Promessa a Santo Antônio III- O santinho e o devoto
Antonio
Mais um ano sozinho pensava o homem cabisbaixo, caminhando pela plataforma apinhada do metrô e tentando se desvencilhar dos empurrões. Equilibrando-se entre dois jovens parrudos, lamentava a sorte no amor, tão ruim que era praticamente um direito adquirido. Anos a fio lutando contra a solidão e absolutamente nada acontecia.
Algumas vezes colocava a culpa na avó materna, sempre metida em rezas e crendices, e que havia feito uma promessa à revelia dos próprios pais, que queriam que ele se chamasse Wanderley em homenagem ao cantor. Infelizmente na hora do parto houve complicações e a solução foi apelar para Santo Antônio, que na opinião da família fez um milagre.
E a mirrada criança foi batizado em homenagem ao santo casamenteiro, o que deveria por força abrir as portas da felicidade amorosa para o afilhado, pelo menos era o que o menino Antônio esperava, sempre devoto e cheio de fé. Isto até os dez anos, quando foi pego bebendo vinho na sacristia e convidado a deixar o cargo de coroinha.
Tudo por causa de uma colega de escola, que não quis ir ao baile de formatura do primeiro grau. Ela e todas as outras que ele convidou, sobrando a dura tarefa a uma prima enjoada e com memória de elefante. Mesmo passado quase cinqüenta anos, a malvada sempre contava o caso nas reuniões familiares. A avó ficou inconsolável porque a promessa incluía ser um bom devoto até os vinte e um anos, o que não pôde acontecer e a família começou a achar que o haviam atraído a ira do santo por quebra da dívida. Primas solteiras e tias sem par, reclamavam e exigiam que o menino fosse readmito na igreja, fato que jamais aconteceu.
Depois de alguns anos virou Toninho, Tonico, Tom ou qualquer coisa similar. Embora estivesse na casa dos quarenta e tal, não era de todo mal-apessoado: a careca acentuada, barriguinha saliente e o metro e sessenta e cinco mais espichado do bairro, tinha lá um charme secreto no nariz italiano. Pelo menos era o que alegava, quando colocava a boina meio caída e ia dar voltas no bairro dos imigrantes. Entre goles do vinho da casa e mordidas na porpeta quentinha, sentia-se o próprio personagem do filme Cinema Paradiso, o seu preferido, pela música e história de amor. Entre gotas de azeite e um ou outro comentário com alguém sozinho, Toninho passava o tempo e esquecia a solidão.
Sim! Antonio era um romântico incurável e solitário por imposição do cruel destino. E vivia reclamando nas orações noturnas em seu quartinho de solteirão, pois ainda morando com os pais velhinhos e solidários em uma casa de vila. Quase todas as casas ainda eram ocupadas pelos proprietários originais e os agregados, filhos ou parentes iam formando um grupo entrosado onde não faltavam trocas de receitas e jogos de sueca na calçada.
Os namoros de Antonio eram rápidos e terminavam sem a menor explicação, o que o deixava ainda mais inseguro e constrangido. Uma vez apaixonou-se por uma colega de trabalho, saíram por algum tempo e ele estava sempre mandando flores e levando a moça para jantar nas suas cantinas favoritas. Foi exatamente no dia do nhoque, uma tradição que manda colocar sob o prato uma nota de dinheiro para atrair fortuna, que ele perdeu a namorada para um garçom recém chegado da Itália. Nunca Antonio sentiu tanto ódio dos napolitanos, meses mais tarde quando viu o convite de casamento no mural do refeitório, ficou dias deprimido e se afastou de vez dos colegas de trabalho. Foi quando descobriu a cozinha lusitana e passou a adorar bacalhau e criticar as massas que antes eram o prato preferido.
Não tinha muitos amigos, apenas os vizinhos do bairro e os parentes. A família era grande e reunia-se por qualquer motivo, crianças nasciam sem parar e as fofocas também. No final sempre o provocavam com a velha pergunta: -Quando iria finalmente casar ou ter alguém fixo? Quando ia deixar de lado a vida de solteirão? Nestas horas Toninho sentia uma revolta imensa porque não era culpado, se a vida não havia colocado uma mulher com vontade de ter um relacionamento sério, que culpassem o destino ou como ele mesmo dizia, a bendita promessa da avó. E a velhinha, mesmo com bastante idade não levava desaforo:
- Meu netinho querido, olha como está cada dia mais parecido com o falecido! Tuninho um dia vai conhecer uma noiva linda, vamos fazer um casamento pra ninguém botar defeito e calar a bota desta gente.Vai ser um verdadeiro milagre!- O rapaz resmungava e nada respondia.
Antônio tomava café recém coado e fatiava um bolo de fubá com erva-doce:- Mãe, nem pense em oferecer meus préstimos ao padre este ano, já estou avisando que não vou tomar conta de barraca.- Tomou um gole grande e respirou aliviado com a própria coragem.
- Mas meu filho, é quase uma tradição familiar ajudar na festinha da paróquia. Todos sabem disso, eu mesma já fiz quase todos os bolos com a ajuda do seu pai. Olhe como ele está feliz, confeitando com jujubas a torta de chocolate.- Realmente o homem parecia completamente absorto com a tarefa, Antonio disfarçou e não conteve o riso quando viu o pai enchendo os bolsos de balas. A mãe por conta de um parente diabético, obrigava a família a seguir uma dieta rigorosa.
A grande ironia era dona Judith ser a melhor confeiteira do bairro, e ter a casa sempre cheia de guloseimas proibidas:
- Porque está rindo, meu filho? Algumas balinhas estão fora do lugar mas depois eu conserto, não deboche do seu pai.Filho se você não puder, teremos que ir no seu lugar, mas seu pai anda se queixando tanto do reumatismo! – Antonio deu de ombros e foi pegar um ar, o cheiro dos doces pareceu mais enjoativo e não havia argumento. Ia perder dois finais de semana correndo de um lado para o outro, agüentando o frio cortante do espaço ao relento, tentando dar conta da multidão faminta, ouvindo gritos de anarriê e o som da sanfona guiando os passos da quadrilha. Um verdadeiro pesadelo que aumentava ainda mais sua antipatia com o santo.
Pensou em quantas vezes havia alimentado a esperança, de encontrar uma mulher simpática e interessante. Queria pelo menos uma amizade que valesse a pena, mas tudo que ouvia eram as pessoas gritando pelas tortas de chocolate, limão, morango e sabe-se lá mais o quê a mãe inventasse. Todo ano a mesma festa chata, só que desta vez ele estava mais irritado pelos dias em que não poderia acessar a internet e os sites de encontro, sua mais nova mania e esperança de encontrar a cara-metade.
Antônio caminhou pelas ruas tranqüilas do Grajaú, olhando as casas e os jardins com famílias. Uma ponta de inveja quando topava com os casais passeando de mãos dadas e a meninada jogando bola. Sentiu-se velho demais e com um peso nos ombros além das forças minguadas, pensou no emprego de funcionário público, bibliotecário de um acervo onde quase ninguém aparecia. De repente pensou no cheiro de naftalina e chutou uma pedra, sentou no barzinho quase vazio e pediu uma cerveja. De longe dois amigos de seu pai acenaram, mas não o convidaram para a mesa. Acrescentou ao pedido uma dose de conhaque. A tarde bonita de inverno ainda não estava fria, mas ele sabia que dias gelados sempre o deixavam aborrecido e saudoso de uma boa companhia feminina.
