JOGOS DA MENTE

Após um longo dia de trabalho, Edward só pensava no aconchego de sua casa. Passara horas digitando petições, documentos, memorandos e outras papeladas que enchiam o armário da burocracia.

Contudo, sua hora de descanso iria demorar um pouco mais, pois o trânsito congestionado impedia sua caminhada ao descanso e paz. Após uma hora de teste de paciência na avenida congestionada, ele chega à sua casa. Com movimento brusco, abre a porta e joga as chaves em cima de uma bancada, acende a luz central da sala que não ilumina uma parte dela.

Enquanto caminha ao seu quarto, uma voz rouca e profunda reverbera pela pequena sala.

— Boa noite, Edward.

Com um sobressalto, Edward olha para todos os lados da sala, mas não vê ninguém.

— Quem está aí? — pergunta Edward assustado.

Risadas soam pela sala.

— Não tenha medo, Ed. Sou inofensivo. — apazigua a voz.

— Não consigo ver-lhe! O que quer de mim?

— Calma Ed. Quer ver-me? Pois bem, então.

Edward olha, novamente, para todos os lados da sala, mas não o vê.

— Estou aqui, Edward. — fala a voz calmamente.

Edward olha em direção ao canto escuro da sala. Ele consegue ver uma silhueta negra. Parece ser homem. Está sentado na poltrona de espaldar alto.

— Quem é você? — pergunta Edward apavorado.

O estranho levanta-se e com movimentos teatrais, apresenta-se:

— Sou Imaginação.

— O quê? — questiona Edward.

— Sou Imaginação. Vim de um lugar muito distante chamado Subconsciente.

Edward ri nervosamente. Ele acha que o tal “Imaginação” é um foragido de um hospital psiquiátrico.

— Olhe, senhor Imaginação, irei ligar para a polícia para que eles o levem de volta para casa, certo? — fala Edward calmamente.

A risada do estranho sobrepõe a voz de Edward, e este fica cada vez mais assustado.

— Ed, como esses homens iriam levar-me ao Subconsciente? Você sabe onde fica Subconsciente?

Silêncio.

— Responda!

— Eu... eu não sei.

O estranho anda em direção a Edward. Levanta a mão com o dedo indicador em riste.

— Aqui.

O dedo toca levemente a testa de Edward.

— Eu vim, Edward, de sua mente. — explica Imaginação — Estou aqui para levá-lo para casa.

Edward vai ao outro lado da sala, passa os dedos nervosamente pelo cabelo e grita:

— Isso é mentira! Mentira! Você é um homem! Eu o senti quando tocou minha testa! Você é um filho-da-puta mentiroso!

Calmamente Imaginação fala sobre um presente que Edward criou para a mãe. Uma cadeira de balanço de madeira.

— E quem ajudou a você, Edward?

— Ninguém me ajudou! — gritou Edward com lágrimas deslizando pelo rosto.

— Você usou a imaginação. Ou seja, eu. Eu o ajudei, Ed.

Edward estava cansado daquilo.

— Por favor, diga o que você quer. Quer dinheiro, pegue. — joga a carteira em direção a Imaginação.

Imaginação olha para a carteira ao chão e suspira.

— Edward, você não acredita em mim. Portanto, terei que provar-lhe que eu existo. Estamos atrasados, portanto, precisamos ir, mas você tem que cooperar.

Imaginação anda rapidamente em direção a Edward. Este tenta impedir, mas o outro tem uma força sobrenatural. As longas mãos de Imaginação cobrem toda a cabeça de Edward.

— Feche os olhos, Ed. Vamos partir agora!

Uma ventania começa a soprar dentro da ínfima sala. Objetos e a mobília começam a girar em torno dos dois. O som é estrondoso. As roupas dos dois esvoaçam. Edward olha em volta não acreditando.

— Agora! — grita Imaginação.

Edward sente como se seu corpo estivesse entrando em um cano apertado. Seu corpo estava em outra dimensão, estava caindo. Seus olhos captavam imagens retorcidas, ele ouvia vozes, músicas sem nexo, gritos, sussurros. Isso durou alguns segundos.

Repentinamente o silêncio reina. Edward sai do portal de ligação e cai ao chão gramado. Quando levanta a cabeça, a tontura começa a dar sinais. Ele se levanta, mas seu estômago regurgita todo o alimento do dia.

— Avisei-lhe para fechar os olhos, Ed. — repreende Imaginação em pé, como se nada lhe ocorresse.

