ALBERTINA DESAPARECIDA

ALBERTINA DESAPARECIDA

Eu fugia de ti, por um caminho

De agitados ventos, céu e abismo marinho,

Seguindo em segredo e peregrino;

Foi quando teus ministros poderosos

Mostraram-me que do duro destino

Não é doce contrastar ou se ocultar.

Francesco Petrarca, Canzoniere.

Filicio Albara

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ÍNDICE

1. Fácil de fazer...

2. E se eu fugir?

3. Sobre a mesa

4. Sou a pedra oculta

5. Músico, poeta, matemático...

6. Meu dono me trata bem.

7. Você descreveu a menina?

8. Se contribuíres para a obra, irmão...

9. Ao fazê-lo, seus cachos...

10. Só podia dar nisso.

11. Veneza deserta em Abril.

12. Maldições, palavrões...

13. Gôndolas, luzes, música!...

14. Atirar-me. É o que farei.

15. Eia, Mater, Fons Amoris,...

16. Eu conheço o teu nome.

17. O Anjo refletiu por instantes.

18. Dentro de uma dessas três caixas,...

19. Santuário do Touro.

20. O que eu queria então?

21. O Rei do Sonho

22. Nunca tinha batido em ninguém...

23. ...um bode de três cabeças,...

24. Quem é você?

25. Paffuto estava triste.

26. E desmaiou.

27. Piazza San Marco.

28. Toquei com os pés...

29. uma mensagem letal

30. Pequeno mortal,...

31. Não respondi nada.

32. Sem sol, lua ou estrelas...

33. Vicentia

34. 3,6,8

35. Tomado pela hera e pela poeira,...

36. um altivo, albo, gracioso...

Epílogo monograma V

Pós-Escrito Tudo isso é bobagem

1.

Difícil contar o que aconteceu naquela tarde em que fui convidado a uma festa de máscaras no Palácio Libato. Que, aliás, não era bem um palácio, mas uma casa veneziana dessas cuja fachada dá para o Gran Canal, e que parece um sonho...!

Adianto impunemente que essa história vai muito além de simplesmente contar o que me ocorreu, em Veneza, entre duas e cinco da tarde do dia vinte e dois de abril de 1574?

Como ousar sempre é meu lema, está feito.

Quem sou eu e o que faço hoje além de escrever não é, por agora, muito importante. Mas, naqueles tempos, ter amigos poderosos era um meio de vida amplamente difundido. E disso eu, digamos, vivia. Sem brasão ou estema, assevero.

A última coisa que minha boa mãe disse antes de morrer foi:

-Tome conta de sua irmã, senão...

Nada de muito original, não é? Fácil de fazer...

-Claro, mamãe, claro!

Neste caso, não, pois Albertina... leitor, imagine alguém especial. A criança mais levada do Universo, à época de Galileu. Sete anos de pura inteligência, vivacidade e desprezo pelo irmão mais velho.

O meu amigo mais poderoso, o bispo Fabio Chigi, conhecedor do meu drama, filosofava comigo:

-Afaste este demoniozinho da Igreja.

-Não precisa repetir, Chigi.

Não vi alternativa. Albertina e eu, com a ajuda do bispo, nos mudamos de Trento, para Pisa. Embora ela já tivesse passado da idade, a matriculamos em uma escola de música. Aulas de piano e cravo estavam na moda.

2.

Surpreendentemente, a menina se apaixonou pelo novo passatempo. Como eu precisava reorganizar nossa família, o que implicava em bajular os nobres da cidade e em passar dias e noites fora, achei ótimo.Precisávamos de dinheiro; a ajuda do bispo era constante, mas modesta. Quando chegava a casa de madrugada, sempre ouvia Albertina martelando sua pianola.

Um ano se passou.Pisa não era uma cidade grande. Mercado, capela, prefeitura, torre inclinada, universidade... nada incomum. Precisei passar três dias em Veneza. Minha irmã olhou-me com raiva.

-Vou ficar só?

-Vai.

-E se eu fugir?

-Para onde?

-Muito longe.

-Eu vou te buscar e te dar umas palmadas.

-Verdade?

-É.

Parti com o coche naquela noite mesmo. Em Veneza, amigos de papai me introduziram num mundo misterioso, quase irreal, do qual falarei depois. No retorno, tinha o coração apertado, sabia que algo tinha acontecido. Chovia muito. Paffuto, o gato de Albertina, miava e circulava pela sala, amedrontado. O sol nascia já, e eu não ouvia os ruídos da pianola.

-Que foi, rapaz?

-Miao.

Subi depressa. Não havia luz no quarto dela.

3.

Sobre a mesa, um envelope com lacre vermelho. A chuva molhara o papel. Não restara nada de legível. Mas havia um símbolo: a letra V estilizada, bem grande.

Desfaleci. Que fazer? Raptaram minha irmã. Preciso de ajuda. Vou a Trento. Agora mesmo.

-Venha, Paffuto. Vamos.

-Miao!

Foi difícil arranjar outro coche, mas lá pelo meio dia encontrei Chigi no jardim de sua casa.

-Amigo, ele disse, sente-se, por favor. Quer suco de morango?

-Não, obrigado.

-Sabe, estes tempos são turbulentos. Muita gente nascendo e morrendo, e outros, pensando. Pensar cria impiedade. Gera pecado. Os pensadores se acham protegidos e inimputáveis perante Deus. E os demônios, que saem a esta hora de seus covis, disso se aproveitam.

-Chigi, o que aconteceu a Albertina? Já sei que você é um homem sábio, pois era amigo de papai. Diga o que desconfia, por Jesus!

-O monograma no envelope... o V de vnus, o Uno...sua irmã não tinha amizades estranhas?

-Como assim? Não!

-Não lia e escrevia muito, sem sair para brincar?

-Sim.

-Observava a lua e as estrelas...?

-Sim.

-Andava extremamente silenciosa e calma?

-Sim, mas pensei que as aulas de piano...

-Não, não. Amigo, creio que ela foi vítima dos...oh, odeio dizer a palavra...dos Neoplatônicos!

Engasguei. Na verdade, por respeito a Chigi, contive um palavrão, desses que abundam na nossa língua vulgar.

-Sim, meu amigo. Os heresiarcas andam por aí, pregando suas verdades sombrias não nas ruas, nas feiras, mas nos centros do saber, dentro dos colégios e faculdades, financiados por mecenas e comerciantes- seja em Bolonha, Pádova, Florença ou Nápoles.

-E a Igreja, o que pode fazer, bispo?

-Nada. Como cortar um pedaço da carne sem retirar também um pouco do sangue?

-Que eu faço? Para onde a levaram?

-Vou entrar em contato com todos os meus amigos. E rezar por uma pista. Sinto dizer que, se as informações não chegarem depressa, é sinal de que Albertina já está fora de alcance. Embarcou para Alexandria ou Constantinopla.

