O Guerreiro Sien e o Pequeno LI

Segundo Conto Heróico:

O Guerreiro Sien e o Pequeno Li

Uma Investida Covarde:

Presente.

“Era o ano de nosso Senhor de 1584, China. A terra tremia. Eu estava no interior de um depósito. Um aroma salgado de suor e sangue pairava naquele lugar, já estava ali há muito tempo. O pequeno Li contava apenas 13 anos. O garoto e eu lutávamos. Os guerreiros se aproximavam cada vez mais. Eu fui descuidado, havia levado muito tempo para encontrá-lo. As nossas vidas haviam se tornado um alvo. Os malditos nos atacaram com tudo, de qualquer maneira. Feriram-nos sem piedade. Eu continuei de pé enquanto os nossos inimigos caíam por terra sem saber o porquê: Deus nos protegia. Dava-nos forças para lutar, apesar de não restar mais nada.

– Vermes, vocês têm sorte de eu ter me contido! – falei enquanto o sangue quente escorria dos meus ferimentos, os inimigos ficavam para trás como objetos quebrados.

Mas um novo desafio estava logo adiante: uma segunda leva de inimigos havia se formado de repente. Eu sabia que eles desejavam tragar as nossas vidas, apenas não sabia o quanto. Eles queriam matar a mim e ao garoto. Mas, para fazer isto, eles teriam de passar por mim. Meu nome é Huang Sien Wen! Olhei para o pequeno Li, seu rosto estava pálido, o seu sangue se esvaía com vontade, ele não tinha como prosseguir a luta, suas pernas arquearam na altura dos joelhos, sua espada veio ao chão. Apenas eu poderia continuar empunhando uma espada.

Era isso que eu estava esperando.

Olhei para o garoto, ele perdeu os sentidos, mas os seus olhos me fitaram antes de cair. Eles suplicaram pelo um fim disso tudo. Não pude recusar, Deus estava comigo. Senti um sorriso se formando em meu rosto, avancei sobre eles e não parei mais. Havia me tornado algo irreconhecível aos olhos dos meus inimigos, todos estavam caindo ante minha força. Então, meus pés vacilaram. Um deles havia me acertado e eu caí por terra. Outro em meu lugar teria morrido. Ainda me lembro do meu grito, involuntário. Naquele momento, o que havia de humano em mim desapareceu. Tudo que havia restado era o que eu considerava divino, continuei sorrindo. Eu era um Guardião. Iria proteger o garoto. Ataquei com ainda mais vigor. O sangue dos meus inimigos foi jogado pelo ar, era possível ver as manchas nas paredes do casarão.

Eu estava além do irreconhecível, tinha de proteger a criança. Naquele momento, eu matei tudo que se movia. Outros guerreiros avançaram sobre mim, mais feridas foram abertas em meu corpo, não me importei com isso, matei a todos. E continuei a luta por um bom tempo. Os gritos se seguiam um atrás do outro. Não fui capaz de perceber quando tudo havia terminado até tudo estar realmente acabado. Só parei quando percebi que havia apenas corpos espalhados pelo chão, não encontrei mais nada, nenhum inimigo, vi apenas o garoto. O pequeno Li ainda estava lá, morrendo aos poucos.

– Li... – disse estendendo a mão. – Acorda! – o segurei. – Temos de sair daqui! – ele não abria os olhos. – Li... – temi por sua vida. Chorei.

Aos poucos, ele abriu os olhos, para o meu alívio. O garoto veio estendendo a mão em direção ao meu rosto, seus dedos tão pequenos me tocaram. Meu coração balançou, não podia, não queria perdê-lo.

– Obrigado... – disse ele. Mas tive a impressão de sentir algo que temia: ele estava morrendo, pois sua mente parecia estar em um lugar vazio e só, onde o som ecoava até se perder em trevas sem-fim.

Sentia-me falhar a cada segundo.

– Perdoe-me... – falei sem me conter. – Deus...

Como eu queria retornar aos nossos poucos momentos antes desse turbilhão de horror nos alcançar”.

***

Relembrando:

Um Dia Antes.

“Meu nome é Li, sou um jovem guardião. E tenho apenas treze anos. Fui ensinado desde minha infância a seguir nos caminhos do Senhor. Sou filho de Sir Gregory Wright, um estrangeiro, e Lien, nativa desta terra. Na verdade, o meu pai é o guardião titular de um objeto que, combinado com mais seis, pode definir o rumo história da humanidade. Ele o deixou sob a guarda da Diocese de Macau para que, estando eu pronto, o buscasse, mas sei que não está na hora. Afinal, entendo que o destino do mundo nas mãos de uma criança de treze anos não deve soar muito bem. Mas parece que estou pré-destinado a fazer isso um bocado de vezes. Sério! Não duvide! Mas não se preocupe. Até lá, serei mais velho e responsável. Para dar seguimento no legado de meu pai, estou disposto a enfrentar inimigos de todas as formas e tamanhos, conhecer os outros Guardiões e outras terras.