— Onde estou?

— Bem vindo à sua mente, Ed. — fala entusiasmado Imaginação.

Edward olha em volta, vê um belo jardim. Ele escuta pássaros a cantar, o vento fazendo o longo gramado farfalhar, folhas voando sem direção. Paraíso. Mas, ele percebe que essa natureza fora feita por pinceladas de tinta. Não tinham um formato definido.

— Minha mente é um jardim pintado?

— Não, Ed. Sua mente reproduziu esta imagem, pois é a que mais lhe agrada. Lembra-se dela?

Edward olha em volta mais uma vez e reconhece.

— É uma pintura! “Chemin Montant” de Renoir. Estamos dentro da pintura de Renoir!

— Isso mesmo, Ed. Como uma pintura é feita de tinta, olhe para si.

Edward olha para seu corpo.

— Estou sujo de tinta! — risos — Tinta de Renoir! Maravilhoso!

Edward fica felicíssimo e começa a melar a mão de tinta e passar no rosto. Delírio.

— Tinta de Renoir! Não acredito!

— Ed, eu não quero acabar com o seu momento de êxtase, mas temos que ir, pois vamos andar um pouco até chegar ao local marcado.

— Simples. Basta nos teletransportar novamente.

— Não, Ed. Não podemos. Estamos em uma dimensão fixa, sua mente. Temos que ir andando. Se tivermos sorte, encontraremos algum elefante por aí.

— Elefante?

— Sim, acho que você irá gostar.

Começaram a andar através da alta grama de tinta. Edward não se importava em sujar-se. Imaginação não estava sujo. Talvez um fantasma. Alguns metros andando, Edward percebeu que Imaginação era um homem alto, gestos nobres, e até bonito.

— Responda-me Imaginação, você também é uma criação minha?

Imaginação para, olha para Edward e responde:

— Claro. Sou uma mistura de personagens de livros que você leu, tenho traços de atores de que gosta, traços seus e até de seu chefe. — responde Imaginação sorrindo.

— Meu chefe?

Imaginação confirma.

— Desculpe-me.

Imaginação põe-se a andar e Edward o segue. Um pouco mais à frente, eles escutam um barulho.

— Você tem sorte, Ed. É difícil encontrar um desses por aqui. Venha, antes que vá embora.

Imaginação pega Edward pela mão e correm em direção ao barulho. Imaginação agacha-se próximo a uma árvore e diz:

— Olhe Edward.

Edward olha para cima e vê um elefante com pernas finas e enormes. O animal alcançava as nuvens com sua altura exagerada.

— Impossível! — fala Edward — Esse elefante é enorme! De onde ele veio?

— Você sabe Ed. Tudo o que tem aqui, você criou ou já viu em algum lugar. — responde Imaginação.

Edward aprecia mais uma vez o animal. E este começa a andar com suas pernas que parecem longas varetas.

— Vamos Ed! Precisamos pegá-lo. — grita Imaginação.

Imaginação corre em direção ao elefante e Edward, dúbio, corre também. O animal tinha mais de cinqüenta metros de altura.

— Oh, reconheço esse elefante! — arquejou Edward. — É um elefante de alguma pintura de Salvador Dalí!

Imaginação apenas sorri. Os dois homens correm para alcançar o elefante de Dalí.

— Ali. — aponta Imaginação.

Uma grande árvore frondosa com cipós que decaiam sobre o chão gramado.

— Pegue um cipó! — grita Imaginação.

Edward agarra-se a um cipó. Este começa a mexer-se e, com um chicoteio, lança Edward para cima.

Imaginação também faz o mesmo. Ambos cortam o ar como flechas.

— Vou cair! — grita Edward apavorado.

Imaginação, rodopiando pelo ar, assobia em tom agudo. O elefante olha para a esquerda e os vê quase caindo ao chão. Rapidamente, o elefante lança sua tromba para resgatá-los.

— Agarre-se, Ed!

Os dois agarram-se à tromba do elefante pintado e este os guia até sua anca.

— São e salvos! — comenta alegremente Imaginação.

— Nós quase morremos! — replica Edward. — E como vamos chegar ao “local marcado”?

— Não se preocupe Ed. Conheço este elefante há muito tempo. Ele era só um esboço quando o conheci.

