Diante de Heróis

Quarto Conto Heróico:

Diante de Heróis

O Grupo

Madrid, Espanha. O ano do nosso Senhor de 1585. Era o governo do El-Rei Dom Filipe II, da Espanha, Senhor de Todo o Mundo. A Santa Inquisição predominava. Dentro da masmorra, percebia-se um único homem acorrentado.

“Ontem queimaram três pessoas, dois jovens e uma moça. Um deles era judeu, era em segredo. Ele havia se convertido ao cristianismo, mas mantinha os seus costumes: não comia carne de porco e guardava o Sabá, isso foi o suficiente. Seus corpos foram queimado, foi possível sentir o seu cheiro daqui. Houve gritos. Após, disseram-me que eu seria o próximo. Sou um ex-soldado espanhol, meu nome é Carlos. Eles acusaram-me sem que eu pudesse entender. Mas eu sei porque estou aqui. Tramam contra a vida do rei. E eu, com a minha boca grande, soltei essa informação em meio às minhas bebedeiras, durante as minhas noitadas nas tavernas. Não me torturaram, apenas deixaram-me acorrentado sozinho nesta cela. Mal havia retornado de uma de minhas missões pelo reino e agora estou aqui. Será que eles acham que me tornei um protestante? Eu queria impedir esta trama. Estou vivo a quase vinte anos. Amanhã morrerei”.

A noite passou tranquila, até que o alvorecer levantou-se firme no céu. Carlos olhou para a porta da cela, as travas começaram a ser destravadas. As grades abriram-se lentamente. Por ela, adentraram um monge e dois guardas da inquisição. Os dois guardas mantiveram-se à porta, deixando o monge aproximar-se mais do jovem acusado. Carlos olhou de volta, o monge o fitou.

– A aurora chegou, traidor. – disse o monge. – Preparado para arrepender-se das tramas que fizera contra o Ungido do Deus Altíssimo antes que as chamas purificadoras toquem a sua carne?

– Eu não sou um traidor! – respondeu Carlos. – Sou apenas um soldado do reino que descobriu algo de errado e tentaria fazer o certo, mas vocês interferiram antes de qualquer coisa...

– Eu sou o inquisidor chefe desta cidade e sei a verdade, não tente me enganar.

Os homens começaram a soltar as cadeias que o prendiam.

– Arrependa-se e nós teremos piedade da sua vida.

– Acaso essa piedade livrar-me-ia da morte?

– Não. Mas usaríamos madeira e palha úmidas, e a fumaça o deixaria inconsciente antes do fogo tocar a sua pele.

– Tal bondade deixa-me sem palavras...

Nada mais foi dito, era claro que Carlos nada poderia dizer que amenizasse a sua sentença. Existia a pena das galés, quase tão horrível quanto a morte, mas ele tinha certeza que não lhe seria permitido tamanha “piedade” a essa altura dos acontecimentos. Ele foi levado à praça, o povo já observava. Foi amarrado à estaca de madeira no centro da praça. Muitos cidadãos, soldados da inquisição e outros monges observavam. Um guarda real apanhou a tocha para disseminar as chamas.

Carlos olhou diretamente para o fogo, o soldado se abaixou, pronto a atear o “fogo purificador”. Uma oração começou a ser pronunciada pelos monges.

– Agora? – perguntou uma voz em meio ao povo.

– Ainda não. – foi o que se ouviu em resposta.

A tocha tocou a madeira.

– Agora! – foi a ordem que se ouviu de repente.

Só foi possível ouvir um disparo de arma de fogo, cortando o ar e acertando a tocha em chamas, arrancando da mão do guarda real e jogando-a longe. O soldado só foi capaz de sentir uma picada em seu pescoço, caiu desacordado em seguida.

– Oh, meu Deus! – gritou alguém em meio ao povo. – Estamos sendo atacados!

O pânico instalou-se. Os guardas da inquisição tentaram localizar quem era o agressor, assim como o próprio chefe da inquisição local. Fitaram apenas um homem de pele clara e cabelos cor de fogo descendo a mira de um mosquete enquanto outro homem, coberto por uma capa de couro, guardava uma zarabatana sob seu manto.

