SERES HIPOTÉTICOS
Estranho,muito estranho que é noite dentro de mim;noite negra e sem estrelas,nem mesmo nuvens de cor avermelhadas que ameaçam um dilúvio.
A barca atravessa a baía silenciosamente numa manhã lá fora.Numa manhã cinza que não se via a luz do sol.As gaivotas pertinazes enfrentavam o mar,denso de suaves ondas frementes e continuas,atrás de um peixe fácil qualquer ao seu bico.De distante,muito distante quase como o estranho dentro de mim:a ponte Rio-Nitéroi,e os carros quase invisíveis como vaga-lumes inultilmente acesos no baço do embaraço da manhã.
Caminho dentro de mim – sabe o que é isto? –estou dentro do meu particular.Está quase impossível permitir o que vai saindo,e vai saindo mesmo que parte já se esgotou.
A barca apita no imprevisível e imaginário silêncio da manhã ao meio da baía.Será que a barca apitou ou será que a barca gemeu?Pode ser que prefiras que seja um cisne em um lago.Um cisne.Lindo cisne branco de contorno,lançando seu lamento ao céu embaraçado de uma manhã ainda mais embaraçada.
?Onde pretendes chegar neste caos...
Chegaremos a Cidade do Sorriso.Estamos presos no que não pode ser revelado senão por enigmas.Nem enigmas:flashes de relembranças e invenções d’hora e de anterior.
Ontem sempre ontem abria-se em sua corola as pétalas desabrochando beleza.Hoje,hoje que é o agora tão demorado e monótono fecha-se em seu botão novamente:não precisas ser visto.
A janela da barca oferece um desolador cenário de um lago que pede para morrer.As “coisas”vivas que suspiram ou não suspiram pedem a morte ou trazem ela a vida toda como sombra.
Gorete.É esta Gorete que irei de dentro da escuridão de mim para as asas do cisne que corta as águas da baía.Gorete que olha a janela da barca.Olha com seus olhos cansados de tanto ver.
E há ainda mais o que se ver? A vida já lhe lançara tantas;muitas coisas que,ao longo do percurso pejorativo da vida,ela fora obrigada a ver.Com fastio,nojo e cansaço.Deveras! Gorete não tem uma razão própria para se aceitar livre para nada.Gorete quer algo.Quer a prisão do algo.
Seria por isto,que no mais elementar de mim,diria que Gorete estar as asas do cisne?
Não posso revelar nada ainda.Não sei de mim mesmo quem dirá de Gorete.Gorete é um ser que debate frágil e insistente a lâmpada da sala.Apago a lâmpada para ver se ela vai embora.Caiu nas minhas mãos...
À mim foi entregue a vida de Gorete.Não só a vida exterior – talvez nem está –a vida por dentro da vida.O que alimentou Gorete pela razão de não querer a liberdade do nada e se entregar à escravidão do algo.
Já disse à Gorete,antes de compor,que de nada vivi como posso dá-la algo? Ela sabe que eu escondo,eu escondo para outros que possam vir a ser mais interessantes.
Gorete quer o pedaço que foi meu – continua sendo – e de tão secreto no mais dentro de dentro de mim eu vivi.Ela quer,como todos querem...
Gorete sabe...E por isso ela atravessa a baía tão cedo rumo ao desconhecido que eu tenho(se ela tivesse como descobrir que este algo está tão ´próximo...).
O algo que vou lhe dar tão longe é na verdade bem perto.Tão próximo que mesmo quando vejo de perto é o semblante distante que me vem à luz de fora de mim.
Toco as vezes – toco – não com a mão más com o pensamento.O pensamento sente o perfume,o etéreo e delicado.Tudo é tão cintilante dentro de mim quando toco com pensamento este algo.E desabrocho,sereno como jasmim,em alguém que é de fato um alguém verídico.Eu sou – sopro com os pulmões a toda e o coração escangalha tudo na emoção desconsertada.
Sinto até o calor da aproximação.É como ouvir,no doce do instante,a música favorita.