Respirei fundo. Nunca tivera uma manhã tão negra em toda minha vida. Pássaros cantavam no jardim de Chigi. As estátuas de Pã e Dionísio no pórtico, entreolhando-se, me davam medo. Paffuto pulou no meu colo, e partimos logo, de volta a Pisa.

Mãe, nunca a desobedeci. Sei o quanto a senhora sofreu para criar dois filhos sozinha. Vou usar o meu cérebro...pensar.

Por horas fiquei observando o envelope e o monograma vermelho. Não conheço nada de latim e grego, a missa pouco compreendo. Onde começar a procurar estes hereges malditos?

Quase que instantaneamente, as lembranças...

4.

Sentei-me no chão do quarto de Albertina. A noite estava calma, o vento, suave, encrespava as cortinas. Tudo era simples, incapaz de ocultar qualquer segredo: o piano, uma mesinha, uma cama, um espelho, livros...

Livros...partituras, cifras, música, enfim. Nada que eu pudesse classificar de religioso ou mágico. Paffuto brincava sozinho pelos cantos.

O cansaço, a memória e o sono, compartilhando a mesma essência, me arrastaram a um estado dormente, infantil. Uma luz forte a minha frente, dotada de voz humana, dizia:

Eu não sou o Deus de seus pais. Sou a pedra oculta que quebra todos os corações. Fui chamado da Aurora do Tempo por você, pois sou o teu Deus, e tenho seis olhos, um para cada nível do Ser. O Mundo é meu selo. E eu sou o Mundo atrás dele.

Você quer saber onde está a tua irmã, mas não sabe o que ela é. A minha claridade oculta; o meu sonho revela. Nesta Torre, observada pelos meus seis olhos, está Albertina, revestida pelo meu selo.

Ouvi o teu chamado, pois conheço o teu nome. O teu nome verdadeiro, que nasceu contigo, impresso sob a pele, ilegível para a Carne, invisível para o Tempo. A tua única porção indestrutível, Alberto Salvifico.

Aquela luz era real. Refletida nos olhos do gato, no espelho, refratada na água do copo sobre a mesinha. Aquelas palavras tinham algum sentido. Mas eu não queria palavras, queria pistas, indícios.

A voz prosseguiu:

Eu, o destruidor de toda Oposição, nasci do Oposto. O guerreiro pacífico aguarda no Fim dos Tempos. Sei que sofres. Sei que fazes objeção, que é uma invenção anterior ao Homem. Como uma criança, não a dominas, e ela é a tua parte infantil.

Vou te dar uma missão, pois para isso me chamaste: para encontrar Albertina, deves encontrar meus seis olhos, perdidos pelo Mundo como reflexos reluzentes do meu Ser dividido em seis níveis.Três acima, três abaixo.Três cegos e três com visão.Terás um amigo fiel no caminho, e um só. Vá.

Acordei doze horas depois. Mesmo não sabendo muito bem o que fazer ou para onde ir, preparei uma mala, peguei Paffuto e parti.

5.

Como o professor Guidorizzi é inteligente!- pensou Albertina. Músico, poeta, matemático...ele me faz trabalhar muito.

Gosto da casa dele. É grande, cheia de quadros e livros. Silenciosa e arejada.

Ele me lembra papai. Mas não conheci papai muito bem. Estranho.

O cheiro de madeira do piano é forte. As ventanas da sala, fechando e abrindo, jogam sombras sobre o teclado e isto atrapalha um pouco. Digo isso ao professor e ele manda prendê-las com laços.

Ele me trata com muita delicadeza. Não sei como ele é com os outros alunos.

Olho lá para fora, de vez em quando. O jardim com o labirinto me dá medo.

Ouço a água das fontes, mesmo de longe. O som aumenta quando chega a tarde.

Quando acaba a lição, ele sempre me dá suco e doces. Parece ser solitário, não tem esposa ou filhos.

Vou para casa a pé. Meu irmão espera, à porta. Ele é meio burro.

Gosto de brincar com meu gato gorducho.

6.

Meu dono me trata bem.

Minha dona chega à noite e brinca comigo.

Eu e meu dono viajamos, ontem.

Comi resto de peixe num jardim com estátuas.

Mas minha dona onde está?

Meu dono está triste, hoje.

Estou sendo levado numa sacola.

Outros como eu me observam.

Uma luz forte e uma voz no quarto ontem à noite, eu ouvi.

Eu gosto de quem me agrada e dá comida.

Durmo.

7.

-Então, Buonachiesa, alguma novidade?

-Sinto muito, bispo Chigi. Nada. Interroguei toda sorte de gente vinda de Pisa, Bérgamo, Roma. Comerciantes, clérigos, andarilhos, saltimbancos. E também(Deus me defenda!) rufiões, meretrizes, boêmios, poetas, pintores, ourives etc. Ninguém sabe, ninguém viu.

-Você descreveu a menina?

-Sim, exatamente como ordenou: “sete anos, baixinha, mais ou menos forte, olhos e cabelos bem negros, pele branquíssima, sardas em redor dos olhos e nariz. Geniosa e vivaz.Usando vestido xadrez.”

-E a gente dos portos?

-Nenhuma notícia. Tudo calmo, este período.

-Obrigado, Buonachiesa. Bom trabalho.

-Precisando, senhor...é só chamar.

O bispo subiu para sua sala. De lá, se pôs a observar o seu grande jardim. Lá embaixo, artistas e amigos da Igreja passeavam, bebiam, comiam, fofocavam.

Do que estarão falando?

8.

-O papa o mandou repintar o teto da capela.

-É. Eu acho isso absurdo, já que temos tantos problemas por resolver.

-Que problemas?

-Você sabe. É difícil ser artista hoje em dia. Todos dariam um dedo do pé para trabalhar para a Igreja. Mas os lambe-botas, os nepotes e os filhinhos de papai nos roubam as oportunidades.

-Se você não estudou, também, é complicado.

-Escutem, sabem de uma maneira certa de se conseguir favores da Cúria?

-Diga, logo!

-As universidades estão repletas de pensadores e opositores do Papa, como o tal Campanella e aquele pobre monge de Nola...

-Giordano Bruno? Não terá bom fim.

-Exato. Mas existe uma ala de opositores de classe alta, estudantes da Cabala e dos egípcios. No fim das contas, são todos uns hereges pervertidos, mas o velho Sisto até que gosta deles. Se você conseguir se aproximar deles e, com um jeitinho, fingir que acredita naquelas figuras matemáticas esdrúxulas e rituais macabros, pode contar que o ouro vai saltar dos cofres direto pro seu bolso. Já consegui uns e outros bicos por aí. Agora que já estou contratado, estou passando a pelota para vocês.

-Amigo, conte mais.

-Se contribuíres para a obra, irmão...

-Claro, claro! Aqui estão.

9.

Antes de partir para uma jornada ou batalha, os antigos gregos e romanos sempre consultavam adivinhos e oráculos. Eu procuro Camilla. Ela mora numa casa antiga dentro da floresta etrusca que circunda Pisa, perto de uma encruzilhada. Somos velhos conhecidos. Não digo amigos, pois suas condições e seu trabalho a mantêm muito isolada. Pequenos guizos dourados brilham quando entro em sua casa, quase à noite, sem bater.