– Matem esses malditos! – gritou o inquisidor.

Os guardas da inquisição sacaram as suas armas, foi quando outras três pessoas avançaram pelas retaguardas de tais soldados, pelo menos sete guardas foram inutilizados rapidamente. O homem com capa de couro aproximou-se de Carlos.

– Meu Deus! – era Carlos, abismado. – Quem são vocês!

O homem sorriu.

– Chamam-me de “Senhor Depardieu”, – disse em espanhol tomado por um sotaque francês, cheio de ironia. – ao seu dispor. Quer a minha ajudar para livrar-se de suas amarras?

– Essa pergunta é algum tipo de brincadeira?

Mais guardas da inquisição apareceram, somando-se aos que ainda estavam de pé. Depardieu partiu as amarras com um único golpe.

– Muito obrigado! – disse Carlos.

Depardieu olhou para a situação.

– Não agradeça ainda. – virou-se para uma das três pessoas que ofereciam resistência à guarda com grande excelência. – Sônia, onde está o seu noivo?

Sônia olhou de volta como resposta e sorriu.

– Não confia nos seus homens?

O homem de pele clara e cabelo de fogo posicionou-se ao lado de Depardieu e Carlos.

– Ele está vindo. – disse referindo-se à resposta não dada.

– Está bem, Ângelo.

Mais alguns guardas da inquisição avançaram. Foram derrubados com certa facilidade pelo grupo de guerreiros que se apresentava. Carlos observou a todos: parecia que o líder era o tal do “Senhor Depardieu”, o rapaz de pele clara chamava-se “Ângelo”. A moça bonita que lutava ao lado de uma outra mulher e um homem chamava-se “Sônia”, mas ainda faltava o seu “noivo”.

– Que confusão! – disse.

A rápida luta continuava.

De súbito, um homem surgiu com mais de uma montaria, eram animais treinados, capazes de seguir a montaria à frente sem que houvesse alguém para direcioná-la.

– Finalmente! – desabafou Depardieu.

As montarias posicionaram-se próximos aos seus cavaleiros.

– Demorou por demais, Victor!

O cavaleiro sorriu.

– Devia confiar mais no herói das “Tropas Terrestres Espanholas”.

– Esteves receberá uma recomendação minha. – respondeu com ironia.

Os demais soldados da inquisição tentaram atacar uma última vez, mas tudo foi em vão.

Todo o estranho grupo que aparecera de repente, desapareceu da mesma forma que surgiu, juntamente com o jovem Carlos.

***

Quem São Eles?

Carlos ainda não entendia o que havia acontecido. Ele seria morto pela inquisição há poucos instantes atrás, mas agora era levado por um estranho grupo de “heróis” e um líder francês. A cavalgada era enlouquecida. Eles já haviam deixado a cidade para trás havia bastante tempo, mas eles queriam garantir a maior distância possível de seus possíveis perseguidores. Nenhuma palavra era trocada entre eles. Apenas um silêncio, rompido pelas cavalgadas das montarias, era o que se ouvia. Carlos estava cheio de dúvidas. Acabaram por deixar a estrada, cortando um pequeno rio, seguindo-o abaixo, desfazendo qualquer as suas pistas, e se infiltrando na floresta ainda mais. Eles cortaram a mata, embrenhando-se em diferentes lugares, circundando outros, passando por pontes antigas, caindo aos pedaços, chegando a partes na floresta que parecia nunca ter sido tocado pelo homem. Até que se achegarem a um tipo de casa, escondida e longe de tudo, muito bem guardada e secreta. Seria difícil repetir o caminho que havia sido feito, mesmo para Carlos, um ex-soldado guardava por instinto o caminho que havia feito em lugares estranhos para que soubesse retornar depois, porém este seria muito difícil.

