Tinta & Pena • 24

Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Onze

Krivelin

A porta dupla de mareira escancarou-se, trazendo mais luz ao lugar. Dois guardas entraram ofegantes.

- ATAQUE - Esbravejou o primeiro.

- Os Pássaros... Os Pássaros estão aqui! - Disse o segundo.

Trintem nada respondeu. Coçava sua barba branca como se tomado de uma tranquilidade serena, como a que Vinci tivera a pouco.

- Não há mais tempo para palavras. É hora de ação, aja duas vezes antes de pensar agora. - Disse Trintem enquanto, aparentemente, inseria um código para abrir um cofre secreto atrás do Trono do Branco, onde ele estivera sentado. De dentro retirou uma espada numa bainha com uma alça.

- Esta é Sealina, forjada de miendos, o metal do Mar do Leste. - Disse Trintem entregando a espada a Vinci. - Foi minha enquanto servi a, fadada ao fracasso, Dol Sirim. Use-a como bem quiser! Para o bem ou para mal. No fim, você já sabe... será a mesma coisa banal.

"Mas e o caminho?" - Pensou o filho enquanto o pai continuava.

- Fuja ou lute. Os Pássaros nos pegaram desprevenidos, temos poucos homens aqui. Se lutar teremos um homem a mais do nosso lado e, quem sabe, um homem a menos do deles. Se fugir terá mais nasceres e pores do Sol. Se quiser fugir siga para a porta dos fundos do Salão do Abate. Ao sair você vai encontrar o Vale dos Espinhos, se atravessa-lo encontrará a Estrada da Batalha, além disso não posso dizer mais nada.

- Quanto a mim - Continuou Trintem depois de um longo suspiro - meu filho. Eu lamento. Digo que lamento, não que me arrependo. Arrependimento é para os tolos que conservam a vã ilusão de redenção, ou pagamento. Eu não. Nada para o curso do desastre. Eu agora saio do Salão do Abate para a última página do livro da minha vida, que será vermelha como o sangue amaldiçoado dos Produtos da Terra.

- Adeus meu filho. Não pense que as coisas podiam ser diferentes. Nada para o curso do desastre.

Estas foram as últimas palavras de Trintem dirigidas a seu filho. Ao proferi-las sacou a espada que tinha na cintura, a Arcaria (feita de ossos de tubarão branco), e saio do Salão do Abate acompanhado dos guardas que vieram avisar do ataque.

Vinci olhou para a espada, a Sealina, pôs-se de joelhos e pôs-se a chorar, enquanto a poeira dançava, nos jogos de luz que o envolvia, como se zombasse da agonia dele.

"Nada para o curso do desastre"

A frase girava em sua mente repetidamente, enquanto o som da batalha crescia lá fora.

[...]

- Vinci está em perigo - Disse Flecha, analisando as pegadas do rapaz de Mastro Forte, feitas na noite anterior.

- Como você sabe? - Perguntou Lin olhando as marcas no chão com os olhos arregalados.

- Veja - Respondeu Flecha apontado para uma pegada especialmente grande.

- O que é? - Perguntou o findolino.

- Loka - Respondeu Nenian - E das grandes - Acrescentou.

- Algum tipo de besta? - Disse Lin ficando de cócoras para examinar a pegada mais de perto.

- O pior tipo - Respondeu Flecha - O tipo que é bruto e inteligente.

- Você acha que ele pode... - Nenian não conseguiu terminar, mas não precisou.

- Pouco provável - Disse Flecha para o alívio dela e de Lin, que não gostava dos homens, o Povo Livre, mas gostava muito menos do "Povo Besta".

- Pouco provável - Repetiu Flecha - Não há sinais de ataque, nem mesmo de luta, por mais estranho que isso pareça.

Estavam no meio dos girassóis, que na luz da manhã apresentavam uma cor dourada esplendorosa contrastando com verde intenso das folhas, o lugar para onde a Ingunpix tinha os levado. O lugar onde o "líder" deles tinha sido capturado pelo tubarão montado.

Subitamente uma grande sombra passou deslizando pelo chão, fazendo-os lembrarem, numa fração de segundos, as sombras que viram voando na noite anterior na casa de Felícia.

- Escondam-se! - Disse Lin arrastando Flecha e Nenian para o meio das plantações.

- Vocês viram? - Ele perguntou quando estavam escondidos em meio as plantas e tentavam ver, o mais discretamente possível, quem ou o quê teria projetado aquela sombra no chão.

Já era mais que suficiente ter um deles capturado displicentemente (e pela segunda vez! Você talvez diria). Eles não podiam correr este risco. Mas estavam correndo.

- É um grande pássaro negro - Disse Nenian - E está perdendo altitude.

- Vamos correr? - Sugeriu Flecha.

- Nããão! Um passo nessas folhas e ele nos encontra, se é que ainda não viu-nos.