Débora
-A sina de toda mulher solteira com irmãs casadas, não é ser babá nos finais de semana- Débora resmungava o estranho mantra enquanto juntava os cacos do bibelô preferido-Não compreendo porque sempre sobra pra mim. Que chatice!
Olhou para a sobrinha que aguardava alguma reação, estava cansada e não tinha ido ao salão fazer a unha, hábito que conservava há anos e que adorava. A casa toda estava um caos e ela tinha orgulho da sua arrumação impecável e dos tapetes e sofás brancos. Débora era uma mulher independente e com um salário que garantia certa comodidade. Seu único pecado era o consumismo, comprar pela internet as novidades em perfumes e miniaturas.
Eram quatro crianças com idades que iam de três a dezesseis anos enfiados em seu apartamento jeitoso e repleto de bibelôs. Coleções em porcelana espalhadas por estantes altas, longe do alcance dos menores, mas foi justamente e afilhada de doze anos que deixou cair a peça caríssima.
Esparramado no sofá com o tênis sujo tocando as almofadas, o sobrinho adolescente jogava vídeo game alheio ao mundo real, enquanto dois meninos disputavam um pacote de biscoito de chocolate. Os farelos voavam e o tapete claro estava salpicado de pipoca, refrigerante e outras coisas grudentas. Débora ainda podia escutar as recomendações das irmãs sobre remedinhos e outros conselhos:- Muito bem, Clarol saia de perto dos vidros e vá tomar um banho, Pedro e Paulo se querem comer usem a mesa e Henrique tire os pés do sofá!- Henrique soltou um palavrão abafado e o restante obedeceu.
Mais um dia e tudo voltaria ao normal, as duas irmãs e os pais haviam ido a Campos do Jordão e estava frio demais para levar as crianças. Pelo menos foi a desculpa que arrumaram, mas Débora sabia que o pacote não incluía camas extras e muito menos preocupações em um final de semana romântico. Era dia dos namorados e ela não tinha namorado ou pretendente, paquera e algo parecido desde a morte do noivo. Há exatos seis anos atrás, quando decidiu que não valia a pena conhecer mais ninguém e estava velha demais para procurar.
Aos trinta e oito e aparentando bem menos, sabia que usava esta desculpa por pura insegurança de quem cresceu com o namorado e jamais tinha tido outro homem. Ela só havia aprendido a namorar o futuro marido, sentia medo de ser rejeitada, tinha vergonha de falar nas festas e sempre fazia o papel de sombra. Caminhou até a janela aberta sentiu o vento frio, pensou no casaco novo que ainda nem tinha tirado a etiqueta, nas botas pretas e confortáveis, teve vontade de se arrumar outra vez e sair pelo bairro.
Carol voltou enrolada no roupão da tia, os pingos dos cabelos molhados formavam uma trilha no carpete:- tia Dê, vamos a festa junina? Não está sentindo o cheirinho do salsichão? – Os gêmeos começaram a gritar imediatamente que queriam cachorro-quente e pescaria.
Débora olhou as crianças e voltou à janela, bastaria atravessar a praça e chegariam a festa que sempre a aborreceu. Havia jurado nunca mais por os pés naquela igreja, toda a vida de Débora esteve ligada ao lugar e isto a entristecia. Foi durante a apresentação da quadrilha do colégio que começou a namorar Eduardo e mais tarde decidiram casar na pequena capela. Tantos anos havia se passado e ela ainda temia não ter coragem de atravessar os antigos portões. Os meninos esperavam a resposta e o sobrinho mais velho largou o jogo:- Tia, to de saco cheio de ficar trancado aqui com estes moleques – Débora decidiu naquele momento que podia tentar com a ajuda dos sobrinhos, ao menos dar uma volta e ver algumas barraquinhas na rua. Deu as ordens e todos correram para trocar de roupar, pentear e colocar os casacos.
De mãos dadas com os gêmeos, ela caminhou com os grupos animados que iam em direção ao som e luzes coloridas. Muita gente trazia os filhos vestidos a caráter e não existia qualquer distinção de idades, todos pareciam motivados e alegres. Logo estavam percorrendo as barracas e Debóra mal se deu conta até ver o velho padre acenando. Respondeu ao aceno e não quis se aproximar, temendo conversas sobre o passado que ainda era uma ameaça.
Sentiu o coração aos pulos quando as apresentações de dança começaram, muitas escolas e associações brincavam na maior animação. Os sobrinhos pediam mil coisas e ela era arrastada para lá e para cá, dependendo do interesse por coelhinhos na toca e jogo de argolas. Reconheceu algumas amigas antigas que foram se aproximando e colocando a vida em dia. A grande maioria estava na festa pelas recordações e carinho que guardavam da infância. Mesmo aquelas que moravam em outros bairros, tinha vindo prestigiar e saborear bons momentos.
Débora lembrou que um dia também sentiu-se assim e desejou ter forças para recuperar o que deixou para trás. Os meninos riam, Carol estava contente com a prenda e o sobrinho mais velho paquerava as meninas e conversava com os amigos. Tudo muito normal. Era dia de santo Antonio e dia dos namorados, Débora resolveu comprar uma pequena imagem, haviam lindas miniaturas e ela adorava estas peças. Na barraca da igreja uma senhora vendia fitas, velas e tudo relacionado ao santo. Recebeu a moça com um sorriso:- Ah! Que bom ver novamente a menina!.- Parecia alegre e sincera.
- A senhora me conhece? – Débora ficou surpresa, mas não incomodada tamanha era a simpatia da idosa.
- Mas é claro! Sou a doceira do bairro. Lembro perfeitamente deste rostinho, você continua a mesma desde os tempos de escola, ainda é louca por doces de compota?- A moça abriu a boca e ficou sem palavras, era demais ver aquela senhora, o penteado e o porte ainda eram os mesmos. Aquela era a mulher que ela havia escolhido para fazer seu bolo e doces de casamento.
- Dona Judith! Dinâmica como sempre, eu ainda amo doces de compota. Que memória!
- Ah querida, hoje só fico poucas horas na festa, antes vinha todos os dias. A idade pesa bastante. Mas o que você deseja? Um santinho para fazer a simpatia?
- Não. Um normal para ter no meu quarto, adoro coleções mas não tenho um único santo em casa.
- Pode levar e aproveitar o dia para fazer o pedido. É o que todas querem, vejo que não usa aliança e deve estar solteira. Pegue a miniatura e este aqui com a simpatia. São tão baratinhos.
Débora riu e pagou as duas peças, uma delas vinha embalada com um folhetinho explicando a simpatia, comprou mais pela insistência de dona Judith porque no fundo não acreditava em nada. Já ia saindo quando resolveu perguntar se ela ainda fazia doces, para seu espanto ela apontou uma barraquinha apinhada de gente comprando bolos e tortas:- Eu garanto que não mudaram nadinha, pode confiar querida, seus sobrinhos vão adorar.- A velhinha sorriu e foi dar atenção a outra freguesa, Débora disfarçou o espanto porque não havia dito nada sobre as crianças.