Todos desmontaram, trocaram umas palavras entre si. Entraram na casa, entregaram-lhe roupas descentes. A casa era de porte médio e muito bem paramentado, melhor que muitas do interior da cidade. Com o tempo e observação, Carlos conseguiu definir quem era quem. Depardieu era um antigo guarda de elite da França. Ângelo era um guerreiro, porém o homem por detrás da manutenção e da organização da casa, ele mantinha o abastecimento alimentos em estoques suficientes, por exemplo, assim como armas, animais e outros utensílios. Victor e Sônia eram noivos, logo iriam se casar. Victor era interessante, pois havia sido um monge e teólogo, até que desistiu de sua “vocação” e tornou-se um combatente de destaque nas fileiras dos terços espanhóis, sob o antigo comando do maior nobre e herói que já comandou algum exército: Dom Esteves de Sevilha. Por último, havia dois irmãos, um se chamava Catão, parecia ser o homem mais calmo do que os demais; e também tinha a guerreira Rúbia, ela era estranha, pois possuía uma séria dificuldade em falar. Muitas vezes, não respondia as perguntas referidas, a não ser que a estivesse olhando, mas ninguém estranhava isso.

– Como está se sentindo? – perguntou Ângelo.

– Aterrorizado. – confessou. – Mas feliz por não ter sido queimado até a morte.

Ângelo sorriu.

– Que bom. – disse. – Aproveite a segunda chance.

Carlos se incomodou.

– Quem são vocês? Por que me salvaram? Ontem pessoas foram mortas, por que eu fui o escolhido? Por que invadiram a cidade? Que lugar é este?

– Você faz muitas perguntas, meu amigo.

– E não mereço algumas respostas?

– Pois bem... – Ângelo respirou. – Somos um grupo formado pelo senhor Depardieu ao longo dos anos, a pedido de Dom Esteves de Sevilha, para que procurássemos indícios da conspiração que ronda o reino Ibérico. Por que o salvamos? Você é a primeira pista de que estão tentando eliminar o rei, já que Dom Sebastião, rei de Portugal, já se encontra morto e, as suas colônias, se encontram sob domínio espanhol. É claro que o rei Filipe, o maior senhor de um império jamais visto desde que somou as riquezas portuguesas às espanholas, é o maior alvo e o passo seguinte para se coroar essa “conspiração”. Invadir a cidade? Bom, não gostamos dela. Que lugar é esse? Bom, é segredo...

Carlos abaixou a cabeça.

– Vocês são loucos. – comentou.

– Loucura ou não, – interrompeu Depardieu. – salvamos a sua vida.

– Estamos a salvo aqui?

– Sim, – respondeu Ângelo. – por algum tempo.

– O que vocês querem comigo?

– Você comentou, em meio à sua embriaguez, que havia um plano para que o rei fosse morto. Você pode nos fornecer meios para descobrirmos o que realmente está acontecendo.

Carlos olhou para todos.

– Eu, eu não entendo... – respondeu, meio perdido. – Não sei como tudo isso foi acontecer. Apenas disse uma bobagem em meio às minhas confabulações e fui rapidamente preso pela inquisição. Eles chegaram à conclusão que eu estaria tramando contra a vida do rei. Mas tenho certeza que eu não faria tamanha tolice.

Depardieu aproximou-se.

– O que o levou a dizer que a vida do rei corria perigo?

Carlos raciocinou.

– Bom, ouvi, durante a campanha de batalha, entre as conversas de meus irmãos de armas, que não adiantaria toda aquela luta que travávamos, pois logo o rei estaria morto.

– Como assim? – insistiu Depardieu.

– Bom, havia uma conspiração sendo planejada por uma grande “organização”, mas era tudo que ele sabia. Tudo que ele temia era se receberia o seu pagamente ao final da campanha, como eu.

Catão aproximou-se.

– Não saberia nos dizer que “organização” era essa?

– Não, não... – respondeu. – Nunca soube. Mas me atemorizou. Pode imaginar o que aconteceria se nosso rei fosse assassinado?

– Por isso a bebedeira... – era a Sônia.

– Sim, mas eu pretendia defender o rei a todo custo. E foi justo na taverna que comecei a agir e perguntar. Queria saber se alguém poderia me informar alguma coisa.

– Então você foi preso pela inquisição como um conspirador.

– Sim...

