o Grande Mar. Tudo isso Yo’te’lev criara em sua mente.
De onde ele mesmo viera, não sabia. Lembrava-se apenas de ter sido deixado no vazio por outros, que partiram para outros cantos, outros desdobramentos do universo. Há quanto tempo estava ali, sonhando? Devotava tanto da energia de sua mente para o Mundo, que finalmente, a sua própria energia esvaiu-se. E ele caiu.
Caiu no Mundo que criara.
A memória daí em diante era de Yo’te’lev, sua versão de si mesmo em seu próprio mundo. E então ele entendeu porque apenas ele pôde ver a Magia no início, apenas ele pôde entendê-la e manipulá-la. Ele não a descobrira; ela era parte de seus sonhos.
Tudo isso passou pela mente do mago enquanto ainda o jovem Ag’te’mov retrucava. O pensamento pode correr rápido, mas o pensamento de um mago pode visitar todos os lugares do planeta durante uma batida de coração.
_... enfim, ex-mestre e prisioneiro, eu não pretendo apenas mantê-lo cativo. Eu vou matá-lo! – e os olhos de Yo’te’lev arregalaram-se neste exato momento, e Ag’te’mov interpretou errado o que ia no âmago do velho feiticeiro – Surpreso? – sorriu – É o que você merece por desprezar o meu poder. E vou usar o último feitiço que você me ensinou.
O jovem aprendiz ergueu os braços e desenhou símbolos no ar, e quando a luz púrpura do Feitiço da Morte começou a surgir, Yo’te’lev tentou desesperadamente romper o encantamento com a força física. Por que o que assustou o velho mago não era a sua morte. Esta seria um problema pequeno. Porque, se o Mundo, se o próprio Ag’te’mov era filho do filho de seu sonho, quando ele morresse, o mundo...
_ Pare com essa tolice, Ag’te’mov! – gritou o Primeiro Mago.
Pela primeira vez na história da magia, o Feitiço Imobilizador do Sétimo Arco foi rompido apenas com força dos músculos. Mas o corvo de luz púrpura já deixara as mãos do jovem, já cruzava o espaço entre mestre e aprendiz. Lágrimas saltaram dos olhos do velho.
Quando o corvo violeta roubou a alma de Yo’te’lev, tudo em volta brilhou em resposta, brilhou com tanta força, com tanto poder, que tudo se tornou luz.
O Mundo de Yo’te’lev foi a estrela mais brilhante a se extinguir no vazio da não-existência.
[...]
Uma consciência flutuava nas trevas do não-ser. E ela começou imaginando o vento, movendo e empurrando tudo o que viria depois...