Uma Viagem

Acordei com as batidas na porta de meu quarto no Hotel Barcelona, que fica em Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, bem na fronteira do Brasil com o Paraguai – das janelas da ala oeste dá para a gente ver as ruas de Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia gêmea de Ponta Porã. Eram batidas fracas mas incisivas. Olhei o relógio – passava alguns minutos das quatro da manhã. Pensei um ou dois palavrões – é ou não é um pé-no-saco alguém te acordar a esta hora da madrugada? –, levantei-me e fui abrir a porta.

Dei com uma mulher no portal, mal-iluminada pela luz fraca do longo corredor. Loira, um bocado bonita, alta, trajando um longo vestido verde de tecido sedoso e com uma leve transparecia, que colava em seu corpo, deixando antever todas as suas protuberâncias e reentrâncias. A roupa tinha duas aberturas na saia que iam até o meio das coxas grossas e sedosas. As fendas na saia permaneciam fechadas e só se abriam quando ela caminhava. Tinha também um decote profundo que deixava ver toda a alvura da pele de seu colo. No pescoço, uma delicada corrente de ouro suportava uma gota de esmeralda de um verde dardejante. Nas orelhas, dois brincos de ouro e esmeralda muito delicados e desenho elegante com as mesmas gotas da corrente. Ela usava ainda um anel, com uma esmeralda, e uma delicada pulseira de corrente, também com a mesma gota de esmeralda. Na simbologia cromática, o verde é a cor da água como o vermelho é a cor do fogo. Ela parecia fluida como água.

Seu corpo alvo exalava um leve odor de ópio – ópio perfume. Seus cabelos estavam cuidadosamente penteados, ainda que completamente soltos. Tinha cabelos castanhos bem claros, com tons de dourado no sol, olhos castanhos claros, cor de mel; alta para u’a mulher, corpo esguio, mas não magro, seios fartos, maduros, de mãe. Bunda bem feita, pernas bem torneadas, mãos e pés pequenos, pulsos delicados, sorriso simpático – desses que parecem tomar conta de toda a face – boa postura, elegante. Olhar gentil e terno... Entretanto, sua aparência, cuidada, delicada e elegante, não combinava com a expressão agitada de seu rosto. Aparentava estar muito inquieta, numa aflição extrema, quase que desesperada. Sua expressão era assustada e nervosa de verdade.

— Você pode me acompanhar? – pediu ela, com a voz quase sussurrada mas tensa, sem ao menos me cumprimentar ou desculpar-se por me despertar tão tarde da noite. Mas não achei tão ruim assim – eu acho que é sempre bom ver uma mulher bonita, não importa em que circunstâncias. E gostei do jeito de aventura que a situação prenunciava.

Só respondi “sim”. Não perguntei seus motivos. Rapidamente vesti um agasalho de jogging que uso para minhas caminhadas matutinas, uma camiseta branca com uma estampa do Pantanal – uma enorme arara de penas verdes –, calcei um tênis cinza, coloquei meu relógio, peguei a sacola com meu equipamento fotográfico – nem sei porque resolvi assim, repentinamente, a levar uma câmera – e a segui, não sem antes escovar os dentes e fazer um bochecho com um desses líquidos de higiene bucal. Ela ficou bem quietinha mas agitada, sentada sobre a cama esperando eu me aprontar para sair.

Descemos os sete andares pelo elevador sem dizer uma palavra sequer. Enquanto o diabo do cubículo de madeira barulhento pra cacete descia, ficamos naquela situação constrangedora que toma conta de todas as pessoas quando descem um elevador sem ter o que dizer. Sorri, mas ela não correspondeu ao meu ato de simpatia – ficou muito na dela, com o olhar perdido. Chegamos ao saguão de piso de granito e fracamente iluminado do hotel. Deixei minhas chaves e a segui até o estacionamento. O casal de recepcionistas ficaram olhando a ela e a mim com um ar apalermado, pleno de perguntas sem respostas.

Ela estava com um jipe amarelo-ovo, com rodas maiores e mais largas que o normal, equipadas com robustos pneus lameiros. O veículo não tinha capota, mas apenas um toldo de lona plástica verde para proteger os passageiros do Sol. A mulher ligou o carro, acendeu as luzes – muitas luzes: o jipe tinha os faróis normais e mais seis de milha, dois no pára-choques dianteiro e quatro fixados num santantônio que subia das laterais, no meio do jipe; parecia uma árvore de Natal – e arrancou cantando pneus. Achei a atitude meio besta, mas como a moça parecia estar nervosa, não fiz nenhum comentário.

Enquanto dirigia em alta velocidade pelas ruas esburacadas de Ponta Porã, ela ligou o toca-fitas do carro, acionando-o através de um aparelho de controle remoto fixado no volante – não dá para entender alguém usando controle remoto para acionar um rádio que está ao alcance das mãos; mas a mulher, como todo mundo, deve ter lá essa e outras esquisitices, disse para mim mesmo.

