Uma Questão de Negócios

Nota: Este conto é uma narrativa que faz parte do romance chamado Anátema criado pela autora. Este universo possui uma mistura de fantasia com ficção científica e elementos de dark fantasy. Toda a obra é focada em magia e seus elementos. Para ler a obra, visite o link: http://www.larissacaruso.com/anatema.pdf

Este era o momento ideal para agir. Com um último olhar em direção ao local onde se encontrava, a jovem abriu a porta de ferro. Os gritos desesperados dos prisioneiros a atormentavam, juntamente com seu instinto, que implorava para que os ajudasse. Homens, mulheres, até mesmo crianças... todos sendo mantidos como cobaias de um experimento macabro patrocinado pelo rei. Espadas e cavalos, já não considerados suficientes, aos poucos davam espaço a armas de fogo e engenhocas. Tudo em nome do poder.

Balançando a cabeça negativamente, ela adentrou a sala de máquinas, ignorando todas as súplicas. Estava lá a negócios. Não podia bancar a heroína.

O teto de mais de dez metros de altura oferecia abrigo para grandes monstros metálicos que assoviavam a cada batida de seu coração. Esteiras de madeira os conectavam de forma intricada, sumindo e reaparecendo com estranhos objetos. Pedras e frascos de diversas cores brilhavam ao serem cuspidos pelas máquinas, pulsando levemente. Tubos flexíveis emaranhavam-se no centro, onde uma coluna de vidro protegia um pequeno ornamento que emanava uma luz dourada.

– O catalisador... – murmurou para si mesma.

Observou seus arredores com cautela. Furtivamente, iniciou seu caminho em direção ao objetivo de sua missão. Sentiu um calor forte rodeando-a assim que deu alguns passos para frente. O catalisador pulsou mais forte, parecendo pressentir sua presença. Decidindo que não se assustaria facilmente, ousou se aproximar ainda mais.

Um clarão tomou todo o galpão, cegando-a momentaneamente. O barulho de vidro sendo estilhaçado a ensurdeceu. Instintivamente, levou os braços a altura dos olhos, protegendo o rosto dos cacos que voavam em todas as direções. As máquinas responderam com rugidos ameaçadores, seguidos por uma densa fumaça branca. Toda a sala tremeu diante da força daqueles monstros.

Precisava encontrar o catalisador. Era incapaz de ouvir qualquer coisa além dos altos assovios da maquinaria, mas sabia que logo homens armados verificariam o que estava acontecendo.

A sua esquerda, lhe avisou seu instinto. Virou-se sem pensar e sorriu ao ver o que lá se encontrava. Encoberto por fumaça estava um bracelete dourado, emanando energia em um tom fruta-cor. Ele flutuava lentamente, como se possuísse vida própria.

– Que maravilha... – bradou ela, irritada – O catalisador é um artefato mágico. Agora estão usando magia como fonte de energia das engenhocas?

Ponderou por um momento se realmente deveria tocá-lo, mas logo seus pensamentos foram interrompidos por um grito masculino, que ordenava:

– Tem alguém ali, próximo ao centro. Peguem-no!

Sem perder tempo, apanhou o artefato e começou a correr. Precisava sair de lá o mais rápido possível. Perguntou-se novamente o porquê havia aceitado aquela missão, e então se lembrou.

***

Alyvia fechou a porta da taverna, abafando o som de risadas e música que vinham de dentro. Observando seus arredores ligeiramente, começou a caminhar em direção a área residencial mais pobre. Apesar da escuridão da noite, as lamparinas da cidade ofereciam o brilho de suas chamas, auxiliando-a a traçar seu destino.

Deixou-se distrair por um momento, pensando nas informações descobertas naquele dia. Mapeou os detalhes em sua mente, tentando organizá-los para que pudesse colocá-los no papel de forma rápida e precisa. Enquanto pensava, levou a mão aos cabelos loiros e retirou a presilha prateada que o segurava em um elaborado coque. Os fios lisos cascatearam ao redor de seu pescoço e ombros, deixando-lhe mais a vontade em seu atual figurino.

Ao executar o movimento, sentiu uma mão forte agarrando seu braço. Antes que pudesse reagir, foi puxada para uma estreita rua com pouca iluminação. Uma palma calejada calou sua boca, ao mesmo tempo em que um corpo esguio pressionou-se contra o seu. Em um ato instintivo, levou a presilha de bico pontudo contra o torso de seu opressor, como se segurasse uma de suas adagas.

– É assim que você me recebe? – a voz familiar sussurrou em seu ouvido, arrepiando-a.

Seu coração palpitava, mas não mais de medo. O luar focou sua luz no rosto do homem assim que ele deu um passo para trás. Cabelos loiros curtos e encaracolados lhes concediam uma face angelical que era desmentida pelos intensos olhos cinza que a fitavam com malicia. O homem soltou uma melódica risada, que fez com que os joelhos da jovem tremessem. Recuperando-se com uma respiração profunda, ela perguntou:

– Luke! O que faz aqui?

– Vim me certificar que estava bem. Estava demorando e...

– É óbvio que sim. Já falhei alguma fez? – interrompeu a moça, arqueando as sobrancelhas. Sem esperar que respondesse, continuou – Vamos logo, antes que notem algo de errado.