Sou um adolescente cheio de truques, sou um prodígio. Sou treinado desde os três anos de idade em combates corpo a corpo. Sou poliglota. Estudo a Palavra de Deus desde antes mesmo de saber que era capaz de pensar, mesmo em um mundo que sequer ouviu falar de Cristo (excetuando meu pai, minha mãe e meu tio, os dois últimos por influência do primeiro). Já viajei por lugares inimagináveis com o meu pai (e estou falando de mares nunca antes navegados). E já vi e fiz mais coisas de que a maioria das pessoas fará em suas vidas inteiras. Então, preste atenção nas palavras que irei proferir, e quero que pense com cuidado. Quero que olhe nos meus olhos e reflita nos vocábulos que virão:

– Já limpei o chiqueiro, tio! O senhor quer mais alguma coisa?

– O quê?

– O chiqueiro, tio. Eu já limpei!

Ele estava no alto da colina, talvez não pudesse me escutar direito.

– Que chiqueiro?

Ou estava ficando surdo.

– Que o senhor pediu para que eu limpasse.

– Pedi para o quê?

– 'Limpasse'!

Ou estava me fazendo de bobo.

– E limpou?

– Sim...

Um histórico tão recomendado quanto o meu e ainda não conseguia o respeito do meu tio.

– Quando?

Ele só podia estar zombando de mim.

– Quando o quê?

– Quando mandei limpar?

Ele era muito sério, mas quando estava de bom humor, se tornava o cara mais sem-graça do mundo.

– Hoje de manhã...

– Não lembro...

Falei?

– Mas...

– Era só jogar uma água!

Sei que está escrito que devemos “honrar pai e mãe”.

– Mas o senhor man...

– Que tal ir para a plantação agora?

Que devemos amar nossos irmãos.

– Está certo...

Que devemos amar os nossos inimigos.

– Mas se lave primeiro, você deve estar fedendo como um porco.

Que devemos amar o nosso próximo como a nós mesmos.

– Mais alguma coisa?

– Os porcos gostaram da companhia?

Mas devia haver alguma coisa sobre tios “engraçadinhos” e sobrinhos inocentes...

Bom, o dia passou rápido. Sem mais piadas. Continuei fedendo o resto da tarde, sem esquecer que ainda escorreguei na lama quando retornava pra casa, o quadro estava completo, não faltava mais nada. Era preciso ser um tipo muito especial para ver um dia tão idiota terminar de forma tão terrivelmente estúpida e suja.

Mas a pequena fazenda estava em ordem. Em muitos aspectos, despertava a cobiça dos nobres das redondezas. Não tínhamos servos, não queríamos, trabalhávamos duro, e muitos não entendiam. Chegavam a nos odiar devido ao nosso modo de levar a vida, com trabalho e esforço. E Deus nos abençoava, o que só nos fazia prosperar.

O céu já escurecia. A minha casa despontou no horizonte, estava acesa e era convidativa. Mas eu deveria ir para casa de banho antes de me instalar na residência. Entrei pela porta da frente. Precisaria preparar um novo banho.

– Que dia! – reclamei.

Foi quando vi que a água já estava pronta, pelo menos alguém se lembrou de deixá-la assim para quando eu chegasse. Estava pronto a tirar toda aquela lama e fedor do corpo.

– Você está bem? – perguntou uma voz de súbito, era a minha mãe, Lien.

– Há quanto tempo a senhora está aqui?

– Quem você imagina que preparou o seu banho? Sien?

– Ele hoje estava bem-humorado, prefiro o tio bem sério. Ele não sabe fazer piada.

– As dele são melhores que as suas...

– Será?

– Você está fedendo.

– Prefiro ele sério, está me assustando.

– Pobrezinho. Ele tem um motivo. Cuidou bem da plantação?

– Cuidei. Não vi nenhum problema. Que motivo?

– Recebemos uma carta dizendo que o seu pai aportará em breve em Macau.

Não pude conter a emoção.

– Quando o papai chegará?

– Algo entorno de um mês.