– Mas se você não fazia parte da conspiração e nem estava envolvido em qualquer outra coisa, – era Catão novamente. – alguém o denunciou para abafá-lo. Possivelmente, você cutucou a pessoa certa.

– Só pode ser...

– Ou a organização certa...

– Do que você está falando?

– Não haveria outra organização capaz de retirar o rei de seu trono e abafar seus inimigos senão a própria inquisição. Ela é poderosa, age sob os olhares de todos e está acima de qualquer suspeita.

Carlos quase sorriu com a conclusão tão absurda de Catão.

– A inquisição não faria isso. Por que ele retiraria o maior rei católico de seu trono? Estaria dando um golpe em si mesmo!

– Não quando a inquisição está sendo controlada por um inquisidor local e este possui seus próprios planos...

– Isso é a mais pura tolice! Eu odeio a inquisição, quase me retiraram a vida, mas o que o inquisidor local ganharia retirando um rei do seu trono? O rei Filipe acredita que a sua missão na terra é trazer o mundo para o catolicismo!

– O rei Filipe não possui um varão herdeiro e nenhum parente à altura para substituí-lo. – era Sônia. – Quem você acha que tentaria ocupar ou colocar no trono do rei com punho de ferro para ter a maior nação católica do mundo sob seu domínio, acima daquele que já exerce sobre o rei?

Carlos raciocinou.

– Mas...

– O ser-humano é um ser insaciável, – era Victor, apresentando a sua sabedoria. – é certo que o inquisidor local deseja algo além do que já possui. Retirar do trono o seu rei, que já possui a confiança, e colocar alguém sob total domínio, seria o passo seguinte...

Carlos mostrou-se atônito.

– Se isso for verdade, o maldito inquisidor chefe que tentou me queimar esta manhã não passará dessa noite...

***

Um Diálogo Diabólico

O inquisidor chefe local da cidade de Madrid caminhava por entre os corredores escuros do castelo cedido pela igreja católica à Inquisição. Ele rodeou algumas salas, observou outras, procurava por alguém, foi quando ouviu algumas vozes, caminhou em sua direção. Observou a sala logo adiante, viu uma luz em um aposento logo adiante. Ainda ouvia-se a conversa, mas ao entrar, encontrou apenas um estranho homem.

– Mestre. – disse o inquisidor.

– Cardeal Motta.

– Com quem estava falando? – perguntou enquanto aproximava-se da mesa.

– O quê? Não, estava apenas memorizando. – a sala estava extremamente escura, parecia haver vultos à sua retaguarda. – Você tem muito que fazer.

– Quais são as ordens?

– Elimine logo o rei. – respondeu o estranho ser. – Tenho a pessoa certa para colocar em seu lugar. É um nobre espanhol que terá muito mais força de vontade que o atual rei. Ele subjugará o mundo muito mais rapidamente que o atual rei. E este me tem como um pai, o seu senhor. O mundo precisa ser balançado, não pode continuar da maneira que está. Há coisas que eram antes de eu iniciar o meu domínio e há o jeito que elas deveriam ser após eu ter iniciado.

– Coisas? Como?

– Como o rei, por exemplo. Desde que o seu pai abdicou do seu trono em favor do atual soberano, ele não fez o que deveria ter feito. Não dominou o mundo, mesmo Deus colocando as maiores colônias em suas mãos. É, simplesmente, incompreensível: por que a rainha Elizabeth continua onde está, reinando da maneira que está? Por que o império Otomano ainda se mantém de pé? Ou por que os reinos de ambos os extremos não estão definitivamente convertidos à Santa Fé?

– O senhor parece determinado...

– “Preocupado” seria a palavra mais correta. Mas estou falando em mudar logo a forma como o mundo se encontra. Da forma como está, e sempre esteve, não é a forma que Deus quer. Isso não está certo. Por isso estou tomando as rédeas deste mundo. Eu o comandarei e levarei ele ao encontro do Senhor Altíssimo. Se fosse da forma que deseja, eu não estaria aqui, tomando o controle de tudo.

A sala tornou-se ainda mais escura.

– Eu entendo...

– Não, você não entende, o mundo não será mais de morte, eu o trarei para a luz. Eu o empurrarei para Deus. E tudo começará com a coroação do meu ungido. Quero apenas que cumpra o seu plano.

