História Desdita

Agora contarei a história como ela foi. Acredito que você não deva ser como a maioria das pessoas que acreditam naquilo que ouvem pela primeira vez, ou lêem. Você deve ser das que sabem muito bem como é a história, quem conta a versão “verdadeira” é o vencedor. Pois minha narração a partir das próximas linhas é a verdade sobre a melhor mentira contada desde a criação do universo. Não, não é exagero meu, já que fui o derrotado e nunca tive o direito de me defender.

Você já deve ter ouvido falar de como perdi o paraíso. Agora já sabe quem sou ou preciso ser mais explícito? Deixe-me lhe dar mais dicas. Fui o primeiro anjo criado por deus, logo após o universo ganhar forma física eu ganhei forma espiritual, o mais iluminado dentre todos, o mais belo, o mais sábio, portanto, o mais invejado pelos outros e benquisto pelo criador, esse que se diz o senhor de toda a verdade. Como todos já ouviram da boca dele e de seus pobres profetas eu caí por desejar tomar o trono do reino dos céus junto com toda a obra da criação, isso é pura balela.

Lembro como hoje o que aconteceu de verdade. Naquele tempo eu era o braço direito do criador, fazia tudo o que ele me pedia sem questionar já que ele era, ainda é, meu pai. Numa das minhas andanças pelo cosmos conheci uma outra filha dele, uma anja linda chamada Néfer, a criatura mais doce e cândida de toda existência. Apesar dela ser minha irmã não seria crime algum querer desposá-la por meu desejo ser amor, não tesão. Cortejei sua beleza durante uma eternidade e meia. Antes da criação da Terra consegui seu amor e a permissão de meu amaldiçoado pai para casarmos. Foi a celebração mais linda já vista.

Nossos primeiros séculos de convivência foram perfeitos, nosso romance causava comoção nos mais rechonchudos querubins do céu. Foi justamente quando ele começou aquilo que seria o meu fim. A Terra era seu projeto mais ambicioso, há muito tempo que vinha arquitetando toda a construção do lar para, segundo ele, sua obra prima, o homem. Apoiei sua decisão de colocar em marcha a construção do planeta, fiz tudo o que me pediu, encomendei a entidades dos cantos mais longíquos do universo para que nada faltasse na realização máxima de sua onipotência. E como secretária tomei minha esposa. Como ela era organizada e paciente! Como seus gestos me encantavam. Meu pai tinha sido o padrinho de nossa cerimônia, todos os dias abençoava nosso casamento.

Assim que se iniciaram as obras a minha esposa passou a trabalhar em horário integral para evitar qualquer desencaminho da obra. Por isso ele me pediu para ficar em seu lugar no céu, de forma provisória. Nessa época Gabriel era meu melhor amigo, assim como ainda sou hoje no nosso rotineiro chá da tarde aqui no inferno, ou na Terra às vezes. Discutíamos durante muito tempo sobre diversos assuntos e alimentávamos a curiosidade de como seria a Terra quando estivesse terminada. Cada um no paraíso tinha um palpite de como seria o lugar.

Quando podíamos íamos a Terra para ver como andava o processo, mas é bom lembrar que eu não descia até lá, já que precisava tomar conta do paraíso. Gabriel sempre me trazia as novidades da construção até que o dia onde me trouxe péssimas novas. Ainda lembro bem de nosso diálogo.

- Lúcifer você confia muito em sua esposa não?

- Mas claro que sim Gabriel, que tolice sua perguntar algo desse gênero!

- Então você não vai acreditar em uma palavra do que vou lhe dizer, apesar de sermos muito amigos.

- E o que você teria para contar sobre ela? Néfer é a mais pura criatura do universo, não existe nada que se passe na cabeça de minha esposa que soe com um pingo de malícia.

- Não foi isso que vi quando fui a Terra essa tarde. Tenha certeza Lúcifer sua esposa entende de malicia muito mais que qualquer outra criatura conhecida.

- O que você está dizendo? – levantei-me do trono com as mãos trêmulas e a lábio seco – Me diga o que está insinuando!

Gabriel engoliu a saliva e soltou:

- A vi com nosso pai lhe traindo, prefiro nem contar o que faziam, nem eu tenho tanta imaginação.

Não acreditei no que ouvia, claro que não poderia, era a mais pura mentira, mas como ia conseguir dormir até tirar aquela história a limpo?

- Lúcifer, sou muito seu amigo e odiaria mentir ou vê-lo triste. Como sei que não consegue acreditar no que digo façamos um trato, desça até a Terra e sorrateiramente procure-os, terá certeza do que lhe conto.

Prontamente aceitei a sugestão de meu fiel amigo. Com minhas belas asas voei pelo infinito desejando ser aquela história uma mentira maior que o espaço ao meu redor. Caminhei pelo novo mundo que estava sendo construído, alguns vulcões aqui e ali fabricando a fumaça que viria a criar a atmosfera, em outros cantos se viam grandes lagos que seriam um dia os oceanos e mares, brotos no chão formariam as florestas e tudo o que se vê hoje ainda era feto naquela época. Meu pés erravam pelo chão calcáreo e vulcânico, meus braços tremiam contra o vento cortante da insalubre Terra.

Num canto afastado do planeta vi meu padrinho de casamento, com a traidora, fodiam-se, faziam dos corpos um réquiem para meu amor. Maldita! Gritei para ver em seus rostos o horror da descoberta. Desgraçada! Bradei. Sem olhar para trás voei novamente para o céu afim de juntar meus amigos, o ódio me consumia. Meu maior desejo era matá-lo, era violentá-la até a morte. Desejava sangue e carne dos dois ardendo numa enorme pira consumindo meu ódio até o fim dos tempos.

Entrei no paraíso com o inferno em meu coração, juntei as cortes celestes. Exaltei-os. Contei da traição, contei da desgraça em que se encontrava o Éden, alguns me seguiram. Pegaram suas espadas, suas armaduras e escudos, me seguiram, vieram junto comigo às portas do criador. Lá estava ele com seu partido a me ofender, a inventar calúnias que aumentavam ainda mais meu ódio.

- Mentiroso! – gritava contra ele – você matou o que de mais belo já nasceu em mim! Junto com essa miserável eu enterrarei meu amor decadente!

Lutamos. Suas legiões contra as minhas. Durante eras ficamos a nos degladiar. Por fim perdi o combate como todos sabem, mas não de forma tranquila, descemos ao fosso, feridos, humilhados e esquecidos durante muito, muito tempo. Ainda recebia visitas de Gabriel. Secretamente me ajudou a sair do buraco onde me encontrava caído com os outros, ajudou-me a erguer essa morada onde hoje o recebo para nossas animadas conversas. Naquele tempo ainda, meu amigo me contou o que estava acontecendo, Néfer havia engravidado do meu falecido pai sua gravidez já estava avançada, eles não sabiam o que fazer para esconder dos outros a verdade que me inocentava. Em um ato de genialidade ele a mandou para Terra alegando que estava em uma santa missão: deveria engravidar de um homem para assim levar a mensagem de amor que a humanidade precisava. Desça jogada nasceu o seu filho mais amado, o meu maior inimigo: Jesus, filho de uma traição, filho de Maria.