– Que ótimo! Vou mostrar a ele o quanto evolui! Será que ele me leva na próxima viagem? Como terá sido a sua última missão? Será que ele vem acompanhado de alguém? Será que o tio Ray e a tia Akemi também virão? Será...

– É melhor você se limpar, vamos conversar com mais calma na hora da janta.

A mamãe saiu enquanto eu me mantinha admirado! Meu pai ia voltar! Meu Deus, isso era maravilhoso. Queria que os dias passassem logo para que eu pudesse vê-lo. Estava morrendo de saudades. Na janta, à noite, encontrei toda a família: A minha mãe, Lien; Xiaoli, minha irmãzinha; Yu, irmã mais velha de minha mãe e esposa de Sien; e a pequena Hua e o Liang, meus primos. Liang tinha a minha idade. O meu tio entrou logo em seguida. Yu e minha mãe puseram a mesa e serviram a todos.

– Meus irmãos de armas virão amanhã. – disse Sien. – Vamos nos preparar para receber o nosso outro irmão de braços abertos.

Quando o meu tio se referia a “irmão de armas”, ele queria dizer sobre o mestre Lao e o guerreiro Jiang-Quo, homens valentes que acabaram tornando-se amigos em meio a tantas aventuras. Eles também eram os meus mestres de armas. Possivelmente, eles passariam os próximos trinta dias à espera de meu pai, ajudariam na fazenda e no meu treinamento. Estava muito feliz. Conversei sobre o meu pai, queria mais informações, nem que fossem inventadas, apenas para acalmar o meu ânimo.

– Não se esqueça dos porcos amanhã de manhã! – dizia ele me remedando.

E o tempo passou, todos comeram e foram descansar. Eu demorei a adormecer, só pensava no meu pai e as suas aventuras, mas consegui. As horas passaram e me alegrava com a notícia de que meu pai logo estaria de volta. Saudade. Minha imaginação mostrou-se bem ativa naquela noite, mesmo dormindo. O meu sono mostrou-se leve. Foi então que eu ouvi o que me pareceu algo rondando a casa. Com o sono leve, fui o primeiro e único a despertar. Levantei-me para enxergar, mas foi inútil. Aproximei-me da janela, mas nada captei.

A noite já encobria a terra com perfeição. Fitei ainda com mais força em meio à escuridão, minha visão acostumou-se ainda mais com a falta de luz, mas parecia inútil. O silêncio ainda era rompido por algo que parecia o barulho de passos em meio às folhagens, agora distantes. O que poderia ser? Pensei em chamar o meu tio, mas dei lugar à minha curiosidade, pulei a janela.

Foi a última coisa que vi.

Acordei dopado. O dia já estava claro, meus olhos doíam. Alguém havia me contaminado com algo capaz de obscurecer meus sentidos. Talvez uma seta expelida. Mal podia enxergar. Foi quando vi os meus captores. Havia um brutamonte com um braço da largura da minha cintura, um guerreiro que parecia ser um oficial do exército do imperador, e uma mulher muito bonita, porém em trajes menores, talvez ela quisesse ser sensual.

– Moça, – disse, não pude me conter. – você está pelada...

O tapa que levei dela quase deslocou o meu queixo, mas não perdi a piada sem-graça. A viagem durou mais uma hora. Bom, o que havia acontecido era o seguinte: eu havia sido seqüestrado. O mensageiro que trouxe secretamente a carta do meu pai foi seguido e morto após entregar a missiva. Agora, eu estava à mercê desses palhaços e de um pequeno exército do imperador, algo entorno de duzentos homens. Acho que era o “Serviço Secreto” do imperador. Eles desconfiaram da minha família, talvez por causa de alguma denúncia vazia de um dos vizinhos nobres das redondezas que cobiçavam a pequena propriedade do meu tio para si. A denúncia era simples: independente de provas, bastando a denúncia, haveria a averiguação. Normalmente, esse serviço bate na porta da frente e tortura o chefe da família em busca de indícios de planos contra a vida do imperador ou uma revolta armada. Por fim, aquela terra ficaria abandonada até o primeiro posseiro tomar o terreno. Algo muito normal naqueles dias.

Mas a minha família não tinha nada de normal, então eles decidiram averiguar mais fundo, descobrindo que o fim do abismo era muito mais abaixo. Será que estão desconfiando realmente que somos traidores do império? Eles queriam saber quem era esse estrangeiro de nome “Sir Gregory” que enviava cartas àquela residência. Capturaram logo o mais jovem com a intenção de torturá-lo, pois suportaria menos a dor. Sabe de uma coisa? O vizinho não vai ganhar só as plantações do meu tio, vai acabar sendo premiado por apontar a ‘grande conspiração contra o império’, ou vai ser denunciado também e acabar que nem eu...”