– Sim senhor...

***

Um outro Diálogo

Na casa secreta.

– Se vocês estão certos, eu vou matar aquele maldito inquisidor!

Depardieu aproximou-se, todos observavam.

– Não é assim que agimos, Carlos. Não matamos ninguém!

– Vocês não vão me apoiar? Ele quase me matou esta manhã! – retrucou.

– Mas não aconteceu. – respondeu com aquele sotaque francês.

– Eu pensei que você fosse diferente dele, Carlos. – era o guerreiro Victor.

– Então quer dizer que vocês não farão nada a respeito? Foram capazes de arriscar as suas vidas para me salvar, apenas por causa de um indício de algum “plano maléfico” tramando contra o rei, mas, agora que o sabem, recusam-se agir!

– Não. – era a Sônia. – Significa que nós vamos fazer algo, mas não da sua maneira. Temos de ter certeza primeiro. Temos apenas circunstâncias e isso não basta para nós, não queremos julgá-los mal, assim como eles têm feito com a população.

– E quanto tempo isso demorará? – Carlos já estava nervoso. – Quando decidirem resolver a questão, já será tarde demais! Agora entendo que há algo maligno dentro disso tudo! E ele já percorre violentamente a vida de cada homem, mulher e criança inocente deste mundo!

Catão sorriu.

– Por mais que você esteja certo, é obviamente errado seguir pelo caminho que você quer trilhar agora.

Carlos não acreditava no que ouvia.

– O que é obvio?

Catão levantou-se.

– Não matamos pessoas. Não somos julgadores, nem carrascos. E você está disposto a matar uma pessoa apenas porque concluímos que possivelmente é ela. Você precisa ter calma.

– Ora!

– Matá-lo – era Victor e sua sabedoria. – não trará bem à vida de ninguém. Além de não poder resolver a questão definitivamente, é possível que este inquisidor local não esteja agindo sozinho, isso não resolveria o problema.

Catão acalmou-se um pouco.

– Escutem! Essa situação é extrema e pede soluções de mesma força!

– Escute você: – era Depardieu. – se você o matar e estiver errado, será um erro que não poderá voltar atrás, nunca.

Catão baixou o olhar.

– Você quase foi morto hoje. – era a Sônia. – Por isso entendo a sua frustração e fúria. Mas, se você é um bom cristão, peço que entenda a situação. Matar o inquisidor, além de ser errado, atrapalhará as nossas investigações e pode colocar tudo a perder. Quero você se segure, retenha o fio de sua espada e o seu gatilho. É fácil ser um cristão quando tudo vai bem, mas é outra história quando se vê frente a um dilema, e você está frente a um.

– Então vocês não farão nada?

– Não agora. – era Ângelo.

– Vamos investigar e traçar um plano. – era Sônia. – Assim seremos mais eficientes.

– Seríamos eficientes eliminando logo esse mal.

– Se você agir dessa forma, será morto.

– Pelo menos eu faria alguma coisa... – ele acalmou-se.

O dia passou devagar para ele, observando a todos. Fitando a guerreira Rúbia, a única que não havia se pronunciado durante toda a discussão. Ela estava treinando com o seu irmão, era linda. Era incrível que os demais o haviam respeitado, não estava acostumado a isso. Ele recém os havia conhecido, mas, mesmo querendo impor a sua posição frente aos demais, respeitado por todos. Eles poderiam, simplesmente, tê-lo ignorado ou feito alguma agressão física, e era certo que, na condição que se encontrava, não seria capaz de se defender. A única coisa útil que ele pode observar, foram as atividades de Ângelo. Observou onde as armas eram guardadas e onde estavam as montarias.

***

A Partida

A lua estava alta no céu. Todos dormiam, menos o jovem Carlos. Ele, por mais que tenha admirado os seus salvadores, não conseguia se conformar com a reação deles frente ao problema recém descoberto. Se remexia em sua cama. Não conseguia dormir.