Imaginação desliza até o pescoço do elefante e bate levemente em sua enorme cabeça. O elefante levanta a orelha e Imaginação fala-lhe sussurrando:

— Leve-nos ao Subconsciente.

O elefante entende e solta o ar através de sua longa tromba que faz um enorme sonido de um trompete.

— Isso garoto. — conclui Imaginação afagando o animal.

O elefante anda rápido, fazendo Edward olhar para baixo, curioso. Enquanto prosseguem a jornada, Edward começa a escutar um som ao longe. Curioso, olha para todas as direções.

— O que é isso? Está escutando? — pergunta Edward à Imaginação.

— Hum... não. Só escuto os passos de Dalí.

— Dalí?

— Sim, ele. — Imaginação aponta para o elefante.

Edward desiste. Mas, ainda escuta a música. Ela está mais próxima. Os acordes são audíveis.

— Beethoven.

— O quê? — pergunta Imaginação.

— A música. Sexta sinfonia de Beethoven.

Imaginação fechou os olhos para apreciar o que a mente de Edward estava tocando. Com um breve sorriso ele disse:

— Aproveite-a que estamos quase chegando ao nosso destino.

Edward aproveitou literalmente o resto da jornada. Ele olhava extasiado a paisagem pintada. Era o paraíso. Podia-se ver até a linha do horizonte.

Imaginação olha para Edward e fala:

— A sua mente faz uma prolongação da pintura em que estamos. A qualquer momento, esta paisagem pode mudar completamente para outra pintura, ou não.

Edward olha intrigantemente para Imaginação. Era incrível. Ele não se achava inteligente o bastante para imaginar tais situações.

Assim que a música dá seus últimos acordes, Imaginação fala:

— Ali. Ali está Subconsciente! — fala Imaginação apontando para o norte.

Edward olha para a direção que Imaginação aponta.

— Meu subconsciente é uma simples porta? Uma porta no meio da paisagem? — pergunta Edward desapontado.

— Sim, mas lembre-se de que é você quem pensa dessa forma.

— Às vezes penso que você está errado. — conclui Edward.

O elefante Dalí caminhava com suas longas pernas com cuidado para que não cair. Dalí deitou-se no chão e ajudou aos dois homens descerem de sua anca.

— Obrigado, Dalí. — agradeceu Imaginação afagando a tromba.

Imaginação olha para Edward inquisitoriamente.

— Ah, obrigado. — disse Edward sem jeito.

Dalí levanta-se levando consigo um pouco da grama e de poeira. E caminha sem rumo para outra pintura.

— Vamos. — fala Imaginação virando-se bruscamente para a porta.

Edward também se vira em direção à porta. Era uma porta dupla de madeira nobre alta, com entalhes de ouro, mas sem fechadura.

— Está pronto, Ed?

Edward reluta.

— Ah... Estou.

Com um leve sorriso, Imaginação fala calmamente em direção à porta.

— Veni, vidi, vici.

A porta imediatamente abre-se mostrando um amplo e largo corredor. Imaginação estende a sua mão para que Edward entre.

Edward avança relutante pensando que irá entrar em outra dimensão.

— Depressa, Ed. Eles já nos esperam. — fala Imaginação rapidamente.

— Quem nos espera?

— Você verá. — diz Imaginação.

Eles atravessam o corredor que reverbera o som do calçado de Edward. Este, por sua vez, percebe que Imaginação está descalço.

Imaginação parece ansioso e acelera os passos em direção à outra porta. Quando ele se aproxima da enorme porta dupla, diz:

— Ab alio expectes, quod alteri feceris.

A porta abriu-se imediatamente, mostrando outro corredor. Imaginação estava passos à frente de Edward, mas este corre e aproxoma-se de Imaginação.

— O que significa essa frase?

— “O que fizeres, encontrarás”. — Imaginação respondeu secamente.

Outra porta.

— Ars longa, vita brevis.

A porta abre-se e Imaginação fala para Edward:

— “A arte é eterna, mas a vida é curta.”

Todas as pessoas que estavam dentro do recinto olharam para os dois homens em pé juntos à porta.

— Você conseguiu Imaginação! Eu sabia! — disse Raciocínio.

— Muito bem, Imaginação! — saudou Sanidade.

— Ele conseguiu! — gritou Sentidos.

— Ele é um guerreiro. — concluiu Sentimentos.

— Torci por Edward. — disse Fé.

Imaginação juntou-se ao grupo que estava no centro da belíssima cúpula ornamentada.