***

A Corrida Contra o Tempo:

Nada Está Perdido.

“Viajamos por horas, tangenciando os limites da floresta, cortando-a, por vezes, em suas estreitas estradas. Cheguei à pequena fazenda do mestre Sien, acompanhado de Jing-Quo. Já era de tarde. Vi a suntuosa casa despontando no horizonte.

– Lá se encontra a morada de nosso amigo, Lao. – disse Jing-Quo, tão empolgado quanto eu. As aventuras que havíamos travados juntos, lado a lado, eram reavivadas quando observávamos aquela casa. Cada golpe, cada investida, cada fulgor de vitória corria à nossa mente com força.

Mas, apesar de toda a empolgação, nos aproximávamos em silêncio e, à medida que nos aproximávamos, percebíamos algo de diferente no ar. Aquela casa não demonstrava a habitual alegria. Lien, mãe do pequeno Li, me olhou de longe. Foi então que tive o primeiro indício do que estava acontecendo: seu olhar estava profundamente triste. Temi pela criança. Sien veio em minha direção.

– Olá, meus amigos. – disse ele de forma sóbria.

– O que está acontecendo? – perguntou Jing-Quo.

– Estamos apreensivos, meus irmãos.

– Do que está falando?

Sien respirou. Olhou para os demais dentro da residência, também olhei. Vi a sua cunhada ajoelhando, fazendo preces ao seu Deus.

– O pequeno Li desapareceu. – respondeu. – Não o encontramos em parte alguma. Na primeira hora da manhã, já não tínhamos idéia onde se encontrava.

A situação era séria.

– Não consegue imaginar onde ele poderia estar?

Sien balançou a cabeça negativamente olhando para baixo, olhar perdido.

– Não sei o que farei para encontrá-lo, não há nenhuma pista. Até ontem, ele estava tremendamente empolgado com a notícia da volta do seu pai, mas, agora, está desaparecido. Eu não consigo entender.

Respirei.

– Se ele não está aqui, – comecei a concluir. – é contra a sua vontade.

– Mas onde ele poderia estar? Quem poderia nos dizer?

Olhei novamente para o interior da casa, vi Lien ainda ajoelhada, rezando ao seu Deus, em prantos.”

***

Deus É Bom:

O Caminho Foi Traçado.

“Procurei o meu filho por toda a parte, meu cunhado, minha irmã e meu sobrinho ajudaram na buscar. Porém, foi tudo em vão. Quando vi os queridos amigos de minha família se aproximarem e receberem a estarrecedora notícia de que Li havia desaparecido, não suportei a dor. O pranto tomou minha face e, a tristeza, o meu coração. Ajoelhei ali mesmo, onde estava, sem me importar quem quer que estivesse olhando. Meu filho havia desaparecido sem dar sinal de vida. Não havia mais nada a fazer. Foi então que recorri a Ele:

– Oh, Senhor dos Exércitos, Deus da minha vida, que está assentado no mais alto e sublime trono; O Senhor é Deus, o Senhor somente, de todos os reinos da terra. Pai, inclina os ouvidos e ouve. Abre, Senhor, os olhos, e olha; e veja o que tem ocorrido contra a casa dos teus servos, a qual enxergam com maus olhos os teus filhos, e afrontam o Senhor, o Deus vivo. Verdade é, Senhor, que nada sei o que fizeram ao meu filho, e que seu destino continua em total segredo. Agora, pois, Senhor, nosso Deus, livra o meu filho das mãos do inimigo, para que todos saibam que só tu és o Senhor.

Continuei com os olhos fechados por um bom tempo, meu filho estava perdido e eu estava aflita. Permaneci ajoelhada, sem saber mais o que dizer a Deus, apenas tremulando os lábios, parecendo estar embriagada. A agonia era tanta. Parecia estar sufocada pelo ar que não cabia em mim. Toda a dor vinha como lágrimas.

– Deus...

E as horas passaram e a busca permanecia, ninguém ousava me interromper.

– Lien... – disse uma voz do lado de fora de casa que não pude reconhecer. Abri os olhos de súbito e virei a cabeça para ver quem me chamava. Vi um homem diferente, imponente, porém manso. Um sorriso afável estampou-se em seu rosto. Não pude entender o que estava acontecendo. Foi quando pisquei e, ao abrir os olhos, aquele homem não estava mais lá. Porém continuei olhando fixo na direção onde outrora havia estado aquele homem. Minha visão foi se acalmando aos poucos com aquele susto. Então percebi, no horizonte, uma nuvem carregada e pronta a se precipitar, sendo cortada impiedosamente por raios, acompanhado pelos estrondos dos trovões. Levantei-me ainda atônita com tantas coisas estranhas acontecendo à minha volta, cambaleei, quase caí. Meu sobrinho, Liang, apareceu de súbito e me sustentou.