Levantou-se devagar, calçou as suas bota, vestiu a capa que havia lhe dado e saiu da casa. Seguiu para onde Ângelo guardava as armas brancas e de fogo, fez mira com o mosquete, admirou a lâmina de uma espada, cerrou um punhal em uma bainha, equipou-se devidamente, apanhou um cela e seguiu para o estábulo. Aproximou-se de um dos animais, acariciou-o, o cavalo respondeu.

– Calma. – disse.

Armou o animal, puxou-o para o lado de fora do estábulo e começou a caminhar seguindo a direção por onde havia vindo. Foi quando ele viu um vulto, olhou de volta.

– O que vai fazer? – era a voz de uma mulher que se pronunciava com dificuldade, era Rúbia.

Carlos virou-se para ela, já começava a entender o seu problema.

– Você viu a discussão.

– Vai por conta própria? – perguntou com a mesma dificuldade.

– Se necessário for. E é necessário. Vai me impedir?

– Você é um soldado fiel...

– Obrigado.

Carlos partiu enquanto a jovem Rúbia observava.

***

E Começa a Investida

Não foi difícil encontrar o caminho de volta para a cidade, mas difícil seria redescobrir o caminho que havia feito até ali. Ele primeiro se perdeu, para depois encontrar um caminho conhecido. Ele observava de longe o castelo da Inquisição. Observava os seus guardas. Esperava a troca de turno, o momento mais vulnerável.

Foi o que ocorreu. Os guardas da inquisição adentraram para o castelo, possivelmente para chamar os seus substitutos, deixando a frente desprotegida.

– É agora ou nunca. – disse Carlos para si mesmo.

Ele saltou de seu esconderijo em meio à escuridão, observou a janela mais acima, sacou um gancho de agarre preso a uma corda, arremessou-o prendendo com perfeição. Subiu a parede do castelo. Adentrou pela janela, não percebeu nenhuma movimentação. Correu rapidamente pelos corredores, não conhecia aquela parte do castelo, somente os corredores da masmorra. Obviamente, o inquisidor chefe local estaria nos aposentos mais suntuosos, mas era melhor conferir primeiro. Adentrou um aposento, encontrou um monge adormecido. O observou, evitou ser tomado pela raiva contra ele. Armou uma besta e esperou um pouco mais.

O monge roncou.

Carlos o agarrou no pescoço, acordando-o no susto, apontou a ponta da flecha da besta na altura dos olhos.

– Fique calado! – ordenou em voz baixa.

O monge parou de se debater.

– Leve-me até o seu chefe, ou essa flecha será a última coisa que você verá!

O monge nada disse, apenas fez menção em se levantar

– Anda! – ordenou Carlos.

O monge deu um passo.

– Socorro! – gritou ele. – Socorro! Há um demônio em meus aposentos!

– Mas que hora para gritar. – comentou Carlos.

O monge continuou gritando, logo os soldados estariam ali. Carlos não teve dúvida.

– A queda não irá matá-lo. – disse.

O puxou pela gola.

– Desejo matar apenas o seu chefe.

Arrastou-o pelo corredor e o arremessou pela janela que havia entrado. O monge finalmente calou-se. A atenção dos soldados que seguiam os gritos foi desviada para a queda. Carlos continuou a avançar. Logo eles descobririam o engodo.

Topou com um guarda vindo de outra ala do castelo.

– Que inferno está acontecendo?

Carlos continuou sem pestanejar. O soldado percebeu tarde demais que Carlos era o problema.

– Palavras feias para um guarda da inquisição, homem!

Carlos golpeou-o rapidamente na nunca, deixando-o desacordado. O homem caiu inerte. O soldado continuou. Cortou os corredores do castelo, procurou aposento por aposento. Os monges saíram de seus quartos.

– Ele está aqui! – gritou um.

Outro guarda já se encontrava presente, avançou contra Carlos. Este se defendeu desferindo um soco direto no rosto, o guarda ficou desnorteado. Carlos desferiu-lhe outro soco, fazendo-o cair ao chão. Observou os demais.

– O que está acontecendo aqui? – era o inquisidor chefe local.

Carlos apontou a besta.

– É você quem procuro.