Foram para outro extremo do pátio e no final da fila, já discutiam qual sabor iriam comprar, quando chegou a vez de serem atendidos os gêmeos mudaram de idéia e não conseguiam decidir:- Desculpe, pode me dar uma fatia de cada uma, vou levar para casa e lá eles decidem.
– o homem que atendia era muito parecido com dona Judith, e não totalmente estranho.
- Não se preocupe, podem decidir com calma porque são dez tipos diferentes. Não é bolo demais?- Ele riu e tirou lasquinhas de alguns, dando provas para os meninos.
- Hum, tia Débora melhor levar um pouco de cada, são todas deliciosas.- Carol estava com a boca suja de glacê e os meninos disputavam os confeitos.
- Seus sobrinhos são espertos, cuidado ou vendo todos os bolos para vocês.
- Tudo bem, vamos mesmo levar vários pedaços, estamos atrapalhando com tanta demora. – De repente reconheceu o homem das tortas: - Lembrei! Estudamos no mesmo colégio e fizemos algumas oficinas juntos. Você é filho da dona Judith!
- Acertou em cheio. Estudei sim. Tanto tempo e a gente ainda consegue lembrar, não é incrível?
- Ele não parou de sorrir durante todo o tempo em que cortou e empacotou os doces, tinha muita paciência em responder todos os fregueses e explicar sobre recheios e coberturas.
Débora retribuía com certa timidez, mas não estava se escondendo e conseguiu manter o diálogo. Quando entregou as sacolas, Antonio tinha um pacotinho na mão:- Desculpe perguntar, este é um bolinho de santo Antonio, minha mãe fez para as solteiras. É uma brincadeira, você pode aceitar?- Débora sorriu e estendeu a mão para pegar o embrulhinho em papel acetinado. Os dedos de Antonio tocaram os dela e houve um momento especial, a fila reclamou a demora e eles se despediram apressados.
Débora pegou as crianças e retornaram ao apartamento, estavam cansadíssimos e mal esperam o lanche para correr para a cama e cair no sono. Sozinha, esperando o sobrinho mais velho, a moça abriu o embrulhinho especial com cuidado e encontrou um bolinho de mel coberto de creme de nozes. Desatou a fitinha de cetim e provou a delícia há tanto esquecida. Logo sentiu uma forma estranha na boca e para seu espanto, achou várias alianças douradas no meio da massa.
Riu com gosto e entendeu a brincadeira, o símbolo da união em cada bolinho deixaria todas as solteiras felizes. Desapontada porque no fundo gostaria de ter sido a única atirou o doce pela janela, um misto de raiva e alívio provocou um longo suspiro.
Como o apartamento era no primeiro andar, ouviu a exclamação de espanto e depois um desaforo. Mais uma vez contrariando seus hábitos, foi espiar a vítima da simpatia e não conseguiu esconder a risada quando deu de cara com Antonio. Débora tentou se desculpar:- Nossa! deixei cair sem querer, pago a lavanderia não se preocupe.- O homem subitamente ficou calmo e sorriu.
- Que isso? Desce que te dou outro, estou levando para casa as sobras da festa.
- Imagine! Não é preciso, fique tranqüilo Antonio.
- Faço questão Débora, se bem que este aqui parece ser o premiado.- Os restos nas mãos de Antonio guardavam as alianças pequeninas. Débora desceu as escadas com receio dos vizinhos estarem escutando o estranho diálogo. Abriu o portão e saiu para a calçada iluminada, muitas pessoas ainda circulavam e o barzinho ao lado do prédio estava lotado:- sua boina está toda suja de creme. – Ele não pareceu preocupado, limitou-se a passar a mão rapidamente com ar divertido.
- Ainda bem que tem bom humor, eu estou me sentindo péssima em ter te acertado com o bolinho. Olha, pra ser sincera eu sei que a intenção é bonita, mas os doces terem alianças pode causar um acidente. E se alguém engolir?- Ele riu alto.
- Débora, o anel é de massa comestível pintado de dourado e que eu saiba, só tem um destes em mil docinhos. Você foi a ganhadora da prenda e ainda vai ter a sorte da simpatia. É uma torta de morango de brinde, amanhã eu venho entregar sem cobrar gorjeta.- Desta vez ela retribuiu o sorriso.
- Então fui a única? Que coisa incrível, estou impressionada e claro que quero meu prêmio.
Antonio e Débora ficaram longo tempo conversando, falaram da vida e lembraram os tempos de escola. O sobrinho adolescente voltou da festa e passou pela tia com um sorrisinho disfarçado. Mais tranqüila, a moça pediu que ele a chamasse se os menores acordassem.
A conversa estava tão boa que eles não queriam se despedir, e mal se deram conta que já era madrugada quando Antonio finalmente deixou a portaria do edifício e foi para casa. Débora subiu os degraus com mais entusiasmo, estava feliz por ter reencontrado o amigo de infância e quem sabe doravante uma boa companhia para caminhar ou fazer um lanche na velha confeitaria da esquina. Por enquanto era o bastante e sabia que havia dado um passo para se livrar das tristezas do passado. Ela conversou com Antonio sobre o noivo e relembraram fatos em comum, mas sem aquele clima de nostalgia e pesar. Sentiu que o novo amigo era divertido e simpático.
Antonio caminhava pelas ruas desertas, não podia explicar a sensação de que a má sorte com as mulheres havia acabado. Tinha reencontrado uma amiga, e a possibilidade de vir a transformar-se em algo mais, não era de todo um sonho. Ajeitou a boina em um gesto típico de quando sentia-se satisfeito e um pouco personagem de seus filmes preferidos.
A noite ia alta e a lua cheia boiava imensa no céu ponteado de estrelas, combinação perfeita com o cheiro da madrugada, mistura de orvalho e terra úmida, jasmim e dama da noite. De repente, Antonio praticamente atropelou uma senhora idosa, ficaram algum tempo se refazendo do baque:- Minha senhora, está machucada?- A idosa não parecia zangada.
- Não! Meu filho, foi só um susto, fique tranqüilo.
- Desculpe, por acaso precisa de ajuda?- A velhinha estava bem vestida e usando jóias, o que surpreendeu Antonio:
- A senhora não deveria andar sozinha a esta hora, principalmente com estes colares.
- Bem... Se puder me acompanhar até minha casa, é que estas ruas são tão iguais que estou horas andando a esmo. – Ela tinha um sorriso brando e os cabelos branquinhos presos em um coque bem arrumado.
Imediatamente Antonio perguntou o endereço:- Desculpe, só sei que estamos pertinho. Estou muito esquecida e perdi o papel onde minha filha escreveu o nome da rua. Sinto muito.
Antonio já ficou um pouco irritado, estava frio e queria ir logo para casa, mas como tinha oferecido ajuda, não podia simplesmente largar a velhinha e ir embora. Um pouco contrariado foram caminhando, e cada rua que ela reconhecia e insistia para que fossem até o final, não encontravam a tal casa amarela com portão branco:- Você estava na barraca dos doces, sempre trabalha nas festas da igreja?