Logo foram se escasseando as casas e, em pouco tempo, a rua transformou-se numa estrada que não consegui identificar. Só percebi que estávamos rodando rumo ao sul. A leste, o céu começa a tomar tons vermelho-amarelados, que tingiam as nuvens muito brancas. Todas aquelas cores e os tons de luz davam ao ambiente e à paisagem um clima fantástico. Era o amanhecer surgindo e fazendo a gente pensar em poesia. O jipe corria rapidamente pelo asfalto que tinha um tom cinza azulado, cortado ao meio por linhas brancas esmaecidas e sujas. O rádio começou a tocar música eletrônica para dançar, fazendo com que ela o desligasse resmungando. Ruído agora, só o zumbido dos pneus lameiros no pavimento e um ou outro som de metal ocasionado pelos solavancos provocados pelos buracos da estrada.

O caminho era muito bonito e colorido. A estrada era orlada por árvores muito floridas; havia touros, bois e vacas, cavalos e éguas nos pastos que margeavam a estrada. Volta e meia avistávamos algum animal silvestre. Vi pelo menos duas cobras, um cervo, um cão do mato, além de um bando de macacos e um tatu morto no acostamento. Havia também muitos pássaros, a maioria cantando – acho que todos os pássaros cantam ao nascer do Sol. As flores, de milhares de cores diferentes, exalavam um perfume agreste, acentuado pelo odor de ópio que fluía do corpo da mulher. O vento agitava o tecido do seu vestido, me deixando ver algumas partes bem íntimas de seu corpo. Uma ou outra lufada de vento levantavam sua saia e eu podia ver até a junção de suas coxas, coberta com uma calcinha quase cor da pele. Também podia ver, de vez em quando, os seios nus sob o tecido agitado pelo vento. Como não tinha o que fazer, fiquei olhando tudo isso. Ora a paisagem, ora o corpo da mulher. Ela me fazia sentir um tanto libidinoso .

Enquanto rodávamos, a luz do dia ia tomando conta de tudo. E eu pude ver as lágrimas escorrendo pelo rosto da mulher. Ela chorava silenciosamente enquanto dirigia, sempre em alta velocidade. Virei-me para trás e peguei uma caixa de lenços de papel que havia visto quando subi e ajudei-a a enxugar as lágrimas. Não disse nada. Nem ela. Mas o meu gesto fez com que o choro parasse. E, de maneira inexplicável, seu rosto foi perdendo a expressão carregada que tinha quando me pegou no hotel. Seu ar foi-se tornando mais sereno.

Depois de cerca de vinte minutos de viagem, encontramos um posto de gasolina. Era um estabelecimento muito simples. Uma estrutura de metal suportava um telhado de metal que brilhava ao sol, uma casinhola de madeira precisada de uma pintura, que servia de caixa, escritório e sabe-se mais lá o quê, três bombas de combustível e uma moderníssima máquina de vender refrigerantes, que acentuava ainda mais o aspecto descuidado do posto. Mais ao fundo, uma casa de alvenaria, mais nova e mais limpa que o posto de gasolina. Uma mulher que parecia ter mais de cinqüenta anos, alta, espigada, com um jeitão masculino, acentuado pelos cabelos cortados de um jeito que parecia homem, vestida com um macacão de mecânico muito usado, mas bem limpo e passadinho, veio nos atender.

Passava das cinco da manhã. A mulher, muito cortês para alguém de aspecto tão rude, colocou gasolina no jipe, lavou o pára-brisa, verificou o óleo e colocou água no radiador e no recipiente do mecanismo de lavar o pára-brisa. E perguntou se precisávamos de mais alguma coisa. Minha companheira de viagem disse não, deu umas fungadinhas, como quem tenta identificar odores no ar, e perguntou à atendente do posto se havia algo para comer. Ela disse que estava preparando seu próprio café da manhã e convidou-nos compartilhá-lo com ela.

Minha companheira olhou para mim pedindo cumplicidade, que recebeu imediatamente – eu estava com uma fome danada, e acompanhamos a frentista até a cozinha da casa. Ela ia à minha frente e de vez em quando reduzia a velocidade, meio que forçando para que eu encostasse em seu corpo. Na mesa, colocada numa varanda, uma fruteira com tangerinas, bananas, laranjas, ameixas, uma leiteira muito cheia; no fogão, um bule em banho-maria com um café muito cheiroso, e uma frigideira onde a mulher fritava bolinhos que não consegui identificar. Senti também cheiro de chipa, uma espécie de pão-de-queijo típico do Rio Grande do Sul e de Mato Grosso e que por aqui, região de fronteira, todo mundo gosta. Tudo exalava odores muito apetecedores.

Minha companheira disse que não queria tomar café da manhã ali e perguntou à mulher do posto se poderia fazer uma matula para gente levar. A mulher disse que sim e tomou uma sacola de plástico, dessas de supermercado, e colocou algumas frutas, bolinhos, chipas. Disse que tinha algumas garrafas térmicas que poderia vender para a gente. Eu disse para ela pegar três e colocar leite, café e suco de laranja nelas. Pagamos tudo e saímos.

