Um segredo por outro

(do universo da Grande Floresta)

Ta-Ijú escorregou e caiu com o rosto no chão de pedra e lama da caverna. A pressa o fazia desajeitado. Levantou-se rápido e prosseguiu com mais cuidado. A caverna tornava-se escura a cada passo, mas os olhos do clã Tatuna enxergavam melhor na ausência de luz. Era uma caverna alta, mais de terra do que de pedra, que entrava fundo na maior montanha do vale. Andou um tanto mais, subiu uma grande rocha e chegou onde queria: uma depressão escavada, tão grande que abrigaria facilmente cinco ocas de sua tribo. Estava cheia de galhos de árvores e tinha até árvores inteiras tombadas. Mergulhou no emaranhado de plantas ainda verdes e cavou seu caminho até o centro, a pele resistente dos homens de seu clã ignorando o açoite dos galhos. Foi com grande alegria e júbilo que encontrou o que procurava, aquilo que o lançou naquela empresa extremamente arriscada. Tomou-o em suas mãos com cuidado, e cavou rápido entre os galhos seu caminho de volta. Quando já encontrava a saída ouviu o som de pegadas fortes, e então largou a cautela e se lançou com velocidade para longe da caverna. O urro da fera ao descobrir-se roubada foi tão imponente que derrubou Ta-Ijú em plena carreira, fazendo-o tropeçar e lançar o valioso item vale abaixo.

_ Não!

Mas agora era pela sua vida que ele corria, serpenteando entre as grandes árvores do vale Nhauje, para longe, para a sua aldeia, para o seu fracasso.

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Os homens que habitam o interior da serra na região oeste da Grande Floresta há muitos anos não conhecem a guerra. Sem o combate contra outras tribos, tiveram tempo para aperfeiçoar sua caça e sua arte, e se tornaram sábios entre os sábios da floresta. Ali habitam grandes guardiões da tradição e sacerdotes respeitados no culto aos deuses, que conhecem a história das tribos e todos os Grandes Chefes. Viajantes de várias nações vêm até o vale abençoado para ouvir de seu conhecimento, e por vezes os filhos dos Grandes Chefes são enviados para lá a fim de aprenderem a religião dos pais de seus pais.

Na fronteira da serra que guarda o vale habita outra tribo de homens, mas que não veneram o Grande Jaguar, criador dos céus. Esses são do clã Yatinga e servem ao espírito da montanha. O nome do vale abençoado, Nhauje – escudo de lama na língua morta – veio dos escudos usados por essa tribo, pintados com a lama do alto da serra. A tribo Yatinga é grande guerreira, e protegeu o vale por gerações sem conta contra as investidas dos clãs de fora, ávidos pelos segredos sagrados, principalmente contra a nação subterrânea de Tatuna, de quem sempre foram inimigos.

Jaó-Pyá sorriu. O ar noturno do vale o revigorava a cada lufada de vento, e ele podia dizer que sentia a pulsação da terra sob seus pés. As grandes árvores eram sombras na noite que se erguiam muito acima dele, de grossos troncos e frondosas folhas, e ele quase podia dizer que ouvia os seus sonhos. Realmente, Nhauje era um lugar abençoado.

_ Jaó-Pyá, não pára ainda. Já andamos muito, é verdade, mas ainda devemos galgar três colinas antes de chegarmos lá. O grande caçador já cansa?

O outro saiu rápido de seu devaneio. Ganhou velocidade e logo alcançou o amigo. Não o chamavam Jaó-Pyá por acaso, tinha os pés mais velozes dentre todos os caçadores da tribo.

_ Segue Ya-Eté de perto, pois apenas ele conhece o caminho – disse o feiticeiro – o mau espírito obscurece a trilha e engana o bravo, mas a magia de Ya-Eté pode levar até ele.

Jaó-Pyá o seguiu respeitoso. Conhecia a magia do amigo, já há três verões caminhavam juntos, e ele nunca vira feiticeiro igual. Ya-Eté não era da tribo dos homens de Jaguar, como ele, mas da tribo Yatinga da borda da serra.

