A vida da PEDRA
A vida da PEDRA
Havia uma pedra gigantesca que do alto da montanha observava o mundo ao seu redor. A pedra residia incrustada na montanha há sete mil e oitocentos metros de altura. De cor diferente da montanha, exibia um tom puxado para o marrom com veios brancos e com várias pontas que variavam de tamanho e formato, lembrando um imenso pacote mal embrulhado e amarrado com barbante. Estava ali talvez, desde o início dos tempos, sem idade ou mesmo período geológico. Como saber? Naquela imensidão, no silêncio, e tendo somente como testemunha o céu, as nuvens e o frio intenso, o porquê daquela magnífica rocha que se destacava na montanha de cor negra.
Séculos e séculos foram observados atentamente pela majestosa pedra. Viu o azul mais intenso do céu e a noite mais estrelada; sentiu o frio mais cortante que existe e se aqueceu com os primeiros raios de sol. Observou longamente o contorno das montanhas, uma após outra durante um tempo infindável, as viu mudarem de forma, desaparecerem e surgirem mais adiante, às vezes cobertas de neve e outras mostrando seus dorsos terrenos, exibindo o renovar da natureza intocável.
Quantas belezas, mudanças e sabedorias a pedra pode assistir? Quanto tempo para presenciar tamanha força e graça? Estas respostas não estão à disposição de ninguém, somente a pedra pode responder.
Era verão e a neve derretia, formando pequenos riscos sobre a pedra e tornando suas protuberâncias cobertas de gelo transparentes, formadoras de pequenos arcos Iris que enfeitavam magnificamente o lugar.
Todo o verão isto acontecia e ninguém podia imaginar que após esta infinidade de tempo algo poderia mudar naquele cenário. A água escorrendo século após século, marcando a pedra de forma aleatória, construía um sulco profundo em sua base junto à montanha. Não precisou de mais três séculos para que numa avalanche a pedra se soltasse e rolasse dois mil e trezentos metros montanha abaixo, só parando em uma fenda de gelo que amortecera sua queda.
Nesta vertiginosa queda seu tamanho e formato modificaram-se bastante, formaram-se outras protuberâncias, algumas reentrâncias e caprichosamente um furo em forma de arco alongado que atravessava sua superfície superior. Seu formato não lembrava mais um quadrado, mais sim algo mais parecido com um ovo, Longo no seu diâmetro maior e achatado no diâmetro menor. E ali ficou parada, inerte, a espera do que pudesse vir a acontecer.
Os ventos que ali castigavam o local eram intensos, ora velozes, ora lentos e frios ou de forma turbilhonar. As chuvas eram gélidas, e às vezes carregadas de granizo outras vezes com muita neve e vento. Toda esta exuberante força ao passar pela pedra entoava uma canção. Quando ocorria somente o vento, parecia uma orquestra de violinos; o vento e a chuva já introduziam chocalhos e fagotes; o vento turbilhonar, ao passar pelo orifício da pedra chamava as flautas; a chuva de granizo os tambores. Que linda sinfonia! Que novamente era escrita a cada pequeno e milimétrico movimento da pedra empurrada pelo o vento.
Muitas verdadeiras obras de arte foram escritas e executadas por milhares de anos naquele lugar sem que ninguém pudesse ouvir. Somente a pedra, autora e performática, ficaria sabendo do ocorrido.
Novamente o destino quis interferir e mudar toda a sua trajetória. O derretimento da geleira fez a pedra rolar montanha abaixo por cerca de mais três mil metros, fazendo que novas modificações em sua anatomia e tamanho fossem processadas. Agora ela já perdera a exuberância do seu tamanho, havia poucas protuberâncias, decepadas pelo rolar montanha abaixo, seu furo já não existia e sua cor ficou mais forte, principalmente próximo aos veios brancos que jamais perdera. O local onde agora residia era muito mais quente e em certos períodos a neve desaparecia para surgir o terreno coberto por grama verde que alimentava animais de porte enorme, com chifres e corpos coberto de espesso pelo.
E mais uma vez a pedra ali ficou outra eternidade. Testemunhou a evolução de varias espécies, viu desaparecerem outras tantas, e neste período, século após século modificou-se muito pouco, perdendo seu formato de ovo e tornando-se mais redonda. Fato este que a fez novamente rolar pela montanha sofrendo encontrões, perdendo pedaços e ficando cada vez mais redonda. Desta vez a pedra chegou a um rio e descansou cem metros após sua nascente.
Agora, sua maior função era abrigar ovas de peixes que, todos os anos, ali chegavam para desovarem e morrem. Eram peixes lindíssimos, de cor avermelhada, que exaustos após a longa viagem de volta ao local de nascimento, reiniciavam um novo ciclo de vida, sem deixar também, no fim de suas vidas, alimentarem uma infinidade de outras espécies, como os ursos pardos, aves e até outros peixes. Mas as ovas que a pedra escondia geralmente estavam bem protegidas. E por milhares de anos ali ela ficou, libertando toda primavera, um número incontável de alevinos que rapidamente seguiam para o mar em busca de seus destinos.
A correnteza do rio a cada século aumentava sua força, principalmente durante o verão e lapidava a forma da pedra e a deslocava milimetricamente, fazendo em certo momento um longo deslocar, rio abaixo, da nossa viajante. Mais uma vez em movimento, atravessou quilômetros de distância, ora lentamente, ora velozmente, às vezes em pequenos saltos e outras pulando em magníficas corredeiras.
No fim de mais esta viagem, na foz do rio, voltou a descansar, próximo à margem, com milhares de outras pedras, todas de tamanhos parecidos, arredondadas e lisas. Mas ela ainda se destacava, não mais pelo seu tamanho, mas sim pela sua cor e por seus veios brancos, que, como sempre, conferiam-lhe uma beleza diferenciada.
Certo dia, um homem que por ali passava observou-a, distingui-a das outras, segurou-a na palma da mão e admirou sua inconfundível beleza. Colocou-a no bolso e caminhou para fora do rio, mas não aguentou o peso de tamanha responsabilidade, algo o incomodava, parecia que estava cometendo um crime. Voltou ao rio e deixou a pedra no mesmo lugar onde a encontrara.
E a pedra seguiu sua vida.
Alberto Daflon