- Sempre infelizmente, pelo menos até este ano porque simplesmente acho uma chatice.
- Ah! Que pena, a festa estava linda! Não vale a pena participar se por obrigação.
- Para mim nem precisaria existir estas bobagens, nem acredito em santo nenhum, só vou porque minha mãe fica fazendo chantagem emocional. A senhora não fica aborrecida, por eu falar desta forma?
- Nossa! A que ponto chegamos, antes todos participavam por livre e espontânea vontade. Sabe que devoção é um ato de fé, e que não adianta insistir? Temos ou não temos. Ah! Pode me chamar de Marieta, nada de senhora pra cá e pra lá.
- Concordo dona Marieta. Eu não acredito em milagres nem nestas besteiras, isto é coisa da minha mãe e avó que fizeram uma promessa boba e fui batizado em homenagem ao santo.
- Sinto muito, que fardo horrível você é obrigado a carregar. – Completamente à vontade com a senhora, em poucos minutos contou toda a vida em especial a revolta que sentia por ser tão solitário e azarado no amor. A idosa concordava e balançava a cabeça, fazendo sinal que compreendia a mágoa de Antônio.
Após algum tempo Antonio perdeu de vez a paciência: - Acho melhor irmos até uma delegacia, sua família com certeza deve estar preocupada com a senhora e eles tem meios de ajudar. -A senhora limitou-se a sorrir e assentiu com a cabeça.
- Sabe que a paciência é uma grande virtude? Mal caminhamos trinta minutos e já quer desistir? Ah! Olhe ali minha casa. Chegamos.- A velhinha apontava o jardim- Olhe lá quantas rosas e todas lindas e perfumadas, como eu adoro rosas vermelhas!
Estavam na porta da casa dos pais de Antonio, eram tantas casinhas amarelas de portão branco que com certeza ela estava enganada, pensou um contrariado Antonio: - Dona Marieta neste bairro todas as casas se parecem, mas com certeza esta é a minha casa. Se quiser entrar e esperar enquanto ligo para a delegacia.
- Na verdade agradeço a companhia, sinto muito por você ter tanta tristeza pelo seu nome, mas tenho certeza que sua vida irá mudar daqui para frente. Não culpe o santinho por coisas que teve que passar, não seja este poço de mágoas meu filho! E principalmente, dê uma chance às novidades que começam a surgir! Não há mal que sempre dure, não é o ditado?
Neste momento o cachorro de Antonio começou a dar saltos no portão e latir, atraindo a atenção o suficiente para que a idosa desaparecesse. Ele ainda foi até a esquina e não havia ninguém, imaginando que finalmente a senhora houvesse achado o caminho, Antonio entrou em casa e encontrou os pais acordados:- Filho, onde você estava? Não viu a confusão que aconteceu no morro aqui perto? Prenderam um traficante famoso e o bairro virou um inferno, foi tiro pra tudo que foi lado, estávamos super preocupados! Ligamos para seu celular sem parar e nada!
-Puxa! A bateria acabou, mas sinceramente não escutei nada e acabei de voltar na maior tranqüilidade. Inclusive ajudei uma velhinha esquisita e rodei o bairro inteiro tentando achar a casa dela. Mas quando chegamos aqui ela foi embora e nem me agradeceu.- A mãe de Antônio estava nervosa mal conseguia falar, abraçada ao filho orava em silencio, aliviada com o retorno do mesmo são e salvo.
- Uma senhora andando sozinha? Coitada! Vai ver tem alguma doença e está perdida, precisamos fazer alguma coisa. –Antonio imediatamente foi buscar o telefone. Por força do hábito, olhou a parede do corredor repleta de molduras com as fotos da família. Tinha pavor do próprio retrato com as seis carinhas e vivia pedindo para a mãe tirar aqueles parentes amarelados. De repente notou um rosto familiar e parou de imediato:
- Mãe, vem aqui rápido. – Os pais vieram correndo- Quem é esta senhora? Nunca vi antes? Sei lá... É vizinha daqui?
- Antonio, é sua bisavó. A tal que fez a promessa que você tanto fala.
- Que nada! Reclamo da vovó Maria , esta aí eu nem conheci.
- Na verdade, sua avó sempre gostou de vê-lo irritado e assumiu a história. Foi tudo uma brincadeira entre elas, sua bisa era devota de Santo Antônio desde mocinha, chegou ao Brasil vinda de Portugal e caiu de amores por esta igrejinha. Seu bisavô ajudou a construir a capela, freqüentavam a paróquia e quando ela faleceu, sua avó continuou o costume. Ela cultivava as rosas do altar, inclusive as que hoje enfeitam nossa jardim são da época da vovó.
- Mãe, esta do quadro é a senhora que encontrei agorinha na rua, tenho certeza!
- Minha avó Marieta era muito boa, ela teve a melhor das intenções, você nasceu com problemas no pulmão e estava praticamente desenganado. Infelizmente ela faleceu logo em seguida e foi uma grande pena. Você teria gostado dela, pode ser uma senhora parecida com ela, impossível ser sua bisavó!
- Marieta?! Mas eu juro que era ela, inclusive ela disse que se chamava Marieta. Mãe! Eu vi um fantasma! Pior, falei mal dela o tempo todo, reclamei e disse coisas horríveis. Ai meu Deus!
Os pais a princípio ficaram sem ação, depois acreditaram que havia sido um milagre e no final, Antonio estava quase desmentindo tamanho era o alvoroço. As tias foram avisadas, a avó queria ir contar para o padre e Antônio ficou tão irritado, que decidiu tomar café na padaria em frente. Trocou rapidamente a camiseta da festa e saiu correndo, sem dar chance aos pais de perguntarem qualquer coisa além do que já havia narrado.
Pediu uma média com pão na chapa e comprou o jornal. Começou a ler as notícias e constatou que realmente havia se livrado de um grande perigo:- Bom dia! Já de pé tão cedinho? – Era Débora toda arrumada com os sobrinhos.
- Pois é... Você também está bem disposta!
- Com um dia lindo destes, é impossível ficar em casa com um parque tão pertinho.
- Também vou dar uma voltinha daqui a pouco. Todo domingo aproveito para repor as energias.
- Então a gente se encontra na trilha do lago, é uma caminhada maravilhosa, o lugar é bem preservado. Vamos crianças!- E a moça se despediu com um aceno.
Antonio não visitava o parque há anos. Quando foi pagar a conta puxou uma nota, e com ela algumas alianças que enfeitavam o doce da noite anterior, caíram no chão rolando para todas as direções. As pessoas começaram a perseguir as rodelinhas e Antonio muito sem graça, praticamente saiu correndo da padaria, sem entender como elas haviam ido parar em seu bolso.
De repente o moço sentiu-se menos cético quanto os mistérios da vida, tanto que quando escutou o primo gritando seu nome, deu um grande sorriso e acenou com entusiasmo. Passou pela porta da igrejinha de santo Antônio e fez o sinal da cruz, murmurou baixinho um pedido de desculpas pelas imprecações do passado e seguiu ligeiro para se arrumar e encontrar Débora na reserva florestal.