O feiticeiro parou de súbito. Agarrou um punhado de terra e folhas do chão e o esfregou na ponta de seu cajado. Inspirou fundo, e apontou para a nova direção que tomariam.

_ O mau espírito confunde a trilha – disse ele – mas com a magia de Ya-Eté e com a força de Jaó-Pyá, ele será destruído. E então, não mais as manadas fugirão do vale sagrado.

_ Que o Grande Jaguar abençoe a habilidade de Ya-Eté – disse o caçador – A tribo de Jaó-Pyá teme a falta de caça, mas teme ainda mais ter de abandonar Nhauje.

_ Não! Tal pecado jamais será permitido. Não tema, amigo, pois pelo teu braço o mau espírito será morto.

Seguiram. Contornaram uma árvore tão grande que sua copa escura se confundia com o céu, e subiram entre os arbustos de mais uma colina. Um vento frio lambeu as costas nuas do caçador, e por um raro momento ele teve medo.

_ Ya-Eté... – disse – Os mais velhos de minha tribo dizem que apenas os espíritos matam os espíritos, e que os homens podem apenas agradar-lhes ou afugentá-los. Como o caçador poderá enfrentar o espírito que ataca a caça do vale?

O feiticeiro não respondeu de imediato, ao invés disso pediu silêncio. Verificou a terra onde pisavam, e fungou o cheiro da mata. A magia ali era forte. Por um momento, então, a lua vacilou no céu, borrada como o ar quente sobre uma fogueira, e toda a floresta silenciou. Então ele viu a trilha secreta que nenhum olho pode ver, mas um trovão distante o tirou de seu transe, e ele estava de volta à floresta, com seus sons, com a mesma lua, e Jaó-Pyá esperando a resposta de sua pergunta.

O velho suspirou.

_ A tribo de Jaó-Pyá está certa – disse – Os espíritos não podem ser enfrentados pelos homens, não sem auxílio igualmente espiritual. Não tema, amigo. Ya-Eté veio preparado, e dará ao bravo os meios para vencer a fera. Ya-Eté conhece o valor de Jaó-Pyá, lembra-te de que foi através de um sonho que os espíritos me contaram de ti. Segue o grande caçador, disseram, e então um terrível mal será evitado.

_ Já há três verões me acompanhas, amigo. Será este o grande mal de que disseram os espíritos?

O outro sorriu.

_ Esta é a grande certeza da vida de Ya-Eté.

Caminharam mais uma vez. O feiticeiro ajoelhou-se e tomou uma pedra branca do chão. Fechou os olhos, inspirou fundo. Novamente a floresta silenciou, como num sonho distante. Dessa vez até Jaó-Pyá percebeu, e ele também viu. Uma trilha muito bem cuidada, que não estava ali momentos antes, subindo a colina, serpenteando entre os arbustos e troncos das árvores. Dessa vez o transe não foi cortado, e puderam entrar no caminho. Não precisaram andar muito quando alcançaram a entrada da caverna.

Outro trovão ribombou, e a chuva começou a cair.

_ Agora, Jaó-Pyá, ajoelha – sibilou o feiticeiro – Tu entrarás no ninho do espírito, e precisas de proteção. Em breve serás capaz de executar o que ao homem não é permitido. Escuta; o que ouvires de Ya-Eté, agora, ele pede que esqueças.

_ Jaó-Pyá aceita.

O feiticeiro enfiou os dedos em sua bolsa de couro e um pigmento verde tingiu sua mão. Com ele, desenhou símbolos no rosto e peito de Jaó-Pyá, enquanto recitava:

_ Pelos poderes da terra e das sombras, Ya-Eté invoca a fraqueza. À água fria que pulsa no interior do solo, ele oferece o vigor; à rocha anciã que nunca viu a luz do sol, ele oferece a resistência; à mentira proferida mil vezes, Ya-Eté oferece o sangue da verdade...

