RÉDEAS DA VIDA
Todas as noites ele rezava. Pedia fervorosamente que algo de especial e substancial acontecesse e modificasse sua vida. Pedia assim... Qualquer algo. Fazia questão de não especificar o que deveria ser mudado, um esperto estratagema criado por ele para não forçar a barra do Senhor com vistas a obter o milagre, abrindo ao próprio divino todas as possibilidades de escolha. Além disso, sinceramente pouco lhe importava o tipo de mudança que viesse a ocorrer. Sua vida era tão insípida e sem graça que qualquer uma – mesmo a morte – lhe seria bem-vinda, desde que consentida por Deus. Com este intuito é que orava, abstratamente, idealmente, todas as noites, sem falhas e omissões, sem substituição de palavras ou a mínima inversão ou supressão de conteúdo.
Não, ele não repetia o padre-nosso, a ave-maria, ou qualquer outra oração de cunho cristão por menos notória que fosse. Sua súplica era inteiramente erigida de frases próprias capturadas do inconfundível vocabulário dele, uma sua marca registrada perante Deus. Agindo assim, pensava, Deus não o confundiria com uma beata qualquer ajoelhada por aí. Ao contrário, o reconheceria facilmente pelo estilo inconfundível em contraste à enorme concorrência de tantas e diferentes rezas disseminadas no universo. Mas o primordial motivo a se considerar era que, para orar-se com devoção, as palavras tinham que brotar do coração. Nada melhor do que frases cunhadas de lavra própria para representar com dignidade um coração transbordante de fé. E olha que sua prece - do jeitinho original que era - realmente o enlevava. Quantas e quantas vezes derribou-se em lágrimas, entre soluços entrecortados em convulsão, tamanha a emoção que lhe embaçava olhos, tremelicava as mãos, lasseava as pernas... Eram anos a fio nesse ferrenho ritual. Durante a oração nunca descuidava de cultivar a fé ou permitia que a ladainha repetitiva da prece se perdesse na mecanicidade, embotando suas sagradas intenções.
Foi numa noite de domingo – ironicamente no domingo, dia notoriamente devotado à prece – que ao preparar-se para iniciar as primeiras sílabas de sua reza, notou, surpreso, que algo inexplicável acontecera. Nada o fazia lembrar-se de sua tradicional reza, mesmo de trechos, e, depois, conforme ia checando, sequer algumas parcas palavras. Tentou de todas as maneiras que conhecia retornar à mente a prece, mas não havia meios. Chegou a repetir ritualisticamente, uma por uma, as ações que usualmente tomava antes de rezar. Nem assim veio-lhe qualquer algo. Como poderia ele, depois executar sem hesitar sequer em uma vírgula, milhares de preces idênticas, ser totalmente devastado do conteúdo dela e da forma tão devastadora e cruel como estava acontecendo? Era como se alguém tivesse cavado um abismo em suas entranhas espirituais e depois lançado desfiladeiro abaixo todas as letras que formam sua prece, inclusive as de rezas passadas e futuras. Aquele inaceitável lapso começou a exasperá-lo sobremaneira, ainda mais quando se deu conta que o teor da oração não voltaria à sua mente nem com reza brava, com perdão do paradoxo. Sentimentos incontroláveis em revolução tomaram sua alma na forma de um remoinho tormentoso de sentimentos de desesperança e abatimento misturados à cólera, flagelo, frustração... A perda de controle emocional refluiu para seu corpo no mesmo formato. Começou a rodopiar igual a uma pomba-gira num terreiro de umbanda, com os braços estendidos de cristo redentor. Acertava em tudo quanto braços e mãos encontravam à frente durante os corrupios. Nessa, foi para o chão, um após outro, livros, porta-retratos, vaso, abajur, uma imagem de São Francisco, até o aparelho de som. Acompanhado dos giros de dorso ele disparou um berro fino, gutural e contínuo, vindo do final do fundo de seu abdome em desalento. Após uns bons minutos, já bastante tonto, cansado e esvaziado, caiu prostrado à cama, quieto, sem mais esperneios ou outras reações violentas. Nunca, em toda a sua vida, sentira-se tão desamparado, tão solitário, nem quando passou três anos trabalhando no interior do Amazonas sem poder voltar para casa. Dormiu ali, devastado, do jeito que estava. Ecoava-lhe apenas uma frase recidiva à mente: - Pai, por que me abandonaste?
De em diante não mais rezou. Não via como. Interpretou aquele absurdo esquecimento como um patente recado divino ou, por que não? Mundano mesmo – agora já considerava possível - de que suas preces jamais seriam atendidas. Estava tão desiludido que fez questão de esquecer ligeiro que tivera uma prece particular, e por vontade própria. Seu estado interior era um misto de revolta e ira. Revolta por ter acreditado em excelsas ilusões aéreas e ira por ter perdido tanto tempo com essa besteira toda de reza. Em pouco tempo não escondia de mais ninguém sua fúria interior e as pessoas que o conheciam não puderam deixar de perceber a notável diferença no comportamento geral que se operara nele. Agora - por conta dessa torneira emocional constantemente aberta e pingando em seu peito - ele transmitia uma energia viva, pulsante, dirigida e, impossível aos que estivessem em contato com ele não perceberem, mesmo que inconscientemente: tornou-se uma pessoa que transmitia paixão, confiança e coragem. Como principal consequência disso, as pessoas passaram a sentir prazer em estarem ao seu lado.
Ele também fez uma promessa. Apenas para si mesmo, para mais ninguém – pois perdera totalmente a fiança em Deus –: cuidaria melhor de sua vida e dos seus, sem ilusões, sem grandes esperanças tolas e faria o que estivesse ao seu alcance para realizar o que sempre quis na vida, para poder, quando fosse retornar ao pó, ir de cabeça erguida – não se referia mais à alma ou espírito, o descrente...
No mesmo instante em que ele elaborava sua promessa, no recanto mais elevado do céu uma legião dos mais belos anjos celestes brindava, em copos de cristal puríssimo - que só lá no céu há de ter - repletos de vinho sagrado, a consecução plena das súplicas de um muito especial e devotado fiel que antes vagava infeliz sobre a Terra. Com todos os anjos posicionados num luzente círculo harmonioso e de copos erguidos esperando as palavras de ordem, proferiu o brinde, o sumo Arcanjo: - E quem mais poderia escrever tão certo e por linhas tão tortas... Glória a Deus! - Ao que viraram o sublime vinho de uma só golada. Cá na Terra, ele que acabara de terminar as falas de sua promessa, estranhamente saboreou em sua língua um gosto doce e frutado; inebriante e natural: as rédeas de sua vida.
Gê Muniz