Pena Pesada
Conto selecionado para integrar o livro "20 Cabeças e 22 Contos Imperdíveis" da Gráfica Belacop.
Em uma gigantesca floresta, na mais frondosa das árvores, um ansioso casal de canários aguardava o nascimento de seus três filhotes. O local estava repleto de parentes e amigos, todos querendo presenciar a chegada dos herdeiros de tão belo par, um dos mais destacados no reino dos canários amarelos. Com considerável diferença de tempo entre o primeiro e o terceiro, nasceram os canarinhos. Fez–se festa nos galhos e os novos pais receberam as felicitações de todos. Seus filhos eram lindos, duas meninas e um menino, nasceram quase pelados, porém, as poucas penugens que possuíam, evidenciavam um amarelo muito forte, ouro, a principal característica da espécie, o que significava que seriam tão belos quanto seus pais.
No momento em que a novata mamãe retirou um caco da casca do ovo que estava sobre o pequeno canário, último filhote a nascer, viu, incrédula, uma pena maior e terrivelmente negra em seu dorso. Rapidamente, sem que ninguém percebesse, arrancou a pena com o bico e a jogou para fora do ninho. O canarinho piou dolorosamente. Passados apenas alguns minutos de seu nascimento, já passava pelo seu primeiro sofrimento.
Quando papai canário anunciou que suas filhas se chamariam Pety e Peny e o nome do filho seria Pena, sua companheira não pode deixar de pensar no paradoxo da escolha.
Com o passar do tempo, os pais canários desistiram de retirar a pena preta do filhote, ela teimava em reaparecer, cada vez mais vigorosa. Chegaram até a se desentender, um culpava o outro pela tragédia de ter um filho com uma pena negra. A família, outrora invejada, passava a ser o maior motivo das piadas da região.
Pena também foi o último dos filhotes a conseguir deixar o ninho, sua pena preta era muito pesada para seu pequeno tamanho, assim, ficava difícil conseguir voar. Um dia, depois de muito se exercitar e praticar nos galhos da árvore, se atreveu e conseguiu decolar. Ao aterrissar se esborrachou no chão e sentiu muita vergonha ao ouvir a zombaria feita por outros canários. Apesar disso, estava feliz, a determinação o premiava, conseguiu o que queria e sem ajuda de ninguém.
Assim passou a infância, sempre sozinho, alvo das chacotas e desprezado pela própria família. Por outro lado, era um garoto inteligente e persistente, sempre batalhando pelo que almejava.
Ao chegar à adolescência, Pena mantinha uma solitária busca pelo conhecimento. Aperfeiçoava cada vez mais suas decolagens e aterrissagens, aprendeu a fazer manobras com uma incrível velocidade no ar, estudou com intensidade a história dos canários, ficou fascinado com o aprendizado de defesa pessoal e até melhorou incrivelmente seu canto. Todas essas conquistas faziam com que se sentisse muito bem, e não se conformava com a repulsa de seus semelhantes.
Com as mudanças que ocorrem na juventude, Pena não parava de admirar Nária, uma jovem e linda canária que sempre ajudava todos os necessitados, fazia lindas campanhas assistenciais pela floresta, auxiliava os doentes e pregava a palavra de Deus Canário. Um dia, tomou uma dose maior de coragem e se declarou à amada. Contudo, mais uma vez, o pássaro foi repudiado:
– Eu não acredito – disse Nária. – Como você tem coragem de me dizer essas palavras? Você não se enxerga? Eu jamais namoraria alguém que carrega uma pena preta no corpo!
Pena ainda disse:
– E eu achando que você entendesse os ensinamentos divinos.
– Todos sabem que eu sou um instrumento que Deus usa aqui na Terra. Ele é minha vida e a Ele sou extremamente dedicada – argumentou a jovem exaltada.
– Suas palavras são contraditórias para alguém que se diz praticante das instruções religiosas – acrescentou Pena, enquanto começava a se retirar.