Antonio
Mais um ano sozinho pensava o homem cabisbaixo, caminhando pela plataforma apinhada do metrô e tentando se desvencilhar dos empurrões. Equilibrando-se entre dois jovens parrudos, lamentava a sorte no amor, tão ruim que era praticamente um direito adquirido. Anos a fio lutando contra a solidão e absolutamente nada acontecia.
Algumas vezes colocava a culpa na avó materna, sempre metida em rezas e crendices, e que havia feito uma promessa à revelia dos próprios pais, que queriam que ele se chamasse Wanderley em homenagem ao cantor. Infelizmente na hora do parto houve complicações e a solução foi apelar para Santo Antônio, que na opinião da família fez um milagre.
E a mirrada criança foi batizado em homenagem ao santo casamenteiro, o que deveria por força abrir as portas da felicidade amorosa para o afilhado, pelo menos era o que o menino Antônio esperava, sempre devoto e cheio de fé. Isto até os dez anos, quando foi pego bebendo vinho na sacristia e convidado a deixar o cargo de coroinha.
Tudo por causa de uma colega de escola, que não quis ir ao baile de formatura do primeiro grau. Ela e todas as outras que ele convidou, sobrando a dura tarefa a uma prima enjoada e com memória de elefante. Mesmo passado quase cinqüenta anos, a malvada sempre contava o caso nas reuniões familiares. A avó ficou inconsolável porque a promessa incluía ser um bom devoto até os vinte e um anos, o que não pôde acontecer e a família começou a achar que o haviam atraído a ira do santo por quebra da dívida. Primas solteiras e tias sem par, reclamavam e exigiam que o menino fosse readmito na igreja, fato que jamais aconteceu.
Depois de alguns anos virou Toninho, Tonico, Tom ou qualquer coisa similar. Embora estivesse na casa dos quarenta e tal, não era de todo mal-apessoado: a careca acentuada, barriguinha saliente e o metro e sessenta e cinco mais espichado do bairro, tinha lá um charme secreto no nariz italiano. Pelo menos era o que alegava, quando colocava a boina meio caída e ia dar voltas no bairro dos imigrantes. Entre goles do vinho da casa e mordidas na porpeta quentinha, sentia-se o próprio personagem do filme Cinema Paradiso, o seu preferido, pela música e história de amor. Entre gotas de azeite e um ou outro comentário com alguém sozinho, Toninho passava o tempo e esquecia a solidão.
Sim! Antonio era um romântico incurável e solitário por imposição do cruel destino. E vivia reclamando nas orações noturnas em seu quartinho de solteirão, pois ainda morando com os pais velhinhos e solidários em uma casa de vila. Quase todas as casas ainda eram ocupadas pelos proprietários originais e os agregados, filhos ou parentes iam formando um grupo entrosado onde não faltavam trocas de receitas e jogos de sueca na calçada.
Os namoros de Antonio eram rápidos e terminavam sem a menor explicação, o que o deixava ainda mais inseguro e constrangido. Uma vez apaixonou-se por uma colega de trabalho, saíram por algum tempo e ele estava sempre mandando flores e levando a moça para jantar nas suas cantinas favoritas. Foi exatamente no dia do nhoque, uma tradição que manda colocar sob o prato uma nota de dinheiro para atrair fortuna, que ele perdeu a namorada para um garçom recém chegado da Itália. Nunca Antonio sentiu tanto ódio dos napolitanos, meses mais tarde quando viu o convite de casamento no mural do refeitório, ficou dias deprimido e se afastou de vez dos colegas de trabalho. Foi quando descobriu a cozinha lusitana e passou a adorar bacalhau e criticar as massas que antes eram o prato preferido.
Não tinha muitos amigos, apenas os vizinhos do bairro e os parentes. A família era grande e reunia-se por qualquer motivo, crianças nasciam sem parar e as fofocas também. No final sempre o provocavam com a velha pergunta: -Quando iria finalmente casar ou ter alguém fixo? Quando ia deixar de lado a vida de solteirão? Nestas horas Toninho sentia uma revolta imensa porque não era culpado, se a vida não havia colocado uma mulher com vontade de ter um relacionamento sério, que culpassem o destino ou como ele mesmo dizia, a bendita promessa da avó. E a velhinha, mesmo com bastante idade não levava desaforo:
- Meu netinho querido, olha como está cada dia mais parecido com o falecido! Tuninho um dia vai conhecer uma noiva linda, vamos fazer um casamento pra ninguém botar defeito e calar a bota desta gente.Vai ser um verdadeiro milagre!- O rapaz resmungava e nada respondia.
Antônio tomava café recém coado e fatiava um bolo de fubá com erva-doce:- Mãe, nem pense em oferecer meus préstimos ao padre este ano, já estou avisando que não vou tomar conta de barraca.- Tomou um gole grande e respirou aliviado com a própria coragem.
- Mas meu filho, é quase uma tradição familiar ajudar na festinha da paróquia. Todos sabem disso, eu mesma já fiz quase todos os bolos com a ajuda do seu pai. Olhe como ele está feliz, confeitando com jujubas a torta de chocolate.- Realmente o homem parecia completamente absorto com a tarefa, Antonio disfarçou e não conteve o riso quando viu o pai enchendo os bolsos de balas. A mãe por conta de um parente diabético, obrigava a família a seguir uma dieta rigorosa.
A grande ironia era dona Judith ser a melhor confeiteira do bairro, e ter a casa sempre cheia de guloseimas proibidas:
- Porque está rindo, meu filho? Algumas balinhas estão fora do lugar mas depois eu conserto, não deboche do seu pai.Filho se você não puder, teremos que ir no seu lugar, mas seu pai anda se queixando tanto do reumatismo! – Antonio deu de ombros e foi pegar um ar, o cheiro dos doces pareceu mais enjoativo e não havia argumento. Ia perder dois finais de semana correndo de um lado para o outro, agüentando o frio cortante do espaço ao relento, tentando dar conta da multidão faminta, ouvindo gritos de anarriê e o som da sanfona guiando os passos da quadrilha. Um verdadeiro pesadelo que aumentava ainda mais sua antipatia com o santo.
Pensou em quantas vezes havia alimentado a esperança, de encontrar uma mulher simpática e interessante. Queria pelo menos uma amizade que valesse a pena, mas tudo que ouvia eram as pessoas gritando pelas tortas de chocolate, limão, morango e sabe-se lá mais o quê a mãe inventasse. Todo ano a mesma festa chata, só que desta vez ele estava mais irritado pelos dias em que não poderia acessar a internet e os sites de encontro, sua mais nova mania e esperança de encontrar a cara-metade.
Antônio caminhou pelas ruas tranqüilas do Grajaú, olhando as casas e os jardins com famílias. Uma ponta de inveja quando topava com os casais passeando de mãos dadas e a meninada jogando bola. Sentiu-se velho demais e com um peso nos ombros além das forças minguadas, pensou no emprego de funcionário público, bibliotecário de um acervo onde quase ninguém aparecia. De repente pensou no cheiro de naftalina e chutou uma pedra, sentou no barzinho quase vazio e pediu uma cerveja. De longe dois amigos de seu pai acenaram, mas não o convidaram para a mesa. Acrescentou ao pedido uma dose de conhaque. A tarde bonita de inverno ainda não estava fria, mas ele sabia que dias gelados sempre o deixavam aborrecido e saudoso de uma boa companhia feminina.
