Copa do Mundo - Copa da Várzea
Futebol, não é o meu forte. Pouco ou nada entendo sobre o assunto mas, como bom palpiteiro, sempre dei as minhas 'penadas' com opiniões que, por vezes, foram aceitas e deram certo.
Esporte bretão e bem ao gosto de nossa gente, o brasileiro é unânime em afirmar que o futebol é uma paixão nacional e, portanto, já faz parte do cotidiano de todos, principalmente quando se trata em disputas dos muitos campeonatos - regionais, estaduais e nacional - e, o que dizer quando se trata de Copa do Mundo.
Ainda não dispúnhamos das atuais tecnologias e as rádios eram quem dominavam as comunicações em massa, já que as emissoras de televisão ainda engatinhavam em suas modernizações.
Paralelamente à estes avanços, os grandes estádios - Pacaembú, Parque Antártica, Parque São Jorge, Juventus e Portuguêsa dentre outros - eram os palcos para os grandes espetáculos esportivos nas tardes de domingo e para lá, convergiam os muitos fanáticos torcedores para torcerem por seus times de coração.
Ônibus, carros, caminhões, carroças, bicicletas, motocicletas, a pé, não importava como chegassem, desde que chegassem e ocupassem os melhores lugares nas gerais e nas arquibancadas, e tivessem uma perfeita visão de todo o cenário da disputa esportiva que logo se iniciaria.
Já dispunha o fiel torcedor o seu 'inseparável' companheiro de certame, o pequeno e prático 'radinho de pilhas', ou 'spika', como queiram alguns mais detalhistas e era ele, o pequeno aparelho que transmitia as incontidas emoções do narrador esportivo que contagiava a ansiedade do ouvinte que, no momento do jogo encontrava-se em seu transe mental, atento à cada movimento da bola e do jogador em campo, paralisado e estático que estava, à espera do tento que abriria o placar, para depois gritar, a todos os pulmões, um 'gooooooolllllllllllll' bem sustentado.
Nas periferias, as atividades esportivas não eram diferentes. A bola também rolava com um 'scretch' de atletas que, por alguns momentos se sentiam como se astros fossem, cada um deles incorporando o seu 'herói' esportivo e mostrando a 'ginga' que possuiam.
Eram muitos 'Garrinchas', 'Pelés', 'Ademires da Guia', Niltons Santos' e por aí vai. Goleiros? Só se lembravam de um: 'Gilmar'. Fosse nos tempos mais atuais, haveria uma gama maior com 'Tafarel', 'Rogério Ceni' e até o 'doido' Colombiano 'Higuita', que fez defesas impossíveis com os pés, denominada de 'defesa do escorpião'.
Na pequena e bucólica cidade de 'Piraraquara do Norte (ou do Oeste, já nem me lembro mais), os dias para as 'contendas' eram sempre aos domingos e pela manhã, já que pela tarde, é claro, haveria futebol de verdade nos grandes estádios e, na várzea, a coisa era muito diferente com o campo todo descoberto e sem um tufo de grama sequer.
De terra batida, nivelamento irregular, alguns 'montoros' de barro ao lado de algumas pequenas 'crateras' mas, de boa conformação. Traves quase sempre fora dos padrões oficiais, confeccionadas com os barrotes de alguma construção local e rede já bastante surrada, ofertada por algum grêmio recreativo a custo zero.
As acomodações para esta praça de esportes eram nulas. Os espectadores se amontoavam ao redor do campo, respeitando a linha divisionária riscada à cal virgem no chão que, também dimensionavam os contornos da área de jogo. Por vezes, uma linear cerca de madeira, numa espécie de corrimão, circundava todo o perímetro, garantindo a 'integridade' do campo e dos jogadores. E, por falar nos 'atletas', não dispunham eles de um vestiário pois, já chegavam devidamente 'uniformizados' para a peleja, desde as suas casas. Os mais atrasados podiam se 'paramentar' mais discretamente em algum canto mais escondido ou por detrás de uma árvore ou mesmo, 'biombados' por seus colegas de time.
Times formados, vamos às escalações:
'Pantera', no gol (quase todo goleiro varzeano tem esse apelido), 'Mascote', 'Cunhado' na zaga. 'Batista', 'Negão' e 'Careca' no ataque.
Laterais, 'Muralha' e 'Torpedo'. Meio de campo 'Jamanta', 'Pésão' e 'Butina', mais 'Agenor' e 'Catraca'.
Epa! Tem um a mais. Sai o 'Catraca' e fica no banco dos reservas junto com os demais. 'Paulão', 'Zoínho', 'Pelanca' e 'Já Morreu', que são aqueles que renderão aos que perderem o 'gás', inclusive o próprio 'Já Morreu' que de morto não tem nada.
Nosso time já formado, ostenta, orgulhosamente o seu padrão de cores vivas e leva o sugestivo nome de 'Sociedade Esportiva Vinte e Oito de Setembro de Piraraquara do Norte' (ou era do Oeste, sei lá).