A quem me tenta achar no meio deste algo que já vou fazendo acontecer,saiba que ele agora é de Gorete.
Ela caiu em minhas mãos quando,inutilmente,tentei expulsa-la apagando a luz.
A consciência é o estranho senhor da nossa existência.É preciso viver algo sempre.
Como eu mesmo revelar a mim mesmo que o que será de Gorete será novela,um conto ou apenas um fragmento?
Por enquanto Gorete atravessa a baía,esperançosa,nas asas do cisne ao meio do meio do lago abetumado cheirando a morte.
Gorete aportou na Cidade do Sorriso.Ela sentiu como era frágil a um simples vento litorâneo.Sua calça de brim marrom voava nas coxas:era como as asas de uma borboleta.Apertou-se no casaco.Sentira entrando nela o cheiro de naftalina que logo se misturou com o cheiro de couro novo da bolsa ao seu ombro.Agarrou-se à ela imediatamente como se agarrara a minha idéia de algo.
Pronto: estava Gorete no meio de uma cidade numa manhã embaraçosa.O vento era embaraçoso,os outros transeuntes sabiam bem disto.Sabiam tão bem disto que pouco se arriscavam a pensar.Cortavam seus destinos como aza delta que nunca cai em mar de ressaca.
O que esperava?Para que direção olharia sem o pejo de ser reconhecida como uma desorientada?
Gorete sorriu,com a cabeleira crespa e castanha esvoaçando,para a estátua do índio Araribóia,que sorria para a cidade que era só “sorriso”.
Todo mundo reconhecia que Gorete era uma mulher de meia-idade.Não pensei em donzelas.Todo mundo a reconhecia não a notando propriamente.Era tão estranha naquele lugar como o grito de repente do ambulante perto do sinal:
-Água de coco!
Gorete acordou.Descobriu que se descobria procurando.Era uma aventura que a tomara.Porque se cansara finalmente do nada que a alimentava dia a dia.Por dentro ela já conhecia o seu destino; por fora ignorava,cruzada entre o medo e o pejo.
Isto poderia ter sido outrora,nos impossíveis do tempo.Todavia Gorete só caíra à minha sorte.E o “algo” começou-lhe tardio,no entanto ela abriu os braços entregando-se...Não restou alternativa a Gorete...Gorete procurou-me no desespero final.
Gorete está pronta,embora arrefecida esteja pela vergonha:é uma mulher de quarenta e cinco anos.Pela seriedade em que leva a vida parece ter mais.Meu Deus e o jeito como se veste.É uma quase anciã.Professora primária desde os vinte anos fora uma extraordinária luta contra o próprio limite da paciência.Da paciência necessitava o seu sustento.O seu sustento só.Como sendo só o nada era a sua vida basicamente,e o fetiche era um sonho tranqüilo e muito bem agavetado no inconsciente.
Gorete quer algo.Que não me reclame depois.O algo que tenho para dá-la e um algo tolo e infantil como o dentro de mim.Gorete sabe como eu sou por dentro:uma Cinderela entre as xícaras,conversando,e pedindo ao chá dos seus recipientes o reflexo para chorar como o patinho feio a própria fealdade.
Ah é bem pouquinho...Tão pouquinho.Gorete já estar ali pronta,desafiando o mundo.Em férias escolares ousou atravessar a barreira do seu quintal que nem jardim tinha...E olha só que Gorete atravessou a baía.É como atravessar um outro continente,um outro mundo.Mas vai ser gostoso Gorete,mesmo sendo a fatia de uma fatia de uma maçã este alço que lhe dou.
(Se ela soubesse que furtei a posição,e sendo tão próximo...).É bom que fique assim,longe...tão longe,onde num alvoroço cinza e embaraçado pelo ao menos a cidade possa lembrar:sorriso.
Gorete olha as vitrines das lojas que sempre refletem o nosso rosto dentro da própria vitrine.Além do seu rosto dentro da vitrine cabe quase toda cidade em que ela está.E o movimento da cidade é como circular dentro do vidro espelhado da vitrine.