– A senhora está bem?

Apontei para a direção das nuvens.

– Meu filho está lá...

– Aonde?

– Onde a chuva cair, meu filho estará.”

***

Uma Investida Covarde:

Rumo ao Presente.

“É, eles me pegaram. Depois de tanto treinar contra qualquer investida, eles haviam conseguido me capturar. Estava dentro de um casarão, estava chovendo muito. Ele era grande e só tinha uma janela lá no alto. Sinceramente, eu não queria olhar a cara do tio Sien quando ele viesse em meu socorro (se é que ele conseguiria me encontrar). Ou talvez eu quisesse, pois já estava ficando sem paciência. Já tinham me dado todo tipo de soco e chute que pudesse imaginar. Estavam cogitando levantar minhas unhas e me arrancar um olho. Como um adolescente de 13 anos, tinha certeza que isso teria uma certa seqüela física e psicológica em meu desenvolvimento.

Bom, tá certo. Essa foi a primeira armadilha que já pude ver sendo executada, e eu caí direto nela. Meus braços estavam dormentes e latejando. Minha cabeça, girando feito um redemoinho. E, amarrado naquele poste, eu não conseguia me mexer. Eu tentei contar quantos soldados tinham naquele lugar, além da mulher ‘pelada’, do ‘brutamonte’ e do ‘oficial da guarda’. Contei mais de cem, e o número não parava de crescer, isso era preocupante. Alguns soldados permaneciam ali dentro do casarão, parados e me observando enquanto levava uma surra do oficial. Ora ele revezava com a mulher, ora, com o brutamente. Seja como fosse, eles sabiam bater pesado. Quando estava para apagar, eles me reanimavam com água fria e tapinhas no rosto, tinha certeza que isso acabaria com um desenvolvimento saudável...

Eles queriam saber sobre o estrangeiro e a carta, falavam sobre o meu pai. Não podia dizer nada. Eles temiam uma invasão do território por exércitos dos povos europeus. Se eu contasse que ele era um dos generais responsáveis por um exército de proporções inimagináveis, mas que não tinha nenhuma intenção de invadir o império chinês, garanto que em nada melhoraria a minha situação. Só fico me perguntando por quê? Por que justo eu fui o escolhido para ser seqüestrado? Ainda sou uma criança! Será que imaginaram que eu revelaria os nossos segredos mais facilmente?

Opa! Meu Deus! Eu estou realmente questionando as atitudes de um grupo composto de um suposto oficial, uma mulher quase pelada e um brutamente com cara de imbecil? Realmente, a tortura estava fazendo efeito! Imagina o que motivaria aquela mulher a sair daquele jeito? Seria essa uma de suas armas? Atrair os homens e deixá-los sem saber como reagir frente a ela?

Bom, a faca foi retirada da brasa, vão arrancar o meu olho. Dessa vez é o oficial quem vai administrar a tortura. Foi quando ouvi um alvoroço lá fora, os soldados começaram a correr para ver o que estava acontecendo. A mulher e o brutamente também saíram. O oficial permaneceu na casa com alguns soldados. Meu Deus! Uns quatro soldados foram arremessados pela porta do casarão (desnecessário dizer que era o meu tio, correto?).

Sien, minha mãe, mestre Lao, Jing-Quo e meu primo Liang vieram me resgatar, era a família em peso. Foi engraçado ver o grandalhão brutamonte mais atrás, se levantando do chão, coçando o queixo.

– Você não vai ganhar essa briga, soldado. – disse meu tio ainda na entrada. – Este não é o melhor jeito de descobrir traidores do império.

Comecei a ver como faria para me livrar das minhas amarras, meio difícil; se não fosse, já teria feito se fosse fácil.

– Sou um oficial da guarda. – respondeu aquele idiota ainda com a faca em brasa na mão. – E estou preparado para enfrentá-los.

O local estava cercado por soldados, do interior do casarão ao seu redor, a chuva caía com força.

– Ambos os lados acreditam em sua superioridade, – continuou o meu tio. – mas tenho uma proposta a lhe fazer.

O oficial olhou com desdém.

– O que vocês pretendem?

– A gente não tem motivo para lutar.

– Não? – era eu, não me contive.

– Nós pegamos a criança e partimos em paz.