-Como vai, senhor desaparecido?

-Bem...quer dizer, mal.

-Ah, sim. Sente-se.

Ela apaga os incensários sobre a pequena mesa de mármore, pois sabe que me dão alergia. Sentamos, olhando fixamente para um cristal octaédrico de cores vivas que ela carrega nas mãos. Ela o equilibra nas pontas dos dedos. Quando faz isso, seus cachos delicados se movimentam.

-Concentre-se, amigo.

Disse que ela usava cachos...?

-Certo. Temos um grande problema, aqui.

-É?

-Grande problema, amigo. Minha leitura não pode ir além. Não ouço o que os espíritos dizem. Há uma voz que suplanta a deles.

-Voz? E o que ela diz?

-Nada. Só sussurra. Uma espécie de encanto. Coisa velha. Do tempo da vovó:

O pai partiu numa viagem,

Para a cidade onde tem amigos

Ó grande Um, deus das imagens,

Na grande casa verde dá-me abrigo.

Lá não entro sem máscara no rosto,

Ou para o mundo estou perdido.

Filho! Deves ser corajoso, é o que te digo,

Pois cruel sempre é o Oposto.

-Jesus Cristo, o que está dizendo?

-Nada. Só o encanto, amigo.

Súbito, uma rajada de vento entrou pelas janelas. Uivos horríveis nos cercaram. Paffuto miou alto, saltando no meu colo. Tremia.

-Você tem um gato?

-Sim. Digo, é de minha irmã.

-Deixe-me tocá-lo.

Camilla o pegou. Acariciado, Paffuto prontamente se acalmou. Mas ainda manteve o olhar fixo no exterior da casa.

-Desde quando há lobos na floresta?

-Amigo, não eram lobos. Disso estou certa.

-Preciso ir. Vamos falar sobre o preço?

-Eu queria tanto um animalzinho...como este. Mas leve-o com você. Ajude-me a ir para a cama.

Carreguei Camilla no colo. Ao fazê-lo, seus cachos tocaram meu pescoço. Suas duas muletas caíram.

-Calma, disse ela. Já sabe: não olhe para o meu quarto.

Posicionei-a no leito, sem ver nada além de seu rosto.

-Obrigado. Ouça, o meu preço é este: retorne aqui quando encontrar Albertina.

-Você sabia...?

-Seu gato me contou.

-Ah.

-Cuidado. Estarei esperando.

Beijei-lhe o rosto. Ela imediatamente adormeceu. Amanhecia.

10.

Papai e seus amigos venezianos. Só podia dar nisso. Mercadores e traficantes desde os tempos de Marco Polo, com os cofres cheios de riquezas e segredos trazidos do Oriente. Será que eu mencionei Albertina? Provavelmente.

O que dissera a Voz? Cristo, estou com medo. Estas pessoas são perigosas.Tratam diretamente com forças demoníacas. Nobres e cavalheiros diante do espelho, mas, atrás dele...é um longo caminho até a cidade. E o que eu trago comigo? Uns tostões, uma espada velha e um gato gordo.

Ele nunca teve muito tempo para nos educar. Viajava muito. Sem cartas, notícias, nada. Nem sei se ainda é vivo. O bispo me disse, quando Albertina nasceu, que ouvira dizer que ele fora visto num navio, indo para Creta.

Da janela do coche eu podia ver as luzes do céu vêneto se aproximando. Eu só conseguia sentir frio, medo, solidão e sonolência.

11.

Veneza deserta em Abril. Passei uma semana sem qualquer indício de Albertina. Tranquei-me no hotel Daniele. Comia frutas que mendigava no mercado. No meu sétimo dia tive a certeza de que delirava: à noite, da janela, vi uma menina de vestido vermelho na Piazza San Marco. Corria. Era ela. Minha irmã.

Quando saí à rua, senti nitidamente que uma multidão me seguia, sussurrando, imprecando. Fugi para a igreja mais próxima. O barulho parou.

As chamas das velas, posso jurar, apagavam e retornavam. Ajoelhei por instantes. De trás do altar vi um pé de criança num sapato vermelho. Uma risada longínqua. O pé desaparecera.

Um toque gélido e vazio na minha nuca. Desembainhei a espada. Um relâmpago. Água invadia a capela, de todos os lados. Escorreguei e caí.

...

Albertina corria pela nossa antiga casa, em Trento. Mamãe fazia doces. Manhã.

O barulho de passos cessou. Fui verificar. A porta do quarto da menina rangeu. Entrei. Penumbra. Paffuto estava à janela, olhando para o alto e respirando forte.

Uma torre alta, num céu noturno. No último andar, lá fora, flutuando, um vestido cor de sangue.

Mamãe tocou-me os ombros, dizendo:

-Cuide de sua irmã, senão...

12.

Febre. Ir para o quarto do hotel.

Inundação. Oh, que vento gelado!

Água até os joelhos. Maldições, palavrões me seguindo pel as ruas.

Estou sangrando. Minha fronte está dolorida.

Chave! Chave!

Trovões.

13.

-Miao.

Incompreensivelmente, eu estava bem, exceto por uma pequena dor na têmpora. Fazia sol.

-Vamos passear, rapaz.

Nem sinal do dilúvio da noite anterior. Paffuto era todo alegria, correndo atrás dos pombos da praça. Gôndolas, luzes, música!...

Vindo de dentro das ruelas escondidas, uma trupe de palhaços, arlequins e colombinas gritava: pega! pega!

Que engraçado. Estarão atrás de quem?

-Miaaaooo!

-Albertina.

...

14.

Domingo. Chuva. Dor.

-Argh.

Sobre a mesa, um convite. O mesmo selo carmesim, a letra V.

CARNAVAL

Festa das Máscaras

No Palácio Libato

Hora Nona- HOJE

-Meio-dia. Não tenho máscara.

-Miao.

-Você não pode ir.

Quis sentir-me como um cavaleiro da época de Petrarca, mas olhei para minha espada enferrujada e quase desisti. Porém... a imagem de minha mãe e o pedido de Camilla me impulsionaram para fora do quarto.

-Onde é o Palácio Libato?

-Não sei.

-Nunca ouvi falar.

-Sou de fora, não conheço.

Apoiei a cabeça dolorida numa ponte. Xinguei tudo o que podia xingar: a vida, a sociedade, a Igreja Católica, eu mesmo. A morte era a única saída para a desonra. O sol a pino projetava belos fios brilhantes na água do canal lá embaixo. Que paz, que ausência completa de problemas, culpas e responsabilidades. Atirar-me. É o que farei. Dane-se, Alberto. Adeus.

15.

Foi quando a Torre apareceu. Cintilante, linda como um sonho. Abaixo, a mansão verde que só podia ser o Palácio. Estava a poucos metros e eu não notara a grande placa branca. Molhei os lábios. Ninguém por perto.