Quem pode agüentar com o próprio rosto muito tempo?é quase insuportável admitir-se à frente de um reflexo.
Possam ser que nem todos sejam assim,todavia Gorete no momento é.Ela não quer o meu algo.Tem que experimentar o amargo de mim.
E é só um pedacinho...Quase nada,mas dou para que em mim não se aprofunde está angústia,está angustia à-toa.
Gorete andou distraída pelos reflexos das vitrines.Procurou não olhar a si deformada no vidro fosco,mas olhar a cidade que a tomou.As coisas em movimento dentro e fora do espelho da vitrine,que a assustava e a fascinava.Ambos não dariam um mesmo sentido...
Um mundo amplo embora acotovelado por gente azafamada.
Sabia,agora,o que era solidão.
Tentando refugiar-se barafustou-se à um beco úmido que ardia numa felicidade de farfalhar de árvores de um vento que só podia bater em cima.O vento se gradeava por cima ali que pelos lados se apertavam o que nem havia espaço.
Gorete ganhou este beco.Digo que Gorete ganhou,porque deste beco é que te darei o algo.
Se a gaivota se perdeu entre as copas destas árvores tão escondidas...
Gorete andou pelo beco sem pensar em nada.Como se o vento mais fraco ali a guiasse para um lugar que realmente se sentiria bem.
Lembrou-se de muita coisa no que voltara o pensamento;o pensamento voltara no que diminuíra o andar,no que ganhara a confiança da onde estava.Os transeuntes não a notavam,apressados com um sorriso.Havia paz ali.Ela sentia e quase podia tocar.Estava segura.A felicidade é apenas um gomo da tangerina,não a tangerina toda.
O que Gorete lembrara?Gorete sabia bem como experimentar o seu gomo de felicidade.
Gorete sorriu por nada para um mundo que nada havia de sensato.
Gorete estava então de frente para uma vitrine que revelava sua face dentro da crueza em carne viva da sua existência.Se ela comesse a carne crua assim como o cheiro cru...
A paz era uma sensação branca e quase sem sabor.Porque o que era humano queria o sangue,queria o vermelho...até mesmo o quase cru.
Não era bem por ai...Escapa-se,escapa-se...
Estas fora uma das coisas que ela lembrara.De que tinha que se alimentar de carne.Bife mal passado,sangrando e uma taça de vinho numa mesa comprida,só mesmo tão comprida porque ela está só.
E olhando as carnes,dependuradas como roupas no cabide,ela se reconheceu desconhecida.É que se vendessem acém para ela no lugar de alcatra,talvez nem quando pronta notaria a diferença.Poderia lamentar com um suave desdém no canto dos lábios.E colocaria a culpa na frigideira,ou na própria displicência,no pensamento sempre ocupado com a vida.
De fato quando deu de cara com as carnes dependuradas na vitrine do açougue acudiu uma misericórdia : a more existe,embora é tão fugaz pensar nela.
O homem estava de costas para ela cortando com destra habilidade,nas suas mãos ossudas e pardas,um enorme naco de carne.Desfazia-se das pelancas imitando o gesto de quem afasta teias de aranhas.Gorete adivinha o sorriso de prazer dele pelas orelhas,que apesar de pequenas são de abono,mexiam-se alternadamente no silêncio do seu ritual.Era um mestre.Tão jovem e um mestre.Gorete jamais saberia por onde começar...
Ela não o chamou porém parecera que ele a sentira como se suas orelhas fossem antenas.Voltou-se para ela num acudir,e Gorete sentiu-se,mesmo o olhando nos olhos também,invadida por ele.Seus olhos eram tão grandes de um verde-cinza como o sinal do próprio fascínio do espanto.E não se sabia dizer se era Gorete ou se era ele que se espantava.Ambos,acho,se espantavam.
Havia o fascínio em Gorete de saber que ele existia,embora isto pudesse ser tão elementar.Alguém tão lindo pelos olhos que se deixa entrar.