Jaó-Pyá nunca ouvira um encatamento proferido com tanta fúria. Por um momento a luz da lua, já pálida pelo véu do mau espírito, pareceu sumir. As estrelas se apagaram, o vento morreu. A tinta verde então não era tinta, mas sangue, frio como pedra do alto da serra. Um arrepio de morte passou por sua espinha, e ele se viu caindo ensangüentado e inerte no chão escuro, e uma risada de triunfo, aguda como uma águia, a ecoar pelo mundo. Viu as lágrimas de Jaó-Emi, seu amor secreto, lágrimas que embalavam seu corpo sem vida. Sentiu vontade de gritar, mas o arrepio passou, e estava novamente ajoelhado diante de Ya-Eté.

_ ...pelo tremor que faz a terra dançar, pelo pó que já foi o corpo dos Grandes Chefes, Ya-Eté invoca a ruína!

O arrepio ameaçou voltar, mas não veio, e então Ya-Eté derramou óleo sobre a cabeça do caçador.

_ Que os espíritos da terra estejam contigo – sorriu ele. O fez se levantar e continuou – estás pronto. Vai, o espírito dorme agora, guarda a flecha e leva a lança. Crava-a no olho esquerdo da fera, crava-a fundo e volta vitorioso. O que quer que sintas de estranho no seu caminho, ignora! É a magia do espírito. Vai. Espero por ti.

Jaó-Pyá levantou-se e iniciou sua caminhada, mas então se voltou.

_ Ya-Eté, amigo, quando tudo estiver terminado, Jaó-Pyá tem um favor a te pedir. Por algumas luas ele guardou um segredo de ti, pois esse não dependia apenas da vontade do caçador, mas quando ele retornar de bom grado o revelará ao amigo. O favor que ele pede é que não se zangue com Jaó-Pyá.

_ Não há nada que possa zangar Ya-Eté vindo de ti – disse o feiticeiro – e mais: se voltares com o sangue do espírito ruim, Ya-Eté revelará o segredo que torna o clã Yatinga tão poderoso – sorriu – Agora, vai!

_ Um segredo por outro – sorriu Jaó-Pyá – Que o Grande Jaguar fique contigo – e entrou na caverna.

O feiticeiro disse ainda algo, mas ele já não pôde ouvir.

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Jaó-Pyá caminhou pelo chão de pedra e lama da caverna. Logo ficou difícil enxergar. E era uma caverna alta, tão alta quanto as copas do fundo do vale.

Uma sensação familiar balançou em sua mente, e ele teve ânsias de largar a arma e fugir para o vale. Mas lembrou-se das palavras de Ya-Eté e seguiu em frente.

Subiu um monte de pedra e encontrou uma grande depressão escavada no solo, cheia de sombras. Os olhos demoraram um pouco a se acostumar com o escuro, e então descobriu que as sombras eram galhos de árvores e árvores inteiras, jogados umas sobre as outras. Um ninho.

Subiu um grande tronco e divisou, ao longe, um vulto pálido no centro da depressão. Apertou a lança em seu punho e mergulhou no emaranhado de galhos.

O ressonar do espírito fazia vibrar as folhas mortas e o chão do ninho. Em pouco tempo, ele alcançou o centro, subiu numa grande araucária tombada e finalmente vislumbrou seu inimigo.

Um lagarto enorme, maior que o maior tigre que Jaó-Pyá já vira. Seus olhos eram do tamanho da cabeça de um homem; seus dentes, pendurados na boca aberta, do tamanho do braço do caçador. A cabeça engoliria facilmente cinco guerreiros, a garra esmagaria duas ocas sem dificuldade. A cauda, que serpenteava entre os troncos caídos, tinha escamas tão espessas quando o tronco da jaqueira, e pareciam tão resistentes quanto uma pedra-de-luz.

Tudo isso seu instinto de caçador lhe contou, mas havia algo mais. O corpo do espírito era branco como leite de cabra, pálido agora na escuridão da caverna, mas deveria refulgir como um espelho na luz do dia. Emanava uma sensação tão branda e tão familiar, que Jaó-Pyá achou difícil ser essa a fera que devorava as manadas e espantava a caça do vale sagrado. Não sabia porque, mas seus olhos ameaçaram chorar.