Bati com a maçaneta de bronze, com o formato de uma mão. O som ecoou lá para dentro, demoradamente, até que...

-Convite, por favor.

O meu silêncio resumiu todas as piores, as mais dantescas pragas do mundo. Que convite? Como, se eu o deixara no quarto do hotel!

-Deixe-me entrar.

-Não, sem o convite ou a senha.

-Que diabo de senha?

-A que estava no convite.

-Mas não tinha senha alguma.

Meu interlocutor nada disse.

-Espere, disse eu, voltando a pensar. Só...se...

-Sim?

-V.

-Muito bem. Pode entrar.

A tranca rinhou forte. A porta se abriu. Minha primeira impressão foi de ofuscamento. Todos os meus sentidos se embaralharam. Depois, vi um grupo de três pessoas nuas, altas, magras, pálidas, portando máscaras negras. Conversavam. Avancei, passando por entre elas. A mulher jovem me chamou:

-Onde está sua máscara?

O homem jovem disse:

-Não é sábio entrar aqui sem máscara...

A mulher mais velha completou:

-É para sua proteção.

Eu não sabia o que dizer. Não tive tempo para comprar uma. Alguém tocou minha mão, sem aviso, assustando-me. Um menino.

-Venha.

Aqueles olhos pequenos e azuis eram algo cálido e mágico. A um tempo fui percorrido por calma, solidão e estranheza.

-Onde estou?, perguntei a mim mesmo.

-Lugar das idéias, disse o menino, procurando algo dentro de um baú.

-Como?

-Está por aqui em algum lugar. Ele me deu.

-Quem?

-O...

Um carrilhão soou alto, precisamente treze vezes.

-Tome, use.

Minha máscara serviu com perfeição. Um outro grupo acabara de entrar, apressado.

-Para o jardim, disseram.

Obedecemos. Mesas em redor de uma fonte. Os convidados, de posse de copos de vidro verde, bebiam de seu conteúdo, fazendo uma mesura com as mãos.

-Beba, disse-me o menino.

-O que é?

-Depende.

Não entendi a resposta, mas fiz o que ele pedia. O líquido era branco, turvo e quente, com sabor de morango. Senti algo como um orvalho gelado cair sobre mim. Os outros convivas me observavam e erguiam seus copos num brinde. À distância, eu só conseguia ver luzes róseas. O jardim a pouco e pouco ia distanciando. Mas as vozes das pessoas ficavam mais nítidas. Cantavam num latim plangente, que eu não entendia:

Eia, Mater, Fons Amoris,

Me Sentire Vim Doloris

Fac, Ut Tecum Lugeam...

Senti um ardor doloroso no coração. Sentei-me. Notei que tinha minha vergonha exposta. O menino desaparecera. A grama fria. Pensei em Albertina, perdida e vulnerável.

16.

Velas coloridas lá longe. Caminhei, nu, envergonhado. A máscara comprimia meu rosto e nuca. Procurava não pensar na gravidade e bizarrice da situação, e me concentrar no caminho. Algo fermentava em meu estômago. Por que eu não era inteligente como meu pai? Acharia logo um modo de encontrar Albertina e sair daqui. Ele nunca me disse o que fazia, realmente. Chigi sempre o reputava um sábio. Termo muito vago nesta época. O quarto dele em nossa casa de Trento era repleto de desenhos e figuras cobrindo o teto e as paredes...esta recordação, de repente, se desfez. Vi um homem velho e cabeludo experimentando uma espécie de aparelho. Consistia em um fino cano de madeira apoiado em um tripé de metal. Aproximei o bastante para ser notado.

-Olá. O que é isso?

-Chama-se telescópio. Serve para ver à distância.

-O que você está vendo?

-Dê-me uma vela, por favor.

-Que cor?

-Azul.

Ele colocou a chama próximo à abertura do cano. Do outro lado, saiu um feixe azul espesso e brilhante, que sumiu lá no alto, onde não se via mais nada. É óbvio que isto causava estranheza, pois me encontrava dentro de uma casa de grossas paredes.

-Que bonito!

O velho, com minha assistência, repetiu o brinquedo com várias cores, sem me dirigir a palavra. Até que parou e me fitou.

-Por que fica aí, olhando? Nada tem a fazer?

-Desculpe.

-Alguns eventos ocorrerão em série. Ouça, a partir de agora é muito importante que você compreenda a ordem.

-Que ordem?

-Primeiro, a fuga de Albertina. Segundo, a minha observação do planeta. Terceiro, a sessão. Quarto, o retorno do cometa e a coleta de sua poeira. Cinco, a conjunção tríplice. Seis, o fim. Mas o período é dado sempre pelo cubo de seis...

-Não entendi nada.

-Pois então...

Nisto, uma voz vinda do vazio disse:

Agora que Albertina está só, os poderes desse mundo a desejam. Cuidado com as predições da Sibila.

O Errante faz planos de retorno. Ele envia mensagens aos seus servos aqui na Terra. Ele virá no futuro, quando tiver o poder de romper o meu selo. Mas eu sou o Mundo atrás do selo.

Encontre meus olhos, um para cada nível do Ser.

Albertina está em perigo. Ela não pode sucumbir, Alberto. Eu conheço o teu nome.

A alma é feminina, e deve permanecer invisível para a Carne.

A Torre é masculina, e não pode tombar.

Surgiu uma luz branca forte, como a que eu vi no quarto de Albertina. Veio a meu encontro. Estremeci. Tocou-me, e era quente. Tive a impressão de dormir por instantes. Quando acordei, estava diante de uma porta entreaberta, num corredor iluminado por tochas.

17.

Albertina estava num quarto vazio. Sentada no chão, olhava para os próprios pés. Vestida de vermelho, com frio, a menina suspirava. Não podia pensar. Pensar, naquela situação, era como olhar-se em um espelho. E estes metiam medo. Ela tinha a certeza de que, se olhasse o seu reflexo, morreria.

Súbito, uma chave rinhando em uma fechadura. Não havia porta alguma ali. Mas o som vinha de dentro de sua cabeça. Uma voz sussurrou ao seu ouvido. Dizia coisas bonitas, evocava paisagens, passeios, músicas belíssimas.

-Você me conhece? Sou seu amigo.

-Não te conheço.

A menina engoliu em seco. O Anjo, alto, brilhante, de olhos calmos, asas grandes e translúcidas e mãos de dedos compridos, estava diante dela.

-Estou com frio.

-Você deve aguardar aqui. Por mais algumas horas.

-O que vai acontecer comigo? Eu não fiz nada.

-Não fez.

-Tem certeza de que sou eu? Meu nome é Albertina. Salvifico.

-Eu sei seu nome na Carne.

-Quero fazer alguma coisa. Odeio esperar, sem fazer nada.

O Anjo nada disse.

-Sabe, eu acho... que conheço você. Se é meu amigo, me dê algo para escrever. Qualquer coisa serve, eu escrevo no chão. Aí, eu não fico querendo fugir.