Débora
-A sina de toda mulher solteira com irmãs casadas, não é ser babá nos finais de semana- Débora resmungava o estranho mantra enquanto juntava os cacos do bibelô preferido-Não compreendo porque sempre sobra pra mim. Que chatice!
Olhou para a sobrinha que aguardava alguma reação, estava cansada e não tinha ido ao salão fazer a unha, hábito que conservava há anos e que adorava. A casa toda estava um caos e ela tinha orgulho da sua arrumação impecável e dos tapetes e sofás brancos. Débora era uma mulher independente e com um salário que garantia certa comodidade. Seu único pecado era o consumismo, comprar pela internet as novidades em perfumes e miniaturas.
Eram quatro crianças com idades que iam de três a dezesseis anos enfiados em seu apartamento jeitoso e repleto de bibelôs. Coleções em porcelana espalhadas por estantes altas, longe do alcance dos menores, mas foi justamente e afilhada de doze anos que deixou cair a peça caríssima.
Esparramado no sofá com o tênis sujo tocando as almofadas, o sobrinho adolescente jogava vídeo game alheio ao mundo real, enquanto dois meninos disputavam um pacote de biscoito de chocolate. Os farelos voavam e o tapete claro estava salpicado de pipoca, refrigerante e outras coisas grudentas. Débora ainda podia escutar as recomendações das irmãs sobre remedinhos e outros conselhos:- Muito bem, Clarol saia de perto dos vidros e vá tomar um banho, Pedro e Paulo se querem comer usem a mesa e Henrique tire os pés do sofá!- Henrique soltou um palavrão abafado e o restante obedeceu.
Mais um dia e tudo voltaria ao normal, as duas irmãs e os pais haviam ido a Campos do Jordão e estava frio demais para levar as crianças. Pelo menos foi a desculpa que arrumaram, mas Débora sabia que o pacote não incluía camas extras e muito menos preocupações em um final de semana romântico. Era dia dos namorados e ela não tinha namorado ou pretendente, paquera e algo parecido desde a morte do noivo. Há exatos seis anos atrás, quando decidiu que não valia a pena conhecer mais ninguém e estava velha demais para procurar.
Aos trinta e oito e aparentando bem menos, sabia que usava esta desculpa por pura insegurança de quem cresceu com o namorado e jamais tinha tido outro homem. Ela só havia aprendido a namorar o futuro marido, sentia medo de ser rejeitada, tinha vergonha de falar nas festas e sempre fazia o papel de sombra. Caminhou até a janela aberta sentiu o vento frio, pensou no casaco novo que ainda nem tinha tirado a etiqueta, nas botas pretas e confortáveis, teve vontade de se arrumar outra vez e sair pelo bairro.
Carol voltou enrolada no roupão da tia, os pingos dos cabelos molhados formavam uma trilha no carpete:- tia Dê, vamos a festa junina? Não está sentindo o cheirinho do salsichão? – Os gêmeos começaram a gritar imediatamente que queriam cachorro-quente e pescaria.
Débora olhou as crianças e voltou à janela, bastaria atravessar a praça e chegariam a festa que sempre a aborreceu. Havia jurado nunca mais por os pés naquela igreja, toda a vida de Débora esteve ligada ao lugar e isto a entristecia. Foi durante a apresentação da quadrilha do colégio que começou a namorar Eduardo e mais tarde decidiram casar na pequena capela. Tantos anos havia se passado e ela ainda temia não ter coragem de atravessar os antigos portões. Os meninos esperavam a resposta e o sobrinho mais velho largou o jogo:- Tia, to de saco cheio de ficar trancado aqui com estes moleques – Débora decidiu naquele momento que podia tentar com a ajuda dos sobrinhos, ao menos dar uma volta e ver algumas barraquinhas na rua. Deu as ordens e todos correram para trocar de roupar, pentear e colocar os casacos.
De mãos dadas com os gêmeos, ela caminhou com os grupos animados que iam em direção ao som e luzes coloridas. Muita gente trazia os filhos vestidos a caráter e não existia qualquer distinção de idades, todos pareciam motivados e alegres. Logo estavam percorrendo as barracas e Debóra mal se deu conta até ver o velho padre acenando. Respondeu ao aceno e não quis se aproximar, temendo conversas sobre o passado que ainda era uma ameaça.
Sentiu o coração aos pulos quando as apresentações de dança começaram, muitas escolas e associações brincavam na maior animação. Os sobrinhos pediam mil coisas e ela era arrastada para lá e para cá, dependendo do interesse por coelhinhos na toca e jogo de argolas. Reconheceu algumas amigas antigas que foram se aproximando e colocando a vida em dia. A grande maioria estava na festa pelas recordações e carinho que guardavam da infância. Mesmo aquelas que moravam em outros bairros, tinha vindo prestigiar e saborear bons momentos.
Débora lembrou que um dia também sentiu-se assim e desejou ter forças para recuperar o que deixou para trás. Os meninos riam, Carol estava contente com a prenda e o sobrinho mais velho paquerava as meninas e conversava com os amigos. Tudo muito normal. Era dia de santo Antonio e dia dos namorados, Débora resolveu comprar uma pequena imagem, haviam lindas miniaturas e ela adorava estas peças. Na barraca da igreja uma senhora vendia fitas, velas e tudo relacionado ao santo. Recebeu a moça com um sorriso:- Ah! Que bom ver novamente a menina!.- Parecia alegre e sincera.
- A senhora me conhece? – Débora ficou surpresa, mas não incomodada tamanha era a simpatia da idosa.
- Mas é claro! Sou a doceira do bairro. Lembro perfeitamente deste rostinho, você continua a mesma desde os tempos de escola, ainda é louca por doces de compota?- A moça abriu a boca e ficou sem palavras, era demais ver aquela senhora, o penteado e o porte ainda eram os mesmos. Aquela era a mulher que ela havia escolhido para fazer seu bolo e doces de casamento.
- Dona Judith! Dinâmica como sempre, eu ainda amo doces de compota. Que memória!
- Ah querida, hoje só fico poucas horas na festa, antes vinha todos os dias. A idade pesa bastante. Mas o que você deseja? Um santinho para fazer a simpatia?
- Não. Um normal para ter no meu quarto, adoro coleções mas não tenho um único santo em casa.
- Pode levar e aproveitar o dia para fazer o pedido. É o que todas querem, vejo que não usa aliança e deve estar solteira. Pegue a miniatura e este aqui com a simpatia. São tão baratinhos.
Débora riu e pagou as duas peças, uma delas vinha embalada com um folhetinho explicando a simpatia, comprou mais pela insistência de dona Judith porque no fundo não acreditava em nada. Já ia saindo quando resolveu perguntar se ela ainda fazia doces, para seu espanto ela apontou uma barraquinha apinhada de gente comprando bolos e tortas:- Eu garanto que não mudaram nadinha, pode confiar querida, seus sobrinhos vão adorar.- A velhinha sorriu e foi dar atenção a outra freguesa, Débora disfarçou o espanto porque não havia dito nada sobre as crianças.