– Ora, não diga bobagem, aliás, nunca mais me dirija a palavra, você é uma aberração, só pode ser obra do diabo ou deve ter algum parentesco com um urubu.
Depois de mais uma decepção, Pena resolveu fazer o que há muito tempo já sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável: partir para sempre da cidade dos canários amarelos.
Às vezes voando, e por quase todo o tempo caminhando pela floresta, o período que sucedeu a sua decisão foi muito sofrido.
Todavia, considerava que esses dias não estavam piores dos que tinha em sua vida pregressa.
Certa vez, em um dia chuvoso, Pena deparou–se com um canarinho, ainda pequeno, tentando se livrar, inutilmente, da lama que o encobria. Com agilidade, conseguiu puxar o pequeno para fora do barro, salvando a sua vida. Ainda o levou até uma poça com água limpa para retirar a sujeira de seu corpo. Quando conseguiu se restabelecer, o canarinho disse:
– Muito obrigado, é a primeira vez em minha vida que conto com a ajuda de alguém.
Pena não pode deixar de pensar em sua própria existência e viu, impressionado, conforme a água ia limpando o canarinho, que ele também tinha a pena preta.
O pequeno contou a Pena que vivia sozinho, havia sido expulso de seu lar porque seus pais não aceitavam a sua pena diferente e já tinha visto, ali mesmo naquela região, vários outros canários, todos vivendo sozinhos e todos possuidores de uma pena preta.
A informação mexeu muito com a cabeça de Pena. Ele acreditava ser o único de sua espécie a ter a grande pena negra, agora, com as dicas e ajuda do novo amigo, rapidamente começou a reunir todos os canários excluídos residentes na floresta.
Com os canários com uma pena preta nos corpos reunidos, uma verdadeira algazarra acontecia, todos piando sem parar, felizes, cada um contando sua vida para os outros, até que Pena voou até um galho alto e chamou a atenção de todos:
– Amigos, por favor, escutem o que tenho a dizer.
O silêncio se fez, todos os pássaros presentes ansiavam por saber o que ele pretendia com aquela reunião. Pena continuou:
– Por experiência própria, acredito que todos aqui tiveram uma vida muito angustiada, solitária, sem amigos e sem direitos, e sem fazer nada para merecer tal sentença. Esta reunião é um presente do destino, uma verdadeira oportunidade que não podemos deixar passar sem aproveitar. Eu sugiro que aqui mesmo onde nos encontramos, seja o local onde viveremos todos juntos, formando uma promissora comunidade. Aqui cada um terá seu valor pelos seus atos, pelo seu caráter, e não pela cor ou tamanho de suas penas. Cada um pode ajudar no aprendizado do semelhante com o que sabe de melhor, assim, todos teremos a ganhar, a começar pela inédita companhia. O que acham?
Novo alvoroço começou, todos comemoraram, a felicidade foi geral, pois sabiam que, como disse Pena, essa oportunidade era única e fariam o possível para concretizá–la da melhor maneira possível. Assim, estava fundada aquela que viria a ser chamada de cidade Pena Preta.
A comunidade foi estruturada rapidamente, os ninhos foram construídos e os pássaros ajudavam uns aos outros, como o fundador da cidade havia dito em seu primeiro discurso. Pena era o mais solicitado, devido a tanto conhecimento adquirido anteriormente, passava os dias ensinando o que sabia. Foi assim que ganhou a alcunha de Professor.
A notícia do veloz desenvolvimento da nova cidade chegou a todos os agrupamentos da floresta. Os canários amarelos se sentiram ultrajados e planejaram um ataque em massa para eliminar os penas pretas que, acreditavam, pertenciam a uma raça inferior e eram péssimos exemplos para os jovens canários amarelos.