– Calma, criança. – disse o inquisidor em tom paternalista. – Fiquei preocupado contigo, o seu sequestro...

– Eu fui liberto e agora sei quem é o verdadeiro culpado disso tudo!

Todos observavam sem reação. Mais guardas chegaram ao local.

– Você quer a minha vida? Pode tomar. Estou pronto.

Carlos sorriu.

– Não seja cínico! Sei que você pretende matar o rei e estava-me deixando morrer em seu lugar!

– Calma, garoto, sei que você está confuso. Sei que aqueles que impediram a sua purificação podem ter voltado a sua cabeça contra mim. Mas, eu só quero o seu bem. Eu sou o seu amigo. Abaixe essa arma.

Carlos manteve-se com a arma em riste.

– Sou eu quem está tentando impedir que tramem contra o Ungido do Senhor, o seu rei. Logo, é claro que aqueles que pretendem destruir este reino fizeram a sua cabeça contra mim. Não se deixe enganar! Abaixe essa arma, você está do lado errado da moeda, garoto.

Os soldados cercaram Carlos.

– Você só está confuso...

– E você está morto. – foi a resposta de Carlos, mas não conseguiu disparar, pois os guardas da inquisição o apanharam a tempo.

– Maldito! – continuou Carlos. –Você enganou a todos! E merece morrer por isso!

– Levem-no para a masmorra, – disse o inquisidor. – ele será purificado de manhã...

– Diga que eu estava errado! – insistia Carlos. – Diga!

O monge baixou a face em frente a todos e sorriu.

– Não, você estava certo... – disse de forma baixa, mas Carlos escutou.

– Não! – gritou em meio a sua revolta. – Maldito!

– Calma, f...

O inquisidor chefe sentiu uma picada em seu pescoço, desmaiou imediatamente. Os guardas que prendiam Carlos foram alvejados, caíram feridos. Os demais soldados foram atacados rapidamente. Era o estranho grupo espanhol liderado pelo senhor Depardieu. Victor, Sônia, Ângelo, Catão e Rúbia agiam com maestria contra a guarda da inquisição.

Alguns soldados tentaram reagir, mas foram rapidamente imobilizados e derrotados, não houve tempo para reação. Victor e Sônia dominaram os monges para que não fugissem. Ângelo, Rúbia e Catão derrubaram quantos guardas da inquisição havia. Carlos também reagiu, derrubando outros dois guardas. Rapidamente, todos foram dominados.

Depardieu apresentou-se, saindo de maio às sombras, não houve uma pessoa presente que pudesse ignorá-lo.

– Ouçam e ouçam bem! – disse Depardieu de forma firme e ameaçadora. – Ogerizo qualquer forma de privação de vida, qualquer tipo de morte, por isso o seu inquisidor chefe está vivo. Estas são as regras daqui em diante: entreguem o seu senhor à guarda da cidade ou nós retornaremos! Digam a verdade! Nós sabemos que ele não estava tramando sozinho a morte do rei, por isso, se não o entregarem, retornaremos e entregaremos a todos, inclusive os inocentes, uma prática muito comum da inquisição, ultimamente. – Depardieu apontou para o inquisidor. – Quando o entregarem, o rei e a guarda ficarão alertas daqui para frente, esse será o meu preço. Ele é um traidor do reino, o seu líder, e nós o derrotamos com as próprias mãos. Este homem vai receber a pena que lhe é devida. Se nós fizemos isso com certa facilidade contra ele, imagine o que não faremos contra vocês, qualquer um de vocês! Se a partir desse segundo, vocês continuarem tramando contra a vida do rei, nós viremos atrás de vocês. Portanto, arrumem outra ocupação! – todos olhavam amedrontados. – Achem outro lugar! Longe daqui! Muito longe daqui! Vocês não nos conhecem! Não sabem quem somos! Mas sabemos quem vocês são! E, se acham que estou brincando, olhem para essas carcaças jogadas no chão! Vocês poderão ser os próximos! Olhem para o seu antigo chefe!