Ele sente – na sua defesa instintiva e própria – defende-se.Contudo Gorete já se deixara penetrar pelos olhos dele.Ele talvez não sabia do seu poder,e assustado só fazia se defender.
Ele procurou um sorriso embora saíra tão mordido e constrangido.Gorete perdera o pensamento,e alguma palavra estava morta entre os dentes,no mergulhar feliz dentro do deslumbrante daqueles olhos.
O que ele diria? O que ele diria? Eram seus lábios tentando se mexer,pelos seus olhos que sentiam a invasão e procurava se defender,apenas se defender.
Este algo deveria ter vindo com bula e avisando as reações adversas.Nem tudo é o mesmo dentro do mesmo.
-A senhora... – tentou ele embora sem nenhum vacilo.
Gorete pensou em abrir a boca todavia estava como se vindo à tona e afogando,vindo à tona e afogando...
Ele enxugou as mãos úmidas na camisa branca já suja de manchas de sangue,e deste modo buscava mesmo se defendendo.
-Eu... – tentou ela claudicante até a espinha do âmago.
Ele arriscou fugir os olhos,por um momento,pelo balcão de inox más logo voltou a posição de defesa.
O que Gorete pediria? Poderia mesmo dar as costas e não falar nada.Aquilo ali não lhe pertencia,e voltaria para o seu quintal cerrado entre o imenso muro de tijolos da onde,acredita agora,nunca deveria ter saído.
O meu algo é pouco más é forte.É como o efeito gigante de uma pequena pílula de diazepam.Nem eu mesmo tinha a consciência de quão era forte este algo que é sobra de quase nada.
Bem mais tarde...do outro lado da baía,da onde nem Gorete precisaria ter saído para viver este algo,ela olharia a noite densa e negra como a quem tem dentro de mim,pela janela da cozinha,e perguntaria as panelas já sujas se ela errara ou acertara.
Coube que ela nem precisara de palavras para que o jovem açougueiro acreditasse o que ela queria.Ela se afogava no âmago dele – onde estava sendo expulsa – e achava muita fé no tanto faz.No estado clinico do choque em que eu a levara,ela andara levitando no chão de cacos de vidro do tanto faz.
Gorete correra o risco...Correra o risco que eu corri na infelicidade de mim mesmo que eu ainda mergulho.
Ele: Alefe,não entendera compreendendo-se constrangido no entender.Era uma defesa também.E ocupara-se do pedaço enorme de carne novamente,num assovio frívolo,na mestria que se procurava a cada gesto destro,o disfarçar de um tudo qualquer que lhe aquebrantara.
Más Alefe tinha um sorriso,um sorriso que se perdia e se encontrava nas orelhas.
Alefe chegara tarde em casa porque mesmo se precipitara.O ocupar no olhar vigilante ao relógio do pulso modorrara o seu adiantar exasperado.
Era assim: Bastava andar o beco até o final.E ele andava assim,leve e sujo – as vezes – mesmo se olhava e ria como que rindo de outra pessoa.Tinha,quase contornadamente,o andar de quem estar a espreita para dar uma rasteira em alguém.
Era um rapaz para quem o visse e o notasse porém era um homem para si mesmo na sua convicção calma de quem chega ao sacro santo do lar.Ele sabia o que encontraria tanto como sabia que no dia seguinte recomeçaria tudo de novo.Dava graças a Deus chutando pedrinhas invisíveis.Ou seria a rasteira que daria em alguém?
A noite era sentida.Sentia a noite fria,escura,nas luzes pálidas dos postes que o acompanhavam.
Alefe é expressivamente a mais doce das minhas amargas criações.Daquilo que já existe e eu invento ao meu molde que quase não foge: (realidade adivinhada),fotografia de um gomo de tangerina.
Sinto-me feliz e compartilhei com Gorete que não pode suportar tanta felicidade.
E Alefe está “solto” dentro de sua existência fascinante.
Tão novo,tão novo e tem uma esposa ainda mais nova que ele.São quase duas crianças tentando levar à sério a brincadeira de casinha.
Moram aos fundos de uma casa como que se abrigando dentro do abrigo.