É a magia do espírito, lembrou-se. Ele enganará o grande caçador, e então o devorará quando despertar. Jaó-Pyá ergueu a lança, e pela última vez teve vontade de desistir, mas não afrouxou a arma. Mirou o olho do inimigo.

O urro de dor fez a terra tremer, e a montanha inteira reclamou de volta. Muitas árvores vergaram, os pássaros revoaram preocupados, os animais fugiram de seus abrigos. A fera gritou ainda mais uma vez, quando o caçador impelia a lança contra seu crânio, e novamente a montanha inteira rangeu de fúria. Um terceiro rugido, e então Ya-Eté ouviu o grito de dor de Jaó-Pyá.

E então silêncio.

A lua tornou-se real de novo; o véu foi destruído. Estava feito.

Surgiu do interior da caverna, então, um corpo de homem, coberto em sangue e dor, se apoiando num pedaço de pau. Morria. O sangue fluía como rio e empoçava em seu caminho, a pele estava rasgada. Usava a lança quebrada para prosseguir.

_ O que aconteceu... – murmurava Jaó-Pyá, em dor – Ya-Eté, amigo, o que aconteceu?

A resposta foi uma risada de escárnio, e o caçador lembrou-se de sua visão.

_ Quinze verões! – exclamou Ta-Ijú, pois este era o verdadeiro nome do feiticeiro – Por quinze verões perambulei pelo vale, ocultando meu nome, meu clã, meu orgulho. Demorei a encontrá-lo, filho da montanha, como demorei, e mesmo assim, levou-me três verões para fazer-te meu amigo, para ganhar tua confiança!

O caçador tremeu, antes de dor do que de entendimento, mas ainda não caiu.

_ Jaó-Pyá não entende... – disse.

_ Devo-te um segredo, Jaó-Pyá, o segredo do poder da tribo Yatinga. Yatinga também é o nome do espírito da montanha, o grande lagarto branco que protege a tribo que o venera. Enquanto Yatinga viver, assim viverá a tribo de mesmo nome, e assim Nhauje viverá impenetrável. Há muitos verões o clã Tatuna guerrea contra essa tribo, e há muitos verões perdemos. Mas num ritual de dor e sangue, o grande espírito Tatuna veio a mim, e profetizou sobre o seu nascimento. Disse que o grande dragão branco só seria morto por seu próprio sangue. Há quinze verões tentei roubar um ovo do ninho, mas te perdi na fuga. Tu creceste como um homem entre os homens, hábil caçador e veloz quando toca o solo, porque és filho de um espírito da terra. Somente teu poder podia destruir tua mãe, e somente ela podia destruir-te.

“Eu cacei as manadas e as afugentei com minha magia. O encantamento que a pouco proferi tornou-te fraco, vulnerável às garras de tua mãe. Agora ela está morta, e logo tu também morrerás, filho da montanha. Tua linhagem desaparecerá, e com ela, a proteção do vale. Os feiticeiros de Tatuna finalmente vencerão os Yatingas, tomaremos o vale e a tribo de Jaguar que habita nele, e seremos senhores de seu conhecimento e poder!

Ta-Ijú continuou a falar, mas os sons emudeceram nos ouvidos de Jaó-Pyá. A luz sumiu de seus olhos, e, graças a Jaguar, a dor deixou o seu corpo. Iria agora para junto de sua mãe, a mãe que ele não conhecera e que ele mesmo matara.

Antes de morrer, sua mente ainda se lembrou da promessa não cumprida, do segredo que devia. Seus olhos mortos choraram quando se lembrou da bela Jaó-Emi e de seu amor, proibido pelo amigo feiticeiro. Sorriu ainda um sorriso de esperança, quando se lembrou do filho ainda não nascido, gerado em segredo, sangue do seu sangue.