***

Fim de Jornada

Os guerreiros retornavam ainda de madruga, acompanhados de Carlos. Ele olhava a todos, impressionado e ao mesmo tempo envergonhado, pois havia sido salvo novamente pelo mesmo grupo. Depardieu estava muito desgostoso com ele, havia desobedecido a uma ordem direta à dele. Olhou para a guerreira Rúbia, só podia ter sido ela a contar onde ele havia ido, e motivo de sua salvação. A guerreira olhou de volta, apesar da deficiência que tinha, parecia estar ciente de tudo ao seu redor. Carlos baixou a face.

– Desculpem-me. – disse. – Acreditei que poderia resolver todos os problemas da maneira que agi, porém vi que só causei mais problemas.

– Não. – retrucou Sônia. – Você conseguiu uma confissão do inquisidor, era o que precisávamos. Foi o suficiente para que agíssemos.

– Entendo...

– Você forçou uma barra que tínhamos receio de fazê-lo, – era Victor. – isso nos ajudou a ir mais adiante contra o inimigo. Pudemos dar próximo passo mais cedo do que esperávamos.

– Mas isso ainda não acabou... – era Catão, Carlos o olhou.

– Ainda há mais disso?

– Sim. – respondeu. – Aquele inquisidor obviamente não agia sozinho. Apesar dele e de seu grupo estar intimidado e, por fim, até o amanhecer, desmantelado, ainda havia mais alguém por detrás disso.

– O que está querendo dizer?

– Que não terminamos totalmente com a “organização” que desejava tirar a vida do rei, eles agora não terão muito mais dificuldade de agir, mas isso não terminou. Quero dizer que virão outros, mudarão de estratégia, tentarão novos meios de domínio.

– Mas quem faria isso? De quem estamos falando exatamente?

– Não sabemos. – respondeu Depardieu.

– E isso é ruim para todos nós. – observou Sônia.

– A sua ação – continuou Depardieu. – nos permitiu avançarmos um passo, também deixando claro que estamos vigiando, mas agora eles sabem que nós existimos. Sabem que existe um estranho grupo espanhol comandado por um francês que está disposto a impedi-los de ter sucesso. Breve, eles saberão exatamente quem são cada um de nós. E isso é mais do que posso permitir que vocês atuem, meus comandados. Desculpem-me. Se vocês quiserem sair, frente ao que sabemos agora, eu entendo perfeitamente.

Todos ficaram calados, ninguém ousou responder.

– Sair? – rompeu o silêncio o jovem Carlos. – Eu não entendo...

– Somos Guardiões. – respondeu Victor. – Quer nos ajudar?

– No quê?

– Victor... – foi Depardieu chamando a sua atenção.

Victor adiantou a montaria, ambos se afastaram.

– Senhor, – era Victor. – ele é um bom guerreiro e irá acrescentar um certo vigor que não temos ao grupo. Se não fosse a sua lealdade ao rei e sua impetuosidade, não teríamos desbaratado esse golpe tão facilmente. Nós precisamos de um homem como ele. Para enfrentarmos a situação que nos deparamos, o mundo que vivemos, é esse homem que não deixará de fazer o serviço que precisamos fazer.

– Ele é um homem disposto a tirar vidas, Victor.

– Ele é um ex-soldado espanhol que, apesar da idade, mostrasse maduro, honrado e experiente. Vamos precisar de alguém que poderá chegar a limites que não podemos. E o senhor entende muito bem o que quero dizer.

– Eu gostaria que não fosse verdade.

– Eu sei.

– Essa trama contra o rei, contra todo o mundo, eu nunca vi nada igual. Mesmo quando fui chamado pelo Rei Dom Sebastião e Dom Paulo Barros Eurico, não esperava ver tamanha ameaça contra as vidas de todo o mundo...

– Nós vamos descobrir quem são os nossos inimigos. Vamos descobrir quem tramou tudo isso. Até lá, seremos os guardiões que somos.

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Boa Leitura!

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"Contos da Era Heróica" são contos anteriores à trilogia "Os Confins da Terra", clareando dessa forma um pouco mais o contexto da história e onde cada personagem se encaixa.

Neste caso, veremos um pouco mais das aventuras vividas pelo senhor Depardieu e seus comandados espanhóis.

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