Foram para outro extremo do pátio e no final da fila, já discutiam qual sabor iriam comprar, quando chegou a vez de serem atendidos os gêmeos mudaram de idéia e não conseguiam decidir:- Desculpe, pode me dar uma fatia de cada uma, vou levar para casa e lá eles decidem.
– o homem que atendia era muito parecido com dona Judith, e não totalmente estranho.
- Não se preocupe, podem decidir com calma porque são dez tipos diferentes. Não é bolo demais?- Ele riu e tirou lasquinhas de alguns, dando provas para os meninos.
- Hum, tia Débora melhor levar um pouco de cada, são todas deliciosas.- Carol estava com a boca suja de glacê e os meninos disputavam os confeitos.
- Seus sobrinhos são espertos, cuidado ou vendo todos os bolos para vocês.
- Tudo bem, vamos mesmo levar vários pedaços, estamos atrapalhando com tanta demora. – De repente reconheceu o homem das tortas: - Lembrei! Estudamos no mesmo colégio e fizemos algumas oficinas juntos. Você é filho da dona Judith!
- Acertou em cheio. Estudei sim. Tanto tempo e a gente ainda consegue lembrar, não é incrível?
- Ele não parou de sorrir durante todo o tempo em que cortou e empacotou os doces, tinha muita paciência em responder todos os fregueses e explicar sobre recheios e coberturas.
Débora retribuía com certa timidez, mas não estava se escondendo e conseguiu manter o diálogo. Quando entregou as sacolas, Antonio tinha um pacotinho na mão:- Desculpe perguntar, este é um bolinho de santo Antonio, minha mãe fez para as solteiras. É uma brincadeira, você pode aceitar?- Débora sorriu e estendeu a mão para pegar o embrulhinho em papel acetinado. Os dedos de Antonio tocaram os dela e houve um momento especial, a fila reclamou a demora e eles se despediram apressados.
Débora pegou as crianças e retornaram ao apartamento, estavam cansadíssimos e mal esperam o lanche para correr para a cama e cair no sono. Sozinha, esperando o sobrinho mais velho, a moça abriu o embrulhinho especial com cuidado e encontrou um bolinho de mel coberto de creme de nozes. Desatou a fitinha de cetim e provou a delícia há tanto esquecida. Logo sentiu uma forma estranha na boca e para seu espanto, achou várias alianças douradas no meio da massa.
Riu com gosto e entendeu a brincadeira, o símbolo da união em cada bolinho deixaria todas as solteiras felizes. Desapontada porque no fundo gostaria de ter sido a única atirou o doce pela janela, um misto de raiva e alívio provocou um longo suspiro.
Como o apartamento era no primeiro andar, ouviu a exclamação de espanto e depois um desaforo. Mais uma vez contrariando seus hábitos, foi espiar a vítima da simpatia e não conseguiu esconder a risada quando deu de cara com Antonio. Débora tentou se desculpar:- Nossa! deixei cair sem querer, pago a lavanderia não se preocupe.- O homem subitamente ficou calmo e sorriu.
- Que isso? Desce que te dou outro, estou levando para casa as sobras da festa.
- Imagine! Não é preciso, fique tranqüilo Antonio.
- Faço questão Débora, se bem que este aqui parece ser o premiado.- Os restos nas mãos de Antonio guardavam as alianças pequeninas. Débora desceu as escadas com receio dos vizinhos estarem escutando o estranho diálogo. Abriu o portão e saiu para a calçada iluminada, muitas pessoas ainda circulavam e o barzinho ao lado do prédio estava lotado:- sua boina está toda suja de creme. – Ele não pareceu preocupado, limitou-se a passar a mão rapidamente com ar divertido.
- Ainda bem que tem bom humor, eu estou me sentindo péssima em ter te acertado com o bolinho. Olha, pra ser sincera eu sei que a intenção é bonita, mas os doces terem alianças pode causar um acidente. E se alguém engolir?- Ele riu alto.
- Débora, o anel é de massa comestível pintado de dourado e que eu saiba, só tem um destes em mil docinhos. Você foi a ganhadora da prenda e ainda vai ter a sorte da simpatia. É uma torta de morango de brinde, amanhã eu venho entregar sem cobrar gorjeta.- Desta vez ela retribuiu o sorriso.
- Então fui a única? Que coisa incrível, estou impressionada e claro que quero meu prêmio.
Antonio e Débora ficaram longo tempo conversando, falaram da vida e lembraram os tempos de escola. O sobrinho adolescente voltou da festa e passou pela tia com um sorrisinho disfarçado. Mais tranqüila, a moça pediu que ele a chamasse se os menores acordassem.
A conversa estava tão boa que eles não queriam se despedir, e mal se deram conta que já era madrugada quando Antonio finalmente deixou a portaria do edifício e foi para casa. Débora subiu os degraus com mais entusiasmo, estava feliz por ter reencontrado o amigo de infância e quem sabe doravante uma boa companhia para caminhar ou fazer um lanche na velha confeitaria da esquina. Por enquanto era o bastante e sabia que havia dado um passo para se livrar das tristezas do passado. Ela conversou com Antonio sobre o noivo e relembraram fatos em comum, mas sem aquele clima de nostalgia e pesar. Sentiu que o novo amigo era divertido e simpático.
Antonio caminhava pelas ruas desertas, não podia explicar a sensação de que a má sorte com as mulheres havia acabado. Tinha reencontrado uma amiga, e a possibilidade de vir a transformar-se em algo mais, não era de todo um sonho. Ajeitou a boina em um gesto típico de quando sentia-se satisfeito e um pouco personagem de seus filmes preferidos.
A noite ia alta e a lua cheia boiava imensa no céu ponteado de estrelas, combinação perfeita com o cheiro da madrugada, mistura de orvalho e terra úmida, jasmim e dama da noite. De repente, Antonio praticamente atropelou uma senhora idosa, ficaram algum tempo se refazendo do baque:- Minha senhora, está machucada?- A idosa não parecia zangada.
- Não! Meu filho, foi só um susto, fique tranqüilo.
- Desculpe, por acaso precisa de ajuda?- A velhinha estava bem vestida e usando jóias, o que surpreendeu Antonio:
- A senhora não deveria andar sozinha a esta hora, principalmente com estes colares.
- Bem... Se puder me acompanhar até minha casa, é que estas ruas são tão iguais que estou horas andando a esmo. – Ela tinha um sorriso brando e os cabelos branquinhos presos em um coque bem arrumado.
Imediatamente Antonio perguntou o endereço:- Desculpe, só sei que estamos pertinho. Estou muito esquecida e perdi o papel onde minha filha escreveu o nome da rua. Sinto muito.
Antonio já ficou um pouco irritado, estava frio e queria ir logo para casa, mas como tinha oferecido ajuda, não podia simplesmente largar a velhinha e ir embora. Um pouco contrariado foram caminhando, e cada rua que ela reconhecia e insistia para que fossem até o final, não encontravam a tal casa amarela com portão branco:- Você estava na barraca dos doces, sempre trabalha nas festas da igreja?