Alefe entra pela porta de vidro da sala que estava aberta.Lucélia no vestidinho preto,branca como porcelana,costurava a gola de uma camisa dele numa atenção infantil de quem quer ser percebida por isto.Ela esta sentada numa poltroninha solta no meio da sala,que por ser pequena,assim mesmo sobrava espaço.
Alefe inclinou-se sobre ela,na poltrona,procurando um beijo,e ela tão meiga – no que já era mais propriamente meiga – sentira cócegas na ansiedade disto.Lucélia gostaria de dizer que ele estava sujo e por isso não queria assim... – ao meio de uma risadinha – sentiu-se animada por isso mesmo e conseguinte ao próprio entregou-se meiga aos carinhos para ele com ele sujo assim mesmo.
Depois que ele fora ao banheiro,carregando uma toalha no ombro,ela ficou de volta a sua atividade na crença exata que ele pudesse flagrá-la distraída a qualquer momento.E ria por nada com o pensamento deslizando na aventura de ser quem era:a mulher dele.A mulher dele.Era uma dádiva,não era para qualquer uma.Se ocorresse de o pensamento tentar pelo lado:”afinal quem era ele?” – Ela olharia para o espelho,grande e quadrado,do guarda-roupa e diria como se não se vendo más vendo ele:
-Meu marido é bonito,é muito bonito.E ele é meu marido,meu só meu,e muito meu...
Lucélia terminara de coser a camisa,olhava para a gola que fora ajeitada,esperando sua própria reação diante de uma satisfação imaginária.E eis que seu olhar escapou para o pequeno corredor que dava para o banheiro.Evitou,más voltava,logo se cansando de lutar.Ela já esperava com ansiedade que Alefe saísse do banheiro enrolado da cintura para baixo numa toalha,e ela acudiria em achar a cueca na bagunça que ele fazia na gaveta antes.
Alefe sempre ficava todo nu na frente dela,jogando a toalha molhada no chão.Lucélia daria um risinho por dentro,feliz mesmo com tanto que tinha.
No entanto o que primeiro a tomara e ainda a tomava como a cada instante nove e superado era os olhos dele que era o próprio espanto do fascínio.Lucélia julgou-se criança quando se dirigiu a ele no açougue.Ela não queria comprar carne,queria seus olhos,ficar mergulhados nele que era ainda melhor:no mar verde-cinza imenso.
Não sabia que por ser inocente dentro da própria feminilidade de porcelana o ganharia por definitivo.
Alefe era assim...Achou e levou.E a levou como quem compra dos pais dela.
Lucélia foi,foi...e se entregou a ele nos lábios,depois na cama:os dois corpos nus numa quase luxuria e finalmente deu-lhe seus dias.Vivendo para ele e não – nem um pouco – para si mesma.
Nem se queria para si mesma.Não saberia o que se fazer consigo mesma.Ela era Alefe.E só era ela mesma quando sentia o sexo dele dentro dela.
Depois que jantavam num silêncio de admiração de um ao outro,frente à frente na mesinha da cozinha tão organizada,pensavam no que dizer.Já que namorar era o beber do silêncio de cada um.Ela se derramando nos olhos dele e ele no decote do vestido dela onde os seios oscilavam mártires.
-Seu cabelo está bonito... – arriscava ele.
Lucélia então olhava para os cabelos caindo sobre os ombros ainda úmidos do creme.
-Como foi seu dia hoje no açougue? Era ela sem mais nada do que havia antes.
-Normal – dizia ele passando a língua pelos lábios porque mesmo sabia que ela se excitava – as mesmas coisas de sempre.
Ela evitava,evitava mais.Tinha ciúmes.Tinha mais consciência da beldade dele do que ele mesmo.Ele se defendia quando era flagrado no que ele era:belo!
A louça ficava para amanhã.Os dois tinham a noite,aquele pedaço,o maior de todos.
