Os Nove

Chego na sombra da figueira. Mantenho as medidas do trampolim na cabeça. O Cabalista já me aguarda na escuridão. Reconheço sua silhueta, parece uma coruja fumegante.

Trampolim. Não posso esquecer. Suas origens repousam na Idade Média, nas performances dos acrobatas de circo. O que preciso lembrar: comprimento de cinco metros, largura três e altura um. 531. Eram esses os números que eu havia sonhado e essa era a regra de ouro: jamais esquecer os números do sonho.

Sou uma Sonhadora. Uma escolhida.

O Cabalista se aproxima soturno. Traga o cigarro. Indago:

-Tem um desse pra mim?

Ele estende maço e fogo. Acendo. A fumaça se estica languidamente. Nicotina balança minhas veias. O Cabalista é frio, parece talhado em gelo. Pergunta zombeteiro e afiado:

-Não tinha parado?

-Depois do que sonhei noite passada, acredite... Não é pra qualquer um.

-Quer me contar?

-Você não entenderia, é impossível ser descrito.

-Tente.

O Cabalista têm olhos cinzentos. Olhos de lobo e chuva. Eles me encaram agudos e diante meu silêncio prosseguem:

-Sempre admirei você Sonhadora, dizem que não é fácil... Encarar a noite escura da alma.

-E eu nunca entendi você Cabalista. O que faz com os números?

Ele repetiu minhas palavras:

-Você não entenderia, é impossível ser descrito.

A noite parece crua e gotas começam a cair. O Cabalista abaixa apoiando-se no tronco da figueira. Eu me protejo com o capuz da minha jaqueta.

-E agora? Vamos procurar abrigo?

-A árvore nos protegera da chuva. Vamos ao que interessa. Quais são os números?

Sempre que eu sonhava com números ligava para o Cabalista e marcávamos um encontro. Os números só podiam ser ditos pessoalmente e ele fazia questão de que fossem sempre ali, no palco da portentosa figueira. Eu queria um lugar mais no centro, um cafezinho ou pizza, quem sabe.

-Por que nossos encontros são sempre aqui? Podíamos mudar de cenário, não?

-Não. Você já se colocou no lugar dessa árvore? Ela é centenária! Sempre esteve no mesmo cenário, mas imagina quanta coisa ela viu mudar ao seu redor. Você não precisa sair de um lugar para ver algo diferente. Já pensou nisso?

Olho para os grossos galhos. Lembravam uma mão com dezenas de dedos. A chuva estanca e a árvore chora mais algumas gotas. Parece cansada. O Cabalista continua:

-As coisas nunca são as mesmas, menina. Por mais iguais que pareçam, é uma equação que tende ao infinito e o dois nunca será igual ao um...

Ele acende mais um cigarro, dessa vez a fumaça rola descontroladamente. Pergunta entre um trago e outro:

-E então? Os números?

-531.

Retira uma caderneta de couro pardacento do bolso. Anota o número cuidadosamente.

-Ótimo guria. Muito bom.

Fico admirando a brancura das mãos dele. Sempre quis saber o motivo de nós dois sermos escolhidos. Qual o critério daquela seleção? O que nos tornava diferente dos outros? Nove pessoas. Fomos encontrados pelo Instrutor que ensinou a cada escolhido o que realizar. Nós, os Nove, éramos responsáveis pelo equilíbrio do mundo. Por que o Instrutor nos escolheu?

Quando conheci o Instrutor achei que ele era louco, um pirado completo. Depois ele me mostrou a Essência e tudo mudou. Virou meu guru. Foi ele que me ensinou como percorrer as dimensões dos caminhos do sonho e capturar os números sagrados. Reclamo para o Cabalista minha recompensa por realizar aquele trabalho.

-E então? Onde está? Eu preciso da Essência.

-Calma... Não é você que precisa dela. A Essência que precisa de você.

Ele estende o pequeno receptáculo de ônix contendo o que há de melhor nesse mundo. A Essência. Como explicar algo assim? É como se Deus pudesse ser engarrafado.

-O Instrutor disse que deve durar até a próxima lua nova.

Agarro-me ao frasco da forma mais delicada que posso. Abro a exótica tampa em formato de gota e cheiro o conteúdo místico. Imediatamente sinto a explosão orgástica potencializada em megatons. Minha consciência se dilata como uma grande onda e devora tudo ao redor. Toma conta do mundo. Sinto o choro dos inocentes. Ouço a risada mais bela do mundo. Vejo tudo que a figueira viveu. Cada folha que caiu. Cada suspiro dissipado. Depois o tudo deságua em nada numa fração de segundos. A riqueza inominável. O absoluto.

Por um instante sou Deus.

...

Autoria: Sheilla Liz

Conto publicado na antologia "Contos da Madrugada", pela Câmara Brasileira dos Jovens Escritores, 2010.

-Conto publicado na antologia "Panorama Literário Brasileiro - Edição 2010

Os melhores Contos de 2010", pela Câmara Brasileira de

Jovens Escritores.