A data, era em homenagem ao nascimento da genitora de seu fundador, um bicheiro muito influente na cidade, visto que em princípio, ele pensou batizar o time com o sugestivo nome de 'Primaveril Piraraquarense' mas, achou um tanto quanto aviadado e foi demovido desta idéia pelos 'conselheiros', técnico e preparador físico, além dos jogadores e torcedores. A mulherada até que gostou. Acharam o nome um 'mimo' para a cidade, além de muito carinhoso.
Times à postos no campo, a seleção adversária seria o 'famoso' Sociedade Esportiva de Santa Eulália dos Afonsinhos, campeã da última rodada e detentora absoluta do treféu 'Águia de Prata', comprado, com desconto, já que a base estava quebrada e foi recuperada com 'Durepox' e ' Araldite Rápido', na Casa de Esportes do Hamilton, que fica na praça da Matriz s/nº, ao lado da Padaria Flor de Trigo, com o telefone: 34.26.27 e sem filiais, sob administração de Hamilton Farias e Filhos.
O trio de arbitragem era composto por 'Marcão' da quitanda e 'Julinho' da oficina de seu João - consertos rápidos e garantidos - e, eram só eles pois o segundo bandeirinha, o 'Tunico' da agência de transportes 'A Raposa Veloz', que oferece viagens para a capital em confortáveis e modernos ônibus a preços módicos, não pôde assumir o seu posto por estar, naquele momento, acometido de forte caxumba e, para tanto, não poderia se expor ao vento e nem aos esforços físicos que a atividade exigia. Mas, estava presente e junto aos espectadores, devidamente paramentado com a tradicional tipóia queixal, chapéu de aba larga, acomododado em um caixote de frutas (sem frutas), gentilmente oferecido pelo 'Marcão'.
O mando de campo deu-se pelo 'cara ou corôa' e a nossa 'seleção' foi comtemplada com a saída de bola e isso já evidenciava um bom preságio de vitória.
Apita o árbitro e começa o jogo. A bola rola de pé para pé dos jogadores e a balbúrdia da 'arquibancada' já se faz presente numa muvuca que dispensa qualquer 'vuvuzela africana, tamanha é a gritaria dos torcedores, emprestando ânimo e levantando a garra dos jogadores.
Momentos iniciais de um jogo cheio de emoção e obstinação para o primeiro gol. Jogadores disputando palmo a palmo o domínio da bola, momentos de perigo e aflição quando um ou outro atacante se aproxima da linha de perigo das áreas de gol, sendo interceptado pela defesa adversária. Bola sobe, bola desce, jogadores se misturam à uma nuvem de poeira levantadas pelas muitas pisadas e escorregos em campo. O juiz tenta antever as ações mais faltosas e muitas vezes o apito silva apontando faltas e impedimentos quando, sem maiores avisos, o céu, antes um pouco nublado, fecha-se em carregadas nuvens ameaçadoras, para instantes depois desaguar toda sua precipitação pluvial, encharcando o modesto campo, tornando o solo em um barreiro cheio de póças de lama e mais escorregadio do que uma tigela de quiabos em dias de carurú.
Mesmo assim, o jogo segue o seu curso, agora com as chuvas com maior intensidade, obrigando os espectadores buscarem abrigos em árvores, tapumes ou papelões (ainda bem que não teve trovoada). O 'Tunico', aquele da caxumba, foi o primeiro a se mandar, atendendo aos apelos de sua senhora mãe.
Chovia, agora torrencialmente e, os esbarrões, caneladas, quedas e tropeços eram mais constantes. Os uniformes dos jogadores, antes de cores distintas e características para diferenciá-los, agora eram de uma só cor e textura, assim como os jogadores. Todos eram só lama e barro. Das chuteiras aos fios de seus cabelos.
Diante do impasse, o juiz, achou por bem suspender a partida e transferi-la para outro dia e local, já que a impraticabilidade do campo perduraria por muitos dias.
Prematuramente terminada a jornada esportiva, seguiram todos para o bar/empório do senhor Tancredo - sêcos e molhados e a saborosa 'Codorna de Arapuca à Caçadora, fica próximo à estação ferroviária - visto ser este o único estabelecimento da pequena localidade à dispor de um acolhedor alpendre no recuo da calçada, com algumas mesinhas e cadeiras, onde, e com a continuidade das intermitentes chuvas, servimo-nos de uma bora rodada de cachaça e cervejas, tira-gostos e muita lama na venda do pobre comerciante.
Essa tertúlia esportiva seguiu-se até o amainar das chuvas, para depois seguirmos para nossas casas, não sem antes limparmos toda a sujeirada que promovemos com o nosso 'enlamaceamento' no local.
Ainda deu para se ouvir o segundo tempo do futebol de verdade pelas ondas curtas do radinho de pilha.