O Anjo refletiu por instantes. Sua luz pareceu diminuir por segundos. Um fino pedaço de carvão apareceu aos pés de Albertina. Logo depois, ela ouviu dentro do cérebro um forte bater de asas.

18.

Antes de entrar, olhei para dentro, com o canto do olho. No centro da sala flutuava uma grande pirâmide negra. Sob ela, um velho gordo de barba branca, com um cetro e máscara dourada, sentado num trono de vidro, balbuciava algo. Ele me viu.

-Entre.

Meus olhos doíam. Não sei quem é este velho, mas eu o odeio-pensei.

-Está aqui por Albertina, não é?

-Onde está a minha irmã?

-Paciência...ouça o que tenho a oferecer.

-Oferecer?

-Te dou o desejo do teu coração, se...

-Se...?

-Se desistir de Albertina.

-Nunca. Velho palhaço, não tenho medo de você.

Ele calou, por um momento. Depois, disse:

-Dentro de uma dessas três caixas, está o teu desejo. Escolha entre a caixa de ouro, a de prata e a de bronze.

-...

-Não pode fugir. Tente e meus três cães vão te massacrar.

Imediatamente, senti a presença ameaçadora dos animais, atrás de mim. Pus-me a analisar as caixas. “O desejo do meu coração”, disse ele. Mas é apenas a possibilidade...

19.

-Anjo! Anjo!

Albertina gritava alto. Uma pessoa começou a surgir de dentro da parede, à direita. Era um homem, vestido de verde e preto.

-Você é a pequena bruxa?

-Eu, não.

-Bonito. Foi você que fez estes desenhos?

-Fui eu.

-O senhor S e o senhor G te aguardam no Santuário do Touro.

-Não conheço eles, nem esse Touro.

-Lá o senhor T e o senhor F oficiarão a missa.

-Missa de quê? Para quê?

-Sacrifício.

A menina pensou um pouco, e começou a chorar.

-Não quero morrer. Me ajude. Eu fugi porque tinha raiva do meu irmão burro. Não sou má. Não sou bruxa.

-Ele está aqui, tentando salvá-la.

-Está? Onde?

O homem tocou a testa de Albertina. Ela adormeceu por instantes, e despertou com uns versos na cabeça:

Com as letras do nome, um grande enigma

Vai decifrar. Acompanhe as Eras

Com as palavras que formar.Cuidado, porém,

Com a Interpretação: pois são o Templo

Da sua Iniciação. Esconda onde não se espera.

Isto é coisa muito séria! Homens e deuses

Nada são perante ela.

E o homem já tinha desaparecido. Mas o Anjo a tomou no colo, e, voando, a levou ao Santuário.

20.

QUEM ME ESCOLHE, ENCONTRA O PASSADO, dizia a placa na caixa de chumbo.

QUEM ME ESCOLHE, ENCONTRA O FUTURO, dizia a placa na caixa de prata.

QUEM ME ESCOLHE, ENCONTRA A VIDA ETERNA, dizia a placa na caixa dourada.

Meu lema de “ousar sempre” enfraquecia. Que fazer? Velho nojento. Quem raptaria uma criança para fazer estes malefícios? E depois, me convidaria...? Um ódio tenebroso me subiu pela espinha. Contra tudo e contra todos. Eu odiava minha própria existência, e a de Albertina, e todo o universo. Os tempos em que vivia, as oportunidades que deixei escapar, as obrigações fictícias, as autoridades, o dinheiro e as leis. E mais, os insolentes, os bajuladores, os amores que tive- um por semana!-, as horas de tédio e as de trabalho infrutífero. Os dias e noites sempre cambiando entre auroras e crepúsculos sem notícias de papai. Os céus desertos e silenciosos, sem uma mensagem de alívio sequer- só de entorpecida indiferença. Estrelas que quis que me caíssem na cabeça, apenas para sentir...!

Eu não queria- disso me sobrava certeza- o PASSADO. Nada nele me atraía. Mirava em torno, nada tinha de importante. Metal reles.

Nem o FUTURO. Era o rapinador à espreita na noite de lua, a ameaça da velhice, o solitário porvir, a certeza da morte.

A VIDA ETERNA? Bem que poderia tê-la. Dourada e para sempre... mas sou apenas ignorante, não instruído- e não, bobo!

O que eu queria então? Talvez a morte, nos dentes dos cachorros? Soprem as trombetas do Alto. Alberto Salvifico parte.

Porém, o súbito aparecimento da imagem de cachos dourados me impediu de unir ação às palavras.

21.

O rugido de alçapões, taramelas e grilhões perpassava os ouvidos de Albertina. Mas o pior eram os gritos. Clamando pela ausência de dor.

Da nebulosa galeria, ela passou à arena. Centenas de cubículos cinzentos como que cuspidos do solo negro jaziam em torno. Dezenas de metros acima, via-se a lua cheia, como se fosse a efígie de uma moeda.

O pânico congelava a menina, e o incenso, de odor de manjerona, a asfixiava. O vestido vermelho pinicava, as mãos e os pés, sangravam.

Tinha uma coroa de louros na cabeça.

Uma matraca soou.

Castidade. Puridade.

Virgindade celebrada.

Aqui termina toda a Festa!

Aqui a Carne é a Verdade.

(disse o senhor G).

Entrega. Afirmação.

Próximas estão.

O Altar está aqui

Para um Ofício de União.

(disse o senhor F).

Nossa irmã é pequena

Mas pode servir ao Deus

Que preside esta cena.

Ele respira, e dos seus

Olhos e narinas

Brotam desejos.

(continuou o senhor G).

Um toque de colher num cálice. Uma mulher vestida de branco entoou:

Nesta Torre

Forte é o Touro.

Seu corpo é rígido

E é de ouro.

Ele é o Uno-

O Rei do Sonho-

Não aguarda

Nem um segundo.

-Tragam a criança, disse a mulher.

Albertina, conduzida por dois homens negros, caiu desmazelada aos pés do altar.

O Touro, enorme, forcejava e bufava dentro de uma gaiola esférica, que tremia e brilhava. A platéia, composta por centenas de mascarados nus sob mantos multicores, clamava pelo sacrifício:

Santa Ursula, gloriosa,

Receba esta virgem.

Santa Ursula lacrimosa-

Sem cabeça, a virgem!

22.

Nu, perseguido por cães, desejoso da morte. Não haveria um modo de escapar?

A passagem de um momento para outro revela surpresas. No meu caso, ocorreu que meus olhos de repente caíram na mão direita escamosa daquele velho detestável. É um cetro papal, pensei. Uma cruz tríplice, com duas pedras preciosas com formato de estrelas de cores opostas, nas extremidades de cada travessa:

Então, por uma grande fortuna, lembrei-me do que disse a Voz: seis olhos, três acima e três abaixo; três cegos e três com visão. Pois bem. O cetro do velho era a chave do enigma!