Luke a guiou pelas ruas da capital de Ishdor, locomovendo-se com facilidade invejável. Poucos ainda caminhavam nas ruas e em sua maioria eram guardas fazendo a ronda noturna. Alguns homens de cavalo com trajes de viagem também circulavam, entrando ou saindo da cidade. O cheiro forte de barro molhado e estrume empesteava a vizinhança, apesar da chuva ter varrido a pior parte da sujeira. A jovem franziu o nariz, segurando a respiração enquanto caminhava. Por um momento, desejou que a tecnologia se difundisse também entre os plebeus.

Pararam logo a frente de uma estalagem simples com tijolos gastos. Sem nenhuma pergunta, o estalajadeiro os cumprimentou quando entraram. Sabia que este era o principal motivo da escolhe de Luke. Era um lugar onde grandes gorjetas significavam rápido esquecimento. Perfeito para aqueles que não queriam ser notados.

Assim que chegaram ao quarto de casal que haviam alugado, Alyvia sentou-se para tirar seus sapatos. Luke a observou em silêncio, parecendo entretido com algo que via. Apressando-o, ela pediu:

– Preciso de um papel e um lápis. Rápido.

Ele sorriu ao ver a expressão séria em seu rosto e atendeu seu pedido sem delongas. Com traços firmes, a jovem delineou aquilo que havia descoberto naquele dia. Enquanto o fazia, explicou:

– O catalisador esta localizado em um galpão próximo a Rern, cidade ao sul da capital. Tem uma casa de hospedagem a direita e um grande muro ao redor da propriedade. Durante o dia, haverá mais de trinta homens rondando o local, dentre eles alguns mercenários. À noite, maior parte se recolhe, deixando somente dez circulando o perímetro. Nenhum deles possui acesso a sala de máquinas.

– Certo. E qual o plano?

A jovem o observou, depois disse com simplicidade:

– Eles procuram por bruxas, não? Então serei uma delas.

– Ousado. – foi a única palavra dita pelo homem, que a observava com admiração.

Ela lhe ofereceu um meio sorriso, satisfeita com a resposta recebida. Sabia que ele possuía diversas perguntas, mas não as faria. Esperava que ela executasse a missão sozinha, provando seu valor. Tinha tudo planejado. Adorava surpreendê-lo e dessa vez sabia que não seria diferente. Não deixaria nenhuma brecha para que argumentasse contra o acordo feito entre eles.

– Quando? – ele perguntou, desviando seu olhar para o papel diante de si.

– Amanhã ao entardecer. Precisarei de você antes do amanhecer.

– Certo, nos encontraremos no terraço do galpão. Vou esperar até que soe a última badalada da hora seguinte. Este é seu teste final. Não me decepcione. – concluiu ele.

Sentiu um arrepio de excitação percorrer seu corpo enquanto sorria para ele. Mal podia acreditar que finalmente seria considerada digna de uma sociedade com aquele que era seu tutor e amante. Parecia que explodiria de felicidade. Era jovem e, graças aquele homem, bem sucedida. Sabia que seus contratos autônomos de alta confidencialidade, como ele os chamava, nada mais eram do que uma desculpa para roubar informações e tecnologia. Não se importava, com tanto que pagassem bem.

– Ah, e... Lyvie? – ela o fitou ao ouvir seu apelido carinhoso e ele continuou – Adorei o vestido.

O olhar faminto fez com que entendesse o significado de sua frase. Negócios encerrados. Agora era hora de diversão.

***

Alyvia sentiu suas pernas tremerem com fraqueza ao alcançar a porta que levava ao terraço do galpão. Abrindo-a, observou os arredores a procura de seu salvador. Ainda podia ouvir as vozes de seus perseguidores, mas não chegariam a tempo.

Voando sob o chão do terraço, viu um pássaro mecânico esperando-a, já com seu amor a bordo. Sua estrutura metálica era simples, sem nenhum tipo de revestimento. Na armação principal, acima das pequenas rodas, encontravam-se dois assentos de couro, o do piloto, ocupado por Luke, e outro logo atrás. As finas hélices, paralelas ao chão, giravam rapidamente, criando uma grande ventania ao seu redor.

Sem perder tempo, ela caminhou em direção a beirada do terraço, aproximando-se da aeronave. Seu futuro sócio imediatamente perguntou:

– Cadê o catalisador?

Alyvia abriu a mão que segurava o bracelete, mostrando-o para ele. Diferente dela, não pareceu surpreso ao ver que se tratava de um artefato mágico. Antes que pudesse colocá-lo em um lugar seguro, Luke o tomou de sua mão, observando-o com mais cuidado.

– Não temos tempo a perder. Preciso de sua ajuda pra subir, me dê sua mão.

Com um olhar pesaroso, ele disse:

– Desculpe, Lyvie querida, mas não posso me associar com alguém terá um retrato falado e uma recompensa por sua cabeça.

Os olhos da jovem se arregalaram. Fitou a porta, sabendo que a qualquer momento esta se abriria.

– Chega de brincadeiras! – pediu ela, com o coração agitado.

– Quem me dera estar brincando... – suspirou ele, aumentando a altitude do girocóptero – Mas entenda, minha querida, é uma questão de negócios. Foi bom enquanto durou.

Acenando para a loira, ele se despediu com um sorriso. O pássaro mecânico tornou-se mais distante no horizonte enquanto ela o observava, desconsolada. Ouviu o barulho de espadas sendo desembainhadas atrás de si, e uma voz masculina anunciou:

– Fim da linha, ladra. Renda-se.

Suspirando, ela ponderou suas possibilidades. Poderia render-se e ser torturada até a morte, ou poderia arriscar tudo em uma única tentativa. Sorriu para si mesma. Acenando para seus perseguidores, ela pulou.