— Edward, apresento-lhe os sete principais Componentes de sua alma: Fé, Raciocínio, Sanidade, Sentidos, Sentimentos e Imaginação.

Todos fazem uma pomposa reverência. Edward fica maravilhado em ver pessoas representando algo que nem se pode imaginar. Ele quis abraçar a todos, mas algo o deixa intrigado.

— Mas, Imaginação, só há seis aqui.

Todos na sala pararam de sorrir e entreolharam-se.

— Bem, Edward. É por isso que você está aqui. — disse languidamente Imaginação. — Uma parte importantíssima de sua alma... morreu. A Vida.

Edward ficou atônito. Arregalou os olhos. Seu coração palpitava milhares de vezes.

— O quê? Estou morto? Isto é o Paraíso que a Bíblia fala? Onde estou? — gritou Edward às lágrimas.

Imaginação aproxima-se de Edward e fala calmamente.

— Ed, fui designado a buscar-lhe, pois...

— Por que não posso morrer como uma pessoa normal? Morrer de alguma doença, acidente, suicídio... — interrompeu Edward.

Imaginação olha para os outros Componentes.

— Edward, isso não quer dizer que quando a pessoa morre irá para o nada, para o negro ou branco.

— Mas, eu estava com você na sala de minha casa, e vim parar dentro da minha mente e... — seus soluços o interromperam.

Todos os Componentes sentiam o pesar de Edward, pois todos eram um só.

Uma voz grave soou pela cúpula.

— Ele deve ver Vida. — disse Raciocínio.

Todos concordaram com um leve mexer de cabeça. Imaginação relutou, mas cedeu.

— Venha, Ed.

Todos os Componentes foram juntos com Edward para uma porta de ferro trabalhado. Desenhos tomavam toda a parte plana.

A voz de Imaginação soou triste.

— Dominus illuminatio mea.

A porta abriu-se. Era uma sala mortuária. No centro da sala estava um caixão. Velas espalhavam-se acesas pelo chão e em candelabros. Uma música começou a tocar: “Hallelujah” de Leonard Cohen. Edward aproximou-se do caixão. Os Componentes ficaram longe e de cabeça baixa.

Edward passou sua mão sobre o caixão com entalhe de ouro.

— Minha vida... se foi.

Ele se vira para o grupo em luto e fala.

— O que será de mim agora? Para onde vou?

Fé, com a voz macia, responde-lhe:

— Ficará conosco até estar preparado para ir à Zion. Terra de Zion.

— Zion? Por quê?

— Não posso responder-lhe, Edward, pois isso dependerá de sua fé; se você acredita ou não que Zion exite.

A música chegou ao fim.

Sons de sinos começam a espalhar-se por todo o recinto. Edward olha com ar de dúvida para Fé.

— Hora do funeral.

As paredes começaram a ruir, o chão a ceder. Edward olhava assustado para os lados, mas ele percebeu que sua mente estava formando outra paisagem. Um grande espaço verde. Lembrava os verdes campos da Irlanda.

O caixão estava sobre uma grande rocha retangular e lisa. Os Componentes aproximaram-se e cercaram o caixão. Deram-se as mãos e juntos disseram:

— Invocare focus.

Pequenas fagulhas chispavam da rocha. Todos se afastam. Alguns segundos depois, chamas de fogo começaram a cobrir todo o caixão. Uma música gaélica começou a tocar para que todos que estavam ali presentes nunca se esquecessem da essência da vida. As cinzas dançavam juntas com o movimento do ar.

— Vamos. — falou Imaginação para todos.

Imaginação ficou junto a Edward.

— Aonde vamos? — perguntou Edward.

Imaginação olha para seus olhos.

— Iniciar a sua preparação. Iniciar os Jogos da Mente.

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— Emergência.

— Meu marido está caído na sala. Ele não está respirando e sangra muito pelo nariz. Não sei o que fazer!

— Calma, senhora. Qual é o nome do seu marido?

— Edward Wole.

— Quais são os sintomas?

— Ele está sangrando pela boca, nariz. E estava tendo alucinações; falava sobre elefante, imaginação, Beethoven, morte. Mas, parou de falar há pouco. Tentei acordá-lo, mas ele não respondia. E agora ele não está respirando. Ai, meu Deus. E agora? Mande uma ambulância, por favor.

— Certo, senhora. Acalme-se que estou enviando uma ambulância à sua casa. Qual é o endereço?

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