– Vocês só podem estar brincando... – retrucou o oficial.

– Concordo. – era eu de novo.

– Não quero nada de vocês que já não é nosso, oficial.

Interessante essa idéia de ‘propriedade’ do meu tio.

– Não queremos ir contra o imperador. Não estamos tentando impedir o serviço que vocês prestam. Mas vamos voltar para casa levando o garoto com a gente.

Era um bom plano o do meu tio: era certo que nos machucaríamos muito contra todos aqueles homens, por isso era bom tentar resolver tudo ‘amigavelmente’.

– Eu quero respostas.

– Vocês vão sobreviver sem elas. – adoro o meu tio.

– Quem é Sir Gregory?

– Não vale a briga. – insistiu o meu tio. – É apenas um mau negócio. Ambos perderemos muito. Deixe-nos partir com o garoto, em paz. Se fôssemos algum tipo de traidores do império, é certo que esta conversa não estaria existindo. Além disso, temos mais coisas para nos preocupar.

– É? Que coisas?

– Existem inimigos que vocês não podem lidar, por isso estamos aqui. Deixe-nos ir.

Consegui soltar uma mão.

– Não. – respondeu sacando a sua espada. – Eu tenho uma idéia melhor: vocês se entregam ou os passarei à fio de espada. É quase poético, não acham?

Com uma mão livre, a outra se soltou automaticamente.

– Uma pena... – concluiu o tio Sien.

O brutamonte e a mulher quase pelada já estavam à retaguarda deles. Minha mãe virou-se para enfrentar a despudorada, desferindo-lhe um soco direto no rosto. Mestre Lao já se virou golpeando o queixo do brutamonte sem piedade, um belo chute. O grandalhão caiu alguns metros para trás fora da casa. Sien arremessou uma espada em minha direção, contando que eu já tivesse retirado as amarras que me prendiam, é claro que eu já o havia feito. Apanhei a arma e apontei para o rosto do oficial, completamente despreparado.

– Queria arrancar o meu olho, não é? – falei enquanto ele se colocava em guarda com a sua espada.

A batalha acirrou-se dentro do casarão.

Meu tio avançou contra o oficial e o resto da família se concentrou nos demais soldados.

O brutamonte tentou retornar para o interior da casa, seguido de mais alguns soldados, mas levou outro chute do mestre Lao, seguido de uma estocada do bastão que carregava como arma, golpeou-o direto no peito. O grandalhão ajoelhou-se com a mão no local onde havia levado o golpe. Lao levantou o bastão mirando novamente o rosto.

– Tão grande e tão frágil. – disse. – Isso é ridículo!

Naquela hora, achei que o golpe havia quebrado todos os ossos da sua cara, mas não pude ver o desfecho, a luta se desenrolou para fora da casa.

Minha mãe estava ensinando direitinho como aquela mulher deveria se vestir. A mulher tentou atacá-la com a sua espada, foi bloqueada e teve o seu abdômen nu cortado de baixo para cima pela espada de minha mãe, aquela cicatriz ia ficar feia. A mulher não conteve a expressão de ódio ao ver o que chamava de ‘belo corpo’ ferido tão facilmente e profundamente à espada. Ela avançou de novo contra a minha mãe, agora eram as duas pernas desnudas que recebiam os golpes (talvez lutar sensualmente funcionasse com o sexo oposto, mas acho que a minha mãe estava adorando fazer aquilo). A luta prosseguiu para o lado de fora da casa e isso era bom, porque, dentro do casarão, a situação não era melhor.

Havia o oficial e os demais soldados. O tio Sien, Jing-Quo, Liang e eu estávamos envolvidos contra eles.

– Ataquem para matar ou não sairemos vivos daqui! – gritou Jing-Quo golpeando três dos soldados do império.

– Ele está certo! – era o meu primo, ele era tão sério quanto o tio. Além do mais, era um ótimo guerreiro. Só naquele momento, ele já havia derrubado mais quatro soldados à fio de espada.

– Calma, filho! – retrucou Sien, medindo forças com o oficial. – A vida em primeiro lugar!

Livrou-se do oficial e cortou outros tantos, mas sem matá-los.

– Se não o fizermos, com certeza morreremos aqui, pois eles estão dispostos a nos matar.

– Senhor Jing-Quo, – era eu derrubando outros dois, mesmo muito ferido. – não dê idéias a eles, está bem?

Sien retornou a enfrentar o oficial.

– O senhor é um tolo. – disse Sien. – Já derrubamos mais de uma dezena dos seus homens e sequer fomos feridos. Deixe-nos partir!