Mesmo sendo pegos de surpresas, os habitantes da nova cidade não tiveram maiores dificuldades em expulsar os invasores. Colocaram em prática todo aprendizado dos últimos tempos e, deste modo, os amarelos saíram humilhados, perderam a batalha para aqueles que julgavam frágeis e inferiores. Depois do enfrentamento, os residentes da cidade dos canários amarelos, envergonhados, deixaram a floresta e, por muito tempo, não se viu mais nenhum deles por aquelas bandas. Assim, além do desenvolvimento que já conseguiam, os antigos marginalizados obtinham o respeito das outras comunidades da mata.
A partir daí, tudo passou a acontecer normalmente. Muitas uniões ocorreram, a população da cidade aumentava e todos nasciam com a pena preta para orgulho de seus pais. Pena se casou e teve vários filhotes. A essa altura, com tantos instrutores aptos, ele apenas supervisionava os núcleos de ensino e isso fazia com que ficasse um tanto desmotivado. Depois de passar por um extenso período de meditação, o predestinado canário chegou a mais uma difícil decisão que novamente mudaria sua vida. Convocou uma reunião com os habitantes de sua progressiva cidade e fez o anúncio:
– Canários de minha terra, venho até vocês para agradecer tudo o que fizeram por mim. Criamos essa maravilhosa cidade, transformamos a utopia em realidade, crescemos, aprendemos muito e conquistamos a dignidade que nos era negada. Tudo isso juntos, unidos. Agora, já estamos totalmente estabelecidos e a comunidade se sustenta por si só. Eu, como muitos de vocês, carreguei uma pena muito pesada durante a vida, com o perdão do trocadilho. O fato de estar sentenciado a ter que batalhar por conquistas desde meu nascimento, faz com que eu me sinta desnecessário agora que a nossa luta é amena, e eu preciso de ideais para lutar, só assim vivo bem. Então, comunico a vocês que deixarei a nossa cidade. Sei que há, em outras regiões, semelhantes que lutam por justiça e é para lá que irei e me engajarei. Terei mais utilidade lá do que aqui. Voltarei para passar aqui meus últimos tempos com meu amado povo, tanto é que minha família ficará. Peço que continuem firmes, ensinando para as novas gerações tudo o que aprenderam, fazendo com que nossa cidade continue sendo um exemplo para todos. Muito obrigado e até breve, meu povo! Que Deus abençoe vossos ninhos.
Houve grande comoção após o discurso. Muitos tentaram, mas ninguém conseguiu fazer Pena mudar os seus planos. Em um dia chuvoso, assim como aquele em que ele encontrou os companheiros com pena preta, o fundador da cidade partiu, acompanhado apenas de alguns leais camaradas que se recusaram a deixá–lo só.
Pena nunca mais voltou. Boatos surgiram, um deles dizia que ele havia sido assassinado, vítima de uma emboscada em terras longínquas. A cidade Pena Preta continuou a progredir e o seu idealizador virou lenda para as gerações que se seguiram. Em cada reunião, ou festejo, uma canção dedicada a ele, cuja autoria era desconhecida e chamada apenas de música do Pena, era cantada a plenos pulmões:
Nasceu em ninho de ouro
Com destino diferente
Algo não era louro
Pena Preta permanente
Cresceu só e desprezado
O lar renega seu filho
Quando o amor foi negado
Pena Preta andarilho
Um dia por felicidade
Achou penugens da cor
Fundou sua própria cidade
Pena Preta professor
Ansiou por novos ares
Finda a missão em sua terra
Abençoou os nossos lares
Pena Preta noutra guerra
Pena proteja meu ninho
Ouça nossas orações
Oh, nosso herói canarinho
Viva em nossos corações
***
Em uma gigantesca floresta, na mais frondosa das árvores, um ansioso casal de canários aguardava o nascimento de seus filhotes, descendentes diretos do famoso e idolatrado Pena. A decepção marcou o dia, depois que os novos pais constataram que um dos filhotes não tinha a pena preta no corpo, ao contrário de seus irmãos. Na calada da noite, papai partiu carregando o renegado filhote e, muito longe da cidade Pena Preta, o abandonou. O sol lutava para raiar no dia chuvoso que começava a nascer.