O maldito me observava, desconfiado. Segurou firme o objeto. Eu sabia que só tinha uma chance. Mesmo despido e sem armas, agi. Arranquei num ato minha máscara, o que doeu sobremaneira- pois acho que ela já se incorporava ao meu rosto! Rolei no chão e pulei sobre a mesa, derrubando as caixas de metal. Com toda essa confusão, os cachorros estacaram por instantes; o suficiente para eu cravar meus dedos vingativos no pescoço daquele celerado pontifício.

Nunca tinha batido em ninguém até lá. Mas aprendi rápido, acreditem. Ele gritava e arfava como uma criança. Aquela cara, sem o disfarce, revelava medo e idiotia. O sangue cuspido era escuro.

Quando, finalmente, a ira me despossuiu, notei que os mastins tinham ido embora. Peguei o cetro e saí correndo- a porta estava aberta!- pelo corredor.

Foi quando as seis gemas começaram a pulsar e brilhar.

23.

Levado pelos humores do sangue e por uma estranha força que emanava das pedras do cetro, percorri os três andares do castelo, sob a Torre. Vi reflexos medonhos nas paredes e pisei em larvas . O som de fechaduras se abrindo e carrilhões soando me perseguia; tudo cheirava a cloaca e abatedouro. Numa sala, um asno falava a um grupo de monges. Em outra, um bode de três cabeças, corpo humano e uns vinte metros de altura abençoava aldeões prostrados. Em outra sala, ainda, vi pessoas totalmente nuas cercando um berço de criança, de onde vinha uma luz branca.

24.

Na Arena, o senhor G conduzia o ofício, que chegava a sua parte final.

Alumna, amata.

Sua Carne será entregue

Ao Touro, Rei dos Sonhos.

Taurus, Rex Imaginis

Recebe esta Carne,

Por vias carnais.

Oh! Oh!

O animal, liberado de sua prisão, adquiriu postura ereta. Seus olhos tinham agora uma presença humana. O senhor G aproximou-se dele lentamente, com um livro negro aberto na mão esquerda, dizendo:

- Quem é você?

Com voz de homem, ele respondeu:

-Eu sou o Touro.

Voltando-se para Albertina, o senhor G repetiu o gesto anterior.

-Quem é você?

Ela, em transe, respondeu:

-Eu sou a Genetrix.

25.

Paffuto estava triste. Sozinho, trancado num quarto de hotel, cercado de ruídos amedrontadores, ele olhava para o teto. Lá fora, uma fina garoa prenunciava coisas ruins. A Natureza preparava mais uma manifestação de poder. O mar Adriático erguia aos poucos mais uma parede de encontro à frágil laguna veneziana.

Primeiro, veio um trovão. Logo depois, um movimento na porta e uma vigorosa rajada de vento entrando e balançando a mesinha onde ele estava.

Era um homem.

-Oi, rapaz. Acho que conheço você.

26.

Uma nuvem negra se ergueu na mente de Albertina. Não ouvia mais nada, e sua visão se limitava ao contorno negro dos olhos do Touro. Alguém a agarrou pela cintura. Foi como se uma chama a envolvesse, queimante e pulsante. Sentiu-se arremessada, asfixiada, sacudida, cegada. E desmaiou.

27.

Enquanto isso, uma gôndola solitária penduleava nas ondas que já envolviam toda a Piazza San Marco. Tempestade.

-Não tenha medo, garoto. Vamos esperar.

Paffuto, dentro de um saco de feira, não miava, mas tremia. Via vultos flutuando em redor, e vozes.

28.

Uma arena. Que é isso? Por Cristo.

Peguei um círio para poder seguir em meio à penumbra. Fui agarrado pelos pés e quase nocauteado. Agachei-me e me ergui, buscando esconder-me no que o instinto dizia ser as paredes do teatro. O cetro resvalou várias vezes em formas que se mexiam e que eu não poderia dizer se eram homens ou animais. Agonizei por vários minutos em meio a uma enorme confusão. Meus braços e pernas já tinham sido lacerados várias vezes quando eu finalmente alcancei Albertina.

Alguém surgiu com um turíbulo nas mãos e quase quebrou minha cabeça com ele. Senti o gosto de meu próprio sangue nos lábios.

Cambaleei. O corpo disposto a entregar-se ao sono. Novo empurrão. O cetro. Estão tentando roubá-lo.

Um altar. O mármore espalhava um pouco de luz. Toquei com os pés em alguma coisa quente. Úmida. Pesada.

Uma cabeça de touro. Decepada. Jesus. Albertina!

Ela jazia ao lado, febril, balbuciante, nua.

29.

O Anjo estava no quarto onde mantivera cativa Albertina, ajoelhado.

Seus olhos pareciam poços negros, fundos e vazios.

A boca, aberta, babava um líquido semelhante a mercúrio.

Sua pele tinha cor de alcatrão, e um aspecto macilento, embora cristalino.

Os cabelos, antes macios e luminosos, tinham agora a textura de um odre de pele.

Chamas ainda subiam de suas asas. Uma grande parte delas restara cinérea e vítrea, no chão.

O Anjo estava morto. Tudo estava recoberto de letras. Albertina preenchera aqueles espaços com as mais esdrúxulas combinações das letras de seu nome. Diante dele, no teto, como uma mensagem letal em caracteres cintilantes, lia-se:

F I L I C I O A L B A R A

(as letras que faltam são parte de um outro grande segredo, que não trataremos aqui)

30.

Um chute no estômago.

-Deixe a pequena bruxa.

Eu reconheço essa voz. É o Chigi! Maldito.

-Você tratará diretamente com o senhor T agora.

-Quem é o senhor T?

-Ouça-o. Depois, vai morrer.

Eu sou Totus. O que permanece, o Eterno. A Imagem do Espelho. A Lei esperada. A Mente Perfeita.

Estou livre, agora. Pequeno mortal, ousa interferir nos meus planos?

Posso mais uma vez agir neste universo, pois vivo graças ao sacrifício do Touro.

Quando os planetas se alinham, manifesto minha Força. Caminho, altivo e indiferente, em meio aos Poderes deste mundo abortado.

Eu sou o Oposto, o Venerável, o Todo, o Ancião.

Onde estão meus preciosos olhos? Onde estão os Seis Portais, por onde espalharei de novo minha Luz criadora?

Um golpe na testa. Mais um deste e estou morto, pensei.

-Ah, aqui estão...

Algo começou a surgir a minha frente. Digo “algo” porque não sei se era terra, água, ar ou fogo. Não tinha forma ou limites. Não era visível, nem invisível. Existia e inexistia como uma figura geométrica básica das que papai me fazia desenhar no caderno. Acho que era feito de sonhos. É, é isso, sonhos. De que eu e Albertina fazíamos parte, agora.

31.

Calor. Crepitar de chamas. Ardência. Albertina. Fugir.

Por quantas horas corri? Minha irmã dormia.

Que estragos o incêndio fizera em meu corpo? Não sei.

Por todo lugar que passava, máscaras jaziam pelo chão, queimadas.

E as pessoas?

Como era imenso o palácio! Mas agora, restara uma pira funesta.

Finalmente, uma porta. Há luz vinda do exterior. Ruído de chuva.