Um tanto surpreso, percebi minha companheira voltar pelo mesmo caminho por onde viemos. Mas continuei calado. Esperei que ela dissesse algo, mas se ela estava muda, não seria eu a quebrar o silêncio. Mas seu rosto havia voltado à serenidade. Ela perdeu o ar angustiado, quase desesperado, do início da manhã. Havia agora era melancolia no olhar.

Mais da metade do círculo solar aparecia acima do horizonte quando paramos, depois de rodar alguns quilômetros, ainda em alta velocidade. No local havia uma bica fixada numa mureta de pedra cinzenta, da qual corria uma água muito limpa, cristalina e fresca, duas grandes mesas de madeira com bancos, fixos no chão coberto com grama muito verde. Um grupo de mangueiras proporcionava sombras que atravessavam toda a largura da pista de asfalto. O local era usado para descanso e refresco dos viajantes. Deixamos a matula sobre a mesa e a mulher começou a falar.

— É lindo aqui, não é? Eu adoro este lugar... sempre que posso venho até aqui para pensar.

Não esperou minha resposta e começou a andar de costas. A poucos metros de distância havia uma cruz. Alguém deveria ter morrido naquele local. Minha companheira foi ao jipe, tirou um pacote de velas do porta-luvas e dirigiu-se ao túmulo. Acendeu todas as velas – umas dez, eu acho – com um isqueiro, fixou-as numa pedra escura que havia ao lado da cruz, ajoelhou-se, descobrindo as pernas brancas e rezou por alguns minutos. Enquanto ela rezava – e ela rezou um bocado de tempo – fiquei olhando suas coxas, fascinado. Ela levantou-se e veio até mim, me abraçou e me deu um beijo bem leve nos lábios. Surpreso, tomei coragem para perguntar alguma coisa.

— Quem é você? O que houve?

— Nada. Acordei no meio da madrugada com uma angústia danada. Eu estava desesperada. Aí decidi ver você. Eu precisava falar com você. Não sei porque estava tão angustiada. Tem horas em que penso que sofro muito. Mas o horror de tudo isso me mata antes, pois viva ainda eu já me vejo morta, e essa antecipação compensa em agonia e desfalecimento a ignorância da morte que eu terei já morta. Nunca ninguém me disse que deixar de sofrer doía tanto – fez uma pausa um tanto longa e complementou: me abrace. Mas não disse quem era. Eu a abracei forte. Ficamos assim juntos alguns minutos. Eu a beijei levemente, primeiro no lóbulo da orelha, depois nos lábios úmidos. Ela me olhou surpresa – acho que ela não esperava os beijos. Sorriu. Saímos do abraço e nos sentamos à mesa e comemos as frutas, os bolinhos, acompanhados do suco de laranja e café-com-leite.

E nos deixamos ficar ali, falando tolices um para o outro. De repente, ela levantou-se de um salto e começou a despir-se muito lentamente. Havia pouca coisa para tirar – apenas o vestido verde e uma calcinha de modelo antiquado, creio que de seda. Ficou nua, trajando apenas a corrente, a pulseira e os brincos de ouro e esmeralda.

— Quero que você tire umas fotos minhas aqui na estrada... assim, sem roupa – pediu ela.

Fiquei a olhar sua nudez, surpreso – comecei pelo pescoço, parei um bocadinho no colo, depois nos seios, desci até a barriga, mais uma paradinha no umbigo, no tufo de cabelos castanhos escuros do púbis, desci para as coxas e voltei-me para seu rosto – meu olhar acho que durou um pouco de tempo demais, pois ela deu mostras de ficar encabulada. Mas logo fiz sua vontade.

Tirei a câmera da sacola e comecei a bater as fotos. Gastei três filmes, mais de cem fotogramas, fotografando-a em todas as poses possíveis, algumas bem insólitas – correndo, subindo nas árvores, chupando manga, ajoelhada à beira do túmulo, pulando uma cerca, montada em um cavalo que encontramos num pasto perto das mangueiras – ali à beira da estrada. Ficamos dizendo piadinhas bobas um para o outro durante a seção de fotografias e rimos muito. Ela se portava da maneira mais natural possível na sua nudez. Foi-se toda a sua aparente timidez. E também o seu desespero. Suas feições estavam serenas e sorridentes, ainda que melancólicas.

Gastamos bem mais de uma hora, quase duas, nessa lida. Batidos os três filmes, eu me cansei de fotografar. Ela fez um ar de tristeza, que durou um tempo muito fugaz, para logo abrir um sorriso um tanto matreiro. Veio até o banco em que eu estava, sentou-se bem aninhada no meu colo e me deu outro beijo.

Ficamos ali um bocado de tempo, conversando fiado e nos acariciando. Toquei sua barriga, os pelos púbicos, beijei os bicos dos seus seios. Eu me excitei, e ela também. Mas não fizemos sexo. Ficamos só naquela bolinação. Quando chegou perto da hora do almoço, ela vestiu-se novamente e perguntou se eu não queria ir embora. Eu disse que sim, e subimos no jipe, ela ligou o toca-fitas e colocou um cd com blues: era John Lee Hooker cantando bem lento, plangente e pungente, e tomamos o rumo de volta.

Luca Maribondo
Enviado por Luca Maribondo em 05/06/2010
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