– Não! – gritou o oficial. – Acabem com eles!

Nunca acreditei que esse tipo de ordem dobrasse a força de vontade dos seus comandados, mas não é que teve efeito? Os soldados redobraram os esforços em nos derrubar.

– Jing-Quo! Liang! – ordenou o meu tio. – Derrubem o máximo que conseguir! Joguem-nos para fora desse casarão!

E não é que esse tipo de ordem também pode surtir efeito? Os dois começaram a acuar os soldados contra a saída de forma formidável, eles eram guerreiros incríveis. Ah, acaso já disse que o meu primo, Liang, é da mesma idade que eu? Se eu sou um bom guerreiro na minha idade, Liang é um prodígio, deve estar tudo no sangue. Mas qual foi a surpresa ao ver que os guerreiros cercaram a minha família e tanto o meu primo quanto Jing-Quo também foram obrigados a recuar para fora da casa. Seria esse o cumprimento da ‘poesia’ daquele oficial idiota? Não importava o quanto lutássemos, seríamos passados a fio de espada? Bom, pelo menos encontrariam o mestre Lao e a minha mãe lá fora. Boa sorte!

Interessante que eu notei que os soldados apenas gritavam, inclusive o oficial. Ninguém ali se comunicava um com o outro durante a batalha.

– Sabia que vocês são muito quietos? – disse enquanto derrubava mais um. Qual não foi a surpresa ao ver que a brincadeira resultou em que, a meu ver, quase a totalidade dos soldados ali presentes veio em minha direção para me matar. Não brinco mais!

Tá, eu sei, mentir é pecado...

– Ei! Um por vez! Tem bastante de mim para todos!

Esquivei da maioria, mas surgiram mais.

– Assim não dá! É isso que eu chamo de um bocado de soldados!

Sien continuava a luta com o oficial, incrível um inimigo resistir tanto tempo contra o meu tio. Ele empurrou o oficial, este perdeu o equilíbrio caindo em meio ao ‘mar’ de soldados.

– Já estou indo ajudá-lo!

– Por que estamos aqui mesmo?

Sien posicionou-se do meu lado.

– Viemos salvar você.

– Ah, é...

A batalha continuou com o que parecia com um ‘exército’ de soldados e nós, dentro daquele casarão. Comecei a ter receio. O resto da minha família não retornava para nos ajudar.

– O que vai fazer com que essa luta pare?

– Somente quando derrubarmos todos.

O oficial inimigo surgiu de repente, seguindo o seu ataque contra Sien. Ao mesmo tempo, do lado aposto, mais três soldados avançaram para tragar a vida do meu tio. Foi quando ele desviou-se. Interessante foi ver a espada do oficial atravessar a garganta de seu subalterno, ao mesmo tempo que duas espadas dos soldados transpassavam o ‘valente’ oficial. Sei que Sien não disse uma palavra, mas garanto que, se dissesse, seriam as seguinte, quase remedando o nosso inimigo: - ‘considere isso como Justiça Poética’...

O oficial caiu no chão sem dizer uma única palavra, os demais soldados recuaram. Acreditei que a luta terminaria, mas foi o contrário. Eles nos fitaram com um ar de ódio e desespero, então avançaram com ainda mais determinação. Eles agora desejavam a nossa morte por vingança, ou não desejavam voltar de mãos vazias ao imperador e tinham medo da sentença que poderiam receber, possivelmente seria a morte.

Eles começaram a rasgar a minha carne com força, sem se importar de receberem os meus golpes como resposta, parecia que muitos já acreditavam já estar mortos. Eles avançaram sem dar valor às próprias vidas. Antes, morrer em missão do que sofrer uma execução. O mesmo aconteceu com Sien, avançaram desmedidamente, ferindo-o sem que seus agressores sem importassem de serem golpeados. Tivemos de segurar os nossos golpes.

A luta, após a derrocada do oficial, demorou pouco mais de cinco minutos, mas pareceu durar uma eternidade. Lembrei-me da minha mãe. O que havia ocorrido com os outros? Ficamos deveras feridos, minha roupa tingiu-se de sangue. Comecei a sentir tudo escurecer.

– Vermes, vocês têm sorte de eu ter me contido! – disse o meu tio, ele parecia estar muito nervoso com a reação covarde dos soldados. Estávamos muito machucados. Mas já tivemos situações piores. Bom, na verdade, nunca tivemos, mas gosto de pensar assim. Comecei a me sentir muito fraco e isso era óbvio. Depois de uma longa tortura e essa última leva de inimigos, não teria muito mais de mim para continuar.