A praça!

Quase cego com a chuva, vi que alguém vinha em minha direção. A água, percutida violentamente, alcançava a cintura.

-Vamos, dê-me a menina. Tem um barco esperando.

-Quem é você?

-Não me reconhece?

Não respondi nada. Albertina acordou, viu o rosto do estranho e sorriu. E nós três olhamos para trás, forçando a vista. Num último e fantástico esplendor, o Palácio Libato e a Torre sumiram, nas labaredas que alcançavam o céu negro.

Bizarras flâmulas flutuantes, alvacentas, nos observavam. O vento enregelava nossas espinhas. Quase não pudemos subir no barco. A última coisa de que me lembro foi ver Albertina abraçando meu pai, que estava com Paffuto no colo.

32.

Todo o sofrimento que passei naquele lugar não rivalizou, nem de longe, com a angústia que suportamos para fugir de Veneza durante a água alta. Foi como se não existisse ar nem céu, só água, fria, áspera, inimiga. Eu sabia que papai tentava atingir o Lido. Era a única salvação. Diminutos, perante a pirâmide que subia da pele vorticosa do Adriático, não dizíamos palavra. Os pavores de Ulisses e todos os outros nautas... não tinham expressão.

Sem sol, lua ou estrelas para guiar, achei que estávamos perdidos em outro universo, distinto daquele imaginado por Galileu.

-Não poderemos chegar ao Lido, disse papai.

-Como? E o que fazemos?!

-Segure sua irmã e o gato. Eu cuido disso.

Ele foi para a frente do barco e, erguendo as duas mãos, num gesto de loucura, pois perderia logo o equilíbrio, gritou o seguinte:

Salve-nos das águas,

Nume deste mar.

Estende um bom caminho,

Uma nova terra

Te pedimos para achar.

Um relâmpago explodiu, tão perto, que vi que tinha a forma de um círculo.

Papai parecia morto. Sua pele e cabelos tinham embranquecido em instantes. Fui buscá-lo, e ele caiu em meus braços.

-Pronto. Feito.

Alguns minutos depois, não sei se por arte mágica, prolongava-se diante de nós um tímido crepúsculo róseo.

33.

O barco girava. Apoiados uns nos outros, as cabeças unidas, éramos conduzidos a uma ilha. A aurora dourava a praia, as palmeiras e a montanha ao fundo. Mas, não sei dizer como, tudo estava impregnado de um azul calmo, constante, que anulava o mormaço.

-Papai, que lugar é este?

-Minha filha, chama-se Vicentia.

-Então, já esteve aqui antes, não?, perguntei.

-Não aqui. Em outro lugar.

Não entendi, mas, naquele momento, só queria deitar e dormir.

E foi o que fizemos. Paffuto estava tão alegre em rever terra firme que ensaiou alguns saltos, mas, logo depois, caiu no sono.

Tive sonhos horríveis. Quando acordei, olhei para papai. Parecia muito mais novo, os cabelos e a pele tinham recuperado a cor natural. Súbito, ele bateu olho em mim. Indaguei:

-Você andou se metendo com magia, não é? De novo?

-Não. Claro que não.

-Como explica esta ilha e todo resto?!

-Te garanto, não é mágica, filho. É um processo natural.

Engoli em seco. A resposta que ele dera podia ser interpretada de mil modos. Um deles, porém, era assombroso, horrípilo.

Todos de pé, pusemo-nos a explorar o local. Vou descrever Vicentia rapidamente, entremeando com relatos de papai. As fontes dele, porém, não vou mencioná-las. Pois vocês não acreditariam.

34.

Papai disse que Vicentia era a última das chamadas Ilhas da Boa Fortuna. As outras seis tinham sido destruídas, ou pelo homem, ou pelos deuses primitivos. No início, era habitada por dois povos pacíficos, os Barretes Azuis e os Barretes Vermelhos. Ambos adoravam o deus Nutes, que tinha a forma de uma montanha, a que se ergue ao norte da ilha. Na época, a nuvem cinzenta cobrindo o pico não existia. As eras passaram e Nutes aos poucos foi se desinteressando pelos problemas humanos e, então, retirou-se para dormir- e aquela nuvem ocultava seus olhos- segundo papai.

De lá, cai uma bela cascata, que produz o único regato da ilha. Por trás dela, existe uma imensa escada de dezessete degraus, dando para uma caverna. Conta a lenda que, antes dos Barretes Azuis e Vermelhos, o único habitante de Vicentia era um gigante de um olho só, chamado Polifemo, que ali vivia, e que de lá só saía para pescar. Com o aparecimento dos homens, porém, ele nunca mais foi visto.

Os Barretes criaram vilas- duas, na verdade-, mercados, templos, uma prefeitura comum e um colégio para suas crianças. A língua deles era parecida com o latim, com algumas vogais e consoantes trocadas, e eles não acreditavam na existência do zero. Mas a grande atração da ilha era a Coluna Quebrada, de mármore, com base jônica, abatida, uma vez, conta-se, por um raio enviado do céu. Ao lado da coluna, ficava a tenda da sacerdotisa de Nutes. Ela era belíssima, alta, branca, loura de longa coma cacheada, olhos garços, mas cegos, boca dourada e pés e mãos compridos. Usava um vestido reluzente cor-de-rosa. Os homens tinham medo dela e as mulheres a ignoravam, mas as crianças adoravam brincar de cabra-cega com ela.

-Crianças, onde estão vocês?, dizia a sacerdotisa, tateando o ar.

-Aqui!, diziam as crianças, disfarçando a voz.

Mas ela sempre as encontrava.

No retorno de sua viagem de trinta anos ao Industão, Taprobana, Cataí e Cipangu, Marco Polo e seus tios Niccolo e Matteo deram com Vicentia. Marco foi o único a ter a honra de ler a Tábua Sagrada da ilha, pois não tivera medo da sacerdotisa. Era uma pesada placa de granito, que nem mesmo seis guerreiros conseguiriam erguer, mas que era leve como uma pena para ela, e que trazia a inscrição(já traduzida):

Enigma do Três, Seis, Oito

No espaço por vezes três

Gira a figura de faces seis;

Oitos se somam até dar infinito,

Como caminhos e rostos num sonho bonito.

O reino retorna a seu lugar,

Com um novo rei para dominar.

Arguida, por Marco, do significado e importância daquele enigma, a sacerdotisa- conta a história- apenas disse:

-Eu não sei.

Os Polo seguiram, logo depois, para casa, mas a história não revela o porquê.

35.

Como Albertina só queria ficar com papai e Paffuto, um dia- pois já estávamos em Vicentia há uma semana!- eu resolvi explorar sozinho o interior da ilha. Meu objetivo era encontrar o colégio, que, segundo constava, era maravilhoso. Depois da mata de palmeiras, seguindo o riacho, deparei uma floresta densa, e, vindo de uma clareira, senti o agradável perfume de abetos.