- Sempre infelizmente, pelo menos até este ano porque simplesmente acho uma chatice.
- Ah! Que pena, a festa estava linda! Não vale a pena participar se por obrigação.
- Para mim nem precisaria existir estas bobagens, nem acredito em santo nenhum, só vou porque minha mãe fica fazendo chantagem emocional. A senhora não fica aborrecida, por eu falar desta forma?
- Nossa! A que ponto chegamos, antes todos participavam por livre e espontânea vontade. Sabe que devoção é um ato de fé, e que não adianta insistir? Temos ou não temos. Ah! Pode me chamar de Marieta, nada de senhora pra cá e pra lá.
- Concordo dona Marieta. Eu não acredito em milagres nem nestas besteiras, isto é coisa da minha mãe e avó que fizeram uma promessa boba e fui batizado em homenagem ao santo.
- Sinto muito, que fardo horrível você é obrigado a carregar. – Completamente à vontade com a senhora, em poucos minutos contou toda a vida em especial a revolta que sentia por ser tão solitário e azarado no amor. A idosa concordava e balançava a cabeça, fazendo sinal que compreendia a mágoa de Antônio.
Após algum tempo Antonio perdeu de vez a paciência: - Acho melhor irmos até uma delegacia, sua família com certeza deve estar preocupada com a senhora e eles tem meios de ajudar. -A senhora limitou-se a sorrir e assentiu com a cabeça.
- Sabe que a paciência é uma grande virtude? Mal caminhamos trinta minutos e já quer desistir? Ah! Olhe ali minha casa. Chegamos.- A velhinha apontava o jardim- Olhe lá quantas rosas e todas lindas e perfumadas, como eu adoro rosas vermelhas!
Estavam na porta da casa dos pais de Antonio, eram tantas casinhas amarelas de portão branco que com certeza ela estava enganada, pensou um contrariado Antonio: - Dona Marieta neste bairro todas as casas se parecem, mas com certeza esta é a minha casa. Se quiser entrar e esperar enquanto ligo para a delegacia.
- Na verdade agradeço a companhia, sinto muito por você ter tanta tristeza pelo seu nome, mas tenho certeza que sua vida irá mudar daqui para frente. Não culpe o santinho por coisas que teve que passar, não seja este poço de mágoas meu filho! E principalmente, dê uma chance às novidades que começam a surgir! Não há mal que sempre dure, não é o ditado?
Neste momento o cachorro de Antonio começou a dar saltos no portão e latir, atraindo a atenção o suficiente para que a idosa desaparecesse. Ele ainda foi até a esquina e não havia ninguém, imaginando que finalmente a senhora houvesse achado o caminho, Antonio entrou em casa e encontrou os pais acordados:- Filho, onde você estava? Não viu a confusão que aconteceu no morro aqui perto? Prenderam um traficante famoso e o bairro virou um inferno, foi tiro pra tudo que foi lado, estávamos super preocupados! Ligamos para seu celular sem parar e nada!
-Puxa! A bateria acabou, mas sinceramente não escutei nada e acabei de voltar na maior tranqüilidade. Inclusive ajudei uma velhinha esquisita e rodei o bairro inteiro tentando achar a casa dela. Mas quando chegamos aqui ela foi embora e nem me agradeceu.- A mãe de Antônio estava nervosa mal conseguia falar, abraçada ao filho orava em silencio, aliviada com o retorno do mesmo são e salvo.
- Uma senhora andando sozinha? Coitada! Vai ver tem alguma doença e está perdida, precisamos fazer alguma coisa. –Antonio imediatamente foi buscar o telefone. Por força do hábito, olhou a parede do corredor repleta de molduras com as fotos da família. Tinha pavor do próprio retrato com as seis carinhas e vivia pedindo para a mãe tirar aqueles parentes amarelados. De repente notou um rosto familiar e parou de imediato:
- Mãe, vem aqui rápido. – Os pais vieram correndo- Quem é esta senhora? Nunca vi antes? Sei lá... É vizinha daqui?
- Antonio, é sua bisavó. A tal que fez a promessa que você tanto fala.
- Que nada! Reclamo da vovó Maria , esta aí eu nem conheci.
- Na verdade, sua avó sempre gostou de vê-lo irritado e assumiu a história. Foi tudo uma brincadeira entre elas, sua bisa era devota de Santo Antônio desde mocinha, chegou ao Brasil vinda de Portugal e caiu de amores por esta igrejinha. Seu bisavô ajudou a construir a capela, freqüentavam a paróquia e quando ela faleceu, sua avó continuou o costume. Ela cultivava as rosas do altar, inclusive as que hoje enfeitam nossa jardim são da época da vovó.
- Mãe, esta do quadro é a senhora que encontrei agorinha na rua, tenho certeza!
- Minha avó Marieta era muito boa, ela teve a melhor das intenções, você nasceu com problemas no pulmão e estava praticamente desenganado. Infelizmente ela faleceu logo em seguida e foi uma grande pena. Você teria gostado dela, pode ser uma senhora parecida com ela, impossível ser sua bisavó!
- Marieta?! Mas eu juro que era ela, inclusive ela disse que se chamava Marieta. Mãe! Eu vi um fantasma! Pior, falei mal dela o tempo todo, reclamei e disse coisas horríveis. Ai meu Deus!
Os pais a princípio ficaram sem ação, depois acreditaram que havia sido um milagre e no final, Antonio estava quase desmentindo tamanho era o alvoroço. As tias foram avisadas, a avó queria ir contar para o padre e Antônio ficou tão irritado, que decidiu tomar café na padaria em frente. Trocou rapidamente a camiseta da festa e saiu correndo, sem dar chance aos pais de perguntarem qualquer coisa além do que já havia narrado.
Pediu uma média com pão na chapa e comprou o jornal. Começou a ler as notícias e constatou que realmente havia se livrado de um grande perigo:- Bom dia! Já de pé tão cedinho? – Era Débora toda arrumada com os sobrinhos.
- Pois é... Você também está bem disposta!
- Com um dia lindo destes, é impossível ficar em casa com um parque tão pertinho.
- Também vou dar uma voltinha daqui a pouco. Todo domingo aproveito para repor as energias.
- Então a gente se encontra na trilha do lago, é uma caminhada maravilhosa, o lugar é bem preservado. Vamos crianças!- E a moça se despediu com um aceno.
Antonio não visitava o parque há anos. Quando foi pagar a conta puxou uma nota, e com ela algumas alianças que enfeitavam o doce da noite anterior, caíram no chão rolando para todas as direções. As pessoas começaram a perseguir as rodelinhas e Antonio muito sem graça, praticamente saiu correndo da padaria, sem entender como elas haviam ido parar em seu bolso.
De repente o moço sentiu-se menos cético quanto os mistérios da vida, tanto que quando escutou o primo gritando seu nome, deu um grande sorriso e acenou com entusiasmo. Passou pela porta da igrejinha de santo Antônio e fez o sinal da cruz, murmurou baixinho um pedido de desculpas pelas imprecações do passado e seguiu ligeiro para se arrumar e encontrar Débora na reserva florestal.