Tinta & Pena • 23

"...Porque tu és pó e ao pó voltarás."

— Gênesis 3:19

...Ele adorava tirar o pó de suas velhas gramáticas: o que, de alguma maneira, fazia-o recordar-se de sua condição de mortal.

- "Moby Dick" - Herman Melville

"...Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó."

"A Terra Desolada" — T. S. Eliot

Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Dez

Pó & Poeira

As instalações dos Tubarões até que não eram feias.

Havia jardins completamente verdes, nada de flores, mas já era alguma coisa. Tudo era feito de pedra, na sua maioria, rochas como a natureza as tinha esculpido.

"Vamos cotovia, hora do abate."

Estas palavras soavam na mente de Vinci Laipotem enquanto ele era conduzido por becos estreitos, sem deixar de notar os olhos que espiavam pelas pequenas brechas nas paredes de barro vermelho - vigias.

Apesar do horário, o Sol parecia estar na força do meio-dia - o sangue, nas veias e artérias, de Vinci fervia.

"Então será assim?

"Tudo vai ser em vão?

"Toda aquela história de Onpix's, Inpix's, Gunpix's, Ingunpix's e não-sei-mais-o-quê-pix, e os Poderes...

"Tudo termina aqui? Assassinado por esses nojentos que se chamam de Tubarões?"

Passando por uma grande porta dupla de madeira grossa chegaram numa sala. Uma espécie de tribunal. Os raios solares entravam por pequenas brechas no teto, desenhando finos caminhos de luz e poeira. Os lugares que não eram iluminados pelos caminhos de poeira (ou de luz) eram escuros como café forte.

Havia duas figuras sentadas, em bancos de, cada lado. Uma estava no centro mais adiante, o capuz da roupa escura caído para trás. Nenhuma luz atingia sua face, tornando-o oculto.

- Apresente-se cotovia - Falou ele numa voz embolada - Vinci notou que um caminho-de-luz (ou de poeira) atingia a roupa dele na altura do peito, revelando uma insígnia. O coração de Vinci disparou com a súbita lembrança do brasão na roupa de Ciquem no dia que o conheceu, aquele "octógono com uma pena no centro e duas outras penas fazendo um arco", ou mesmo o "dos Golfinhos circundando uma pedra preciosa", mas era mais do que isso. Alguma coisa naquela voz disparou um alerta na mente dele. Nenhum dos dois brasões estava alí. O brasão que havia era um círculo