Lá estava ele. Tomado pela hera e pela poeira, com grande parte das salas já sem teto ou mobília, era muito belo. Pensei nas crianças barretes aprendendo a ler, a cantar e... que aconteceu com este povo? Eu tinha a certeza de que não estavam mais ali. A razão, não sei. Procurei livros ou qualquer documento que tratasse disso. Nada. Tudo pó.

Cobri todo o lugar. Para isso, levei horas e horas. Na realidade, não sei. Não havia lua ou sol em Vicentia, que pudessem marcar o tempo. Subi na Torre, que dava a nítida impressão de estar prestes a cair. Minha surpresa: do alto pude lobrigar...lá longe, além das árvores, um porto escondido!

Gastei mais um bom intervalo até alcançá-lo. Casas de alvenaria em ruínas, pórticos alquebrados, um cais obsoleto. Mas não era isso o notável.

Era uma enseada, preenchida de água tristemente azul, cercada de paredões de rocha repletos de ramagens verdes. O vento suave esfriava o suor do meu rosto. Caminhei até o fim da pequena ponte de madeira.E então olhei para a água. Torvelinhava. Foi aí que tive uma visão:

Na floresta etrusca de Pisa, a casa de Camilla ardia. Ela não estava lá dentro. Que terá acontecido? Vi cavaleiros com tochas próximos à encruzilhada. Tinham máscaras. Mantos de inquisidores.

Corroído por lágrimas, atingido por uma febre e, ao mesmo tempo, paralisado de terror, senti um toque decidido no ombro esquerdo.

36.

-Vamos embora, disse papai.

-Como sairemos daqui?

-Acordando, Alberto. Pegue a mão de sua irmã. Paffuto, vem cá. Pule no meu ombro.

“Acordando...”

A casa tinha sido completamente consumida pelo fogo. Por sorte, este não alcançara a floresta em torno. Não podia me conformar com...não podiam ser as cinzas de Camilla. Busquei por todo canto. Tomado de uma força comparável a de um lunático, sacudi cada arbusto e planta próximo.

-Alberto!

Era ela. Tinha se arrastado dezenas de metros até a segurança.

-Camilla!

Nos beijamos.

-Eles vieram do nordeste, e não pensaram duas vezes, ao chegar. Lançaram seus archotes sobre meu telhado...e...

-Calma, calma.

-Você cumpriu sua promessa.

-Ou... paguei o preço pela consulta.

-Engraçadinho.

Papai fez menção de querer falar comigo.

-Que foi, pai?

-Temos que sair daqui. Pelo menos por enquanto.

-Por quê?

-Quem você acha que fez isso? Foram os membros do Sodalício!

-Hein?

-Os mascarados de Veneza. Todos intocáveis, liderados pelo velho papa Sisto. De quem você roubou o cetro, pelo que me disse.

-Ah. Ele levou uma bruta sova. O que acha que aconteceu com o Chigi?

-Morto.

O tempo passou. Apesar de vivermos escondidos, foi um período alegre. Nas últimas semanas, reerguemos a casa de Camilla. Não sei como, mas papai tinha muito dinheiro. Comprou um piano para Albertina. Ela não se lembrava mais do Guidorizzi- que tinha sido assassinado-, nem de Veneza. E seu talento se manifestava naturalmente.

-Tem certeza de que quer continuar a ler oráculos, Camilla?

-Tenho. É meu ofício, Alberto.

-Pois bem. Mas vou ser seu ajudante.

-Pode começar indo ao meu novo quarto, e trazendo meus três cristais. De seis, oito e dezessete faces. E minhas runas. E meus braceletes. E...

-Calma, calma...

Obedeci. Entretido com todas aquelas quinquilharias que meu pai trouxera de Roma, senti um calafrio de felicidade. De repente, um odor longínquo que eu conhecia, mas não pude identificar, entrou pela janela. Fui olhar. Na entrada da floresta, vi Paffuto e Albertina. Ela fazia um gesto dócil na direção das árvores. E qual não foi minha surpresa ao ver surgir de lá de dentro um altivo, albo, gracioso unicórnio, que se deixava afagar pela minha irmã...?

Saí da casa, para ver mais de perto. Mas papai se interpôs, com um sorriso no rosto, que dizia: “ah, agora sim estou contente...”, ou “ainda bem que tudo deu certo, senão...”

FINIS

EPÍLOGO

E vivemos felizes...por mais duas semanas, isto é, até que meu pai resolveu viajar de novo. Foi embora de madrugada, deixando-me um bilhete com aquele agourento monograma V e uma mensagem lacônica:

Parto para longe. Cuide direito de sua irmã, desta vez. Cuidado, filho.

Duzentos e dezesseis anos depois, em 1790, Paris era assolada pelo Terror. O culto ao Ser Supremo e seu santo de araque, Marat, eram justificativa suficiente para oitocentas execuções ao mês. Meses estes que tinham mudado de nome, para Viminal, Brumário, Prairial etc. Os mais ousados inimigos da Deusa Razão- artistas, na maioria- se reuníam secretamente, formando pequenas células. Uma delas realizava toda semana sessões espíritas na rua Madeleine, com o intuito de contatar Forças do Além que desfechassem o golpe final contra o hipócrita Robespierre.

Duas batidas na mesa.

-Quem é? Apresente-se, agora!

-Sou um espírito do passado.

-Dê uma prova de sua presença!

Uma música tênue percorreu o sótão silencioso. Vinha de um piano invisível, mas próximo.

Uma carga violenta de baionetas lá fora abafou o som.

-Tem gente subindo as escadas. É o Comitê. Oh, não!

-Não quero morrer, não quero morrer...

-Acalmem-se, estamos protegidos pelo sinal, lembram?

Todos na mesa retiraram as luvas, mostrando pentagramas desenhados na palma das mãos. O barulho nas escadas cessou quase que de imediato, e uma outra voz, grave e profunda, vinda do nada, disse, vagarosamente:

Eu não sou o deus de seus pais...

PÓS-ESCRITO

Antes de tudo, é óbvio que eu sei que o instrumento conhecido hoje como piano só surgiu por volta do ano 1720, pelas mãos do grande Bartolomeo Cristofori, de Pádova, e que, por conseguinte, Albertina não poderia tê-lo estudado 150 anos antes.

Mas, quem pode garantir? É como o problema da bússola de Flavio Gioia: quem fez? Quem não fez?

E Marco Polo, visitou ou não o Khan?

Tudo isso é bobagem.

Para um leitor menos provinciano e mais detalhista e curioso, a história de Albertina está repleta de mistérios sobejamente intrincados, com os quais aquele pode, digamos, sofrer e divertir-se da maneira mais civilizada possível. Como se dizia antigamente, quem quiser ser alegre hoje, seja, que do amanhã não se tem certeza.

Inculquei que este pós-escrito deve ser breve. Mas travo uma guerra com a pena. Vida breve, arte longa- por que perder-me em batalhas, que não tornam a primeira mais bela nem trazem mais deleite à segunda?

F. A.

Filicio Albara
Enviado por Filicio Albara em 28/07/2010
Código do texto: T2404159
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