Quando já deitados – ela ainda de vestido,e ele de cueca – ficavam bem próximos sentindo a emanação do calor um do outro,assim ela com sua mão acetinada acariciava o rosto dele para que ele falasse algo ou apenas suspirasse,então ela beberia o hálito dele e estava pronta para que ele a fizesse ser ela então.
Ela tocava naquilo em que o meu pensamento toca.Ela sentia o etéreo e o delicado de tudo...E chorava por dentro ao gozo dele porque tinha vontade que não acabasse.
Tinha toda a tangerina e sabia bem dividir os gomos para a felicidade que parecia durar...
Quando amanhecia era o pequeno basculante do quarto anilando luz com a cortinazinha à brisa.O primeiro sinal do despertar;depois era o cheiro dormido dele que fazia ela saber.Então tinham que estar de pé para que tudo funcionasse novamente.
De certo modo não funcionava no mesmo rimo que o dia anterior, e pouco se notava, e só se notaria bem mais tarde com o evoluir geral de meses sobre meses.
Assim era o mesmo funcionando novamente.
Naquele dia parecia haver sol.Prometia na fumaça de nuvens.
O dia assim tornou-se tão diferente do anterior que quando Alefe fora para o trabalho,após beija-la,Lucélia deixara as cascas de pão descansando sobre a toalha de mesa como se aquele dia “elas” merecessem.
E o resto da tarde em certa augusta calma,logo após ele vim para o almoço e voltar,ela se abstraía no habitual com o pensamento ligado no que ele fazia da onde estava.Sem poder imaginar de verdade.
Assim era um sorriso bobo ou uma vigilância ao não se distrair.
Um vento soprou forte em redor do tempo parado e no céu nem chuva nem sol.O halo de um raio de sol tentava entrar – inutilmente – pela janela,todavia era tão fraco como o próprio cansaço em si.
A mesa era vasta como o que ela chamava de copa;e sobre a toalha com estampas de frutas ainda o que sobrara do café da manhã.E tudo tão intocável como o dia que não se parecia com nada.Será que sangrava em silêncio? Ela nunca saberá nada mais além do silêncio comendo o silêncio.
Estou bem arrependido de ter dado este algo para Gorete.Vejo que ela não pode ser a mesma.Mas como disse Nietzsche – o filosofo alemão – o remorso é como uma mordida de um cão numa pedra.O arrependido sendo quase um ser repleto de remorso também é a feroz mordida de um cão numa pedra.
Gorete se esquecera , no roube cor de rosa tão fora de moda como sua posição tensa à cabeceira da mesa.O de novo é que devorava as casquinhas de pão da mesa com sovino e mesquinho olhar de quem quer se provocar.
Se pudesse...O quê? Resgataria o dia de ontem como faz salvando os farelos de pão sobre a mesa.E o dia de ontem por acaso não era o mesmo de hoje.Ela não quer se lembrar que ganhara,que ganhara um amor.Fora amor ou coisa parecida que dá no mesmo?
Gorete não se reconhece mais no reflexo de um chá pálido dentro da xícara.Se tem um sorriso não sabe para o que e em que vai funcionar.
Os dias poderão ser diferentes.Ela estar diferente,ela provara de algo,mesmo sem saber o que fazer agora que passou.E se passou o que devia vir depois?
Nem tinha coragem, apesar do vício, de olhar para a janela com apagada esperança.
Ela era uma pessoa sem coragem ao telefone com o outro alguém do outro lado da linha repetindo angustiado:alô,alô,alô...
Como explicar que o algo que tenho sempre é o bocadinho que furto de alguém?
E agora fica ela assim...Como o ponteiro menor do relógio...Esperando com a quase certeza dependente.
Nem meu era e eu a dei.
Alegre, quase assim uma confiante embora sem ter no que agarrasse.
Eu sei que ela virá novamente se debater aflita sobre a lâmpada acesa da sala.Só que desta vez vou não apenas apagar a lâmpada como dar as costas para a sala.
Gorete ficará de carapaça no chão esperando um milagre...
Um milagre!
Hhhhhhh
AUTOR: RODNEY DOS SANTOS ARAGÃO;
12 DE AGOSTO DE 2004