Ficaram paralisados até que viram uma enorme ave com um montador nela, ambos vestidos de preto, pousar na trilha (A trilha que mais tarde ficou conhecida com a "Alameda da Ningunpix"). Não podiam ver o que ele estava fazendo ali, além dos muitos girassóis que tampavam a visão da trilha. Mas cada um deles apostaria um dingue gordo que ele estava fazendo a mesmíssima coisa que Flecha antes dele. E se realmente estava, seria questão de tempo até ele encontrá-los escondidos entre as flores amarelas.

E assim foi.

Quando mais esperavam, o pássaro negro avançou na direção deles. Ficando exatamente acima deles, perto de mais para o gosto de Flecha que sentia-se uma presa fácil para ele. O deslocamento do ar, causado pelas grandes asas do pássaro, afastou praticamente todos os pés de girassóis que os escondiam. A enorme ave soltava um piado eufórico.

- TORTOS OU MORTOS! - Soou a voz do montador da ave.

Eles não conheciam a expressão, mas não foi difícil entender - um movimento errado e o passarinho os atacaria com toda fúria e violência que uma ave de rapina pode ter.

Era assustador o tamanho da ave. Lembrava a todos eles a descrição que Vinci fizera de Delaina, na noite anterior, com exceção da cor. A ave, que os vigiava, era escura como uma noite nublada no interior de uma caverna nas profundezas do mais profundo mar.

- Coloquem as mãos atrás da cabeça e venham andando devagar. - Falou o montador, mais claramente agora.

Obedeceram. Saíram protegendo a face das folhas com os cotovelos.

- Vamos lá, não preciso dos seus nomes ainda, só da função - Disse o homem de cabelos longos e grisalhos e algumas cicatrizes na face.

- Somos um Gunpix, ou parte de um. Viemos de Rivergard para ajudar o povo sofrido de Benna, A Esquecida. - Disse Nenian.

- Rivergard? - Disse o homem com espanto. - Faz tempo que não víamos ninguém de Rivergard por essas terras frias. Mas escutem crianças (Lin, não gostou nem um pouco desta parte, mas como o falcão negro os vigiava preferiu não esboçar reação). Eu não sei como funciona as coisas em Rivergard, mas aqui em Benna as coisas são simples como água. Ou você está do lado dos Tubarões ou está com os Pássaros do Crepúsculo. Não há meio-termo. Os que ficam entre eles são os velhos abandonados pelos filhos. Então me digam de que lado estão?

- Com os Pássaros - Disse Nenian, para o espanto de Lin e Flecha. Mas ela reconhecia uma Fênix quando via uma, e aquele animal era, embora ela não soubesse de que espécie, uma legítima Fênix. E isso sempre era um bom sinal.

- Na verdade chegamos aqui ontem - Continuou ela - E sabemos pouca coisa sobre Benna. Mas sabemos quem são os Tubarões, ou pelo menos o que ele fazem, e não podemos estar do lado deles. Agora se vocês forem tão diferentes deles, quanto camelos de dromedários... Então sinto informar que não estamos do lado de vocês também.

Flecha ficou em alerta ao ouvir a última frase de Nenian. Já esperava um aceno de mão do homem para que o pássaro o apanhasse e o dilacerasse como a um dingue. Lin não ficou com medo, mas sim aprovou as palavras de Nenian. Pensando que seria mais ou menos a mesma coisa que ele diria se não estivesse paralisado.

- Muito bem, você tem sabedoria minha jovem. Agora sim podemos ir para as apresentações.

- Meu nome é Krivelin, e sou um Pássaro do Crepúsculo - Disse o homem fazendo uma mensura. Meu amigo aqui é Krokan, um dos poucos que restaram da terra que leva o seu nome, a Terra do Falcão Negro, de onde viemos.

- Temos observado as ações dos Tubarões e temos os combatido o quanto somos capazes, e isso quer dizer pouco. Pois somos menores em número. Mas estamos sempre vigiando. Um de nossos vigias, que vinha observando um tubarão montado, na noite passada, testemunhou o rápto de alguém bem aqui onde estamos. Ele tentou segui-los sem sucesso. Mas acho que isso você já sabem, imagino que não vieram até aqui apenas para contemplar as flores-fogo, por mais radiantes que elas estejam nesta manhã.

- Foi o Vinci - Exclamou Flecha - Nosso amigo. Senhor ajude-nos a liberta-lo - Disse ele ajoelhando-se - Ajude-nos eu imploro, e terá, para sempre, a boa vontade das terras livres em Rivergard.

- Não será preciso. - Disse Krivelin secamente - Agora mesmo estamos atacando o Posto Noroeste deles, que é para onde, evidentemente, ele levou seu amigo.

- Mas o senhor disse que vocês são em menos número! - Falou Flecha inconformado.

- Sim, mas não hoje. - Respondeu Krivelin. - Hoje o Sol dos Tubarões irá se pôr em chamas - Completou com um sorriso sarcástico.

Apenas Krivelin sabia o quanto seu grupo errante tinha esperado por aquele dia.

Apenas Nenian, Flecha e Lin encaravam aquilo como uma péssima notícia.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 23/05/2010
Reeditado em 07/10/2010
Código do texto: T2275381
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