Porém, meu desânimo aumentou: uma segunda leva de inimigos se apresentou bem à nossa frente, viram o oficial morto, entenderam a situação, iam tomar a mesma atitude imbecil dos seus antecessores. Meu tio os olhou ainda com mais determinação, ele parecia diferente, determinado, vidrado em um objetivo. Sei que ele era o mesmo, mas parecia muito superior ao que estava acostumado, estava diferente. Ele olhou para mim, eu queria continuar a lutar ao seu lado, mas as minhas pernas arquearam na altura dos joelhos, minha espada veio ao chão. Tudo escureceu. Só lembro-me do meu último pensamento: ‘Tio, acaba logo com eles e vamos embora pra casa’...

Apaguei apenas por alguns minutos.

– Li... – foi o que eu ouvi lá no fundo, estava tudo escuro. – Acorda! – senti alguém segurando a minha mão. – Temos de sair daqui! – abraçando-me. – Li... – escutei um choro.

Abri os olhos devagar, meu tio estava horrivelmente machucado, mas havia vencido cada inimigo, ele se mostrou aliviado ao me ver abrir os olhos. Estendi a mão em direção ao seu rosto, por que ele estava chorando?

– Obrigado... – falei.

Ele me olhou com os olhos carregados, parecia que eu estava morrendo, mas não sentia nada além do normal, se é que estar cheio de feridas à fio espada seja normal.

– Perdoe-me... – disse ele engasgando. – Deus...

Eu não entendia aquela situação. Eu me sentia bem, não sentia nenhuma dor. Foi quando senti tudo escurecer de novo”.

***

Fim De Uma Investida Covarde:

Mais Uma Oração.

“Eu amava Li como ao meu filho. Para mim, Liang e Li não eram primos, mas irmãos. Quando o vi morrendo em meus braços, coberto de sangue, senti o mundo rodar. Lembrei-me de minha cunhada, de minha irmã e da responsabilidade que tinha frente a Sir Gregory. Então, quando senti o seu último suspiro, orei como nunca havia orado antes. Minhas lágrimas banharam o seu rosto.

– Salva o meu filho, Deus, pelo Seu nome, e faze-nos justiça pelo teu poder. Deus, ouve a minha oração, inclina os seus ouvidos às palavras da minha boca. Porque os estranhos se levantam contra nós, contra o meu pequeno sobrinho, e tiranos procuraram por sua vida. Restaura a vida do meu filho, Pai. Perdoa as nossas dívidas. Dou a ti total liberdade de agir sobre essa criança. Louvarei o teu nome, Senhor, porque é bom, pois nos tem livrado de toda a angústia. Restaura a sua vida, Pai, eu lhe peço...

Li tossiu de repente.

– Eu estou bem, tio. – disse ele com aquele sorriso maroto e sem-vergonha, ele estava bem, graças a Deus.

Não pude conter que as lágrimas dessem lugar a um sorriso. Sei que sou tido como um homem sisudo, mas são justos os mais duros que racham com mais facilidade.

Meu sobrinho não tinha mais condições de se levantar, ergui-o no colo e comecei a me dirigir para a saída do casarão. Do lado de fora, a chuva ainda caía. Percebi que todos os demais soldados estavam derrotados. O meu filho Liang se mostrava poderoso, sentado sobre uma pilha de soldados. Mestre Lao e Jing-Quo descansavam, sentados, cada um em uma pedra, apoiados em seus bastões. O brutamonte e a mulher esguia estavam por terra. Minha cunhada não se conteve ao me ver carregando o seu filho. Lien veio correndo em minha direção.

– Filho! – disse ela.

Ele sorriu.

– Eu estou bem, mamãe. – respondeu enquanto ela se aproximava. – Vamos pra casa...

O garoto fechou os olhos. Todos se levantaram e tomaram rumo, juntamente comigo.

Tudo ia ficar bem.

Por fim, os líderes haviam morrido, não haveria uma segunda investigação, as informações não foram passadas à frente. Continuaríamos incógnitos novamente.

Até que o inimigo se levantasse novamente..."

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Boa Leitura!

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" Contos Era Heróica" são contos anteriores à trilogia "Os Confins da Terra", clareando dessa forma um pouco mais o contexto da história e onde cada personagem se encaixa.

Neste caso, veremos um pouco mais das aventuras vividas pelo Guerreiro Sien e jovem Li, sendo este ainda um pequena criança.

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J M Silveira
Enviado por J M Silveira em 09/08/2010
Reeditado em 10/09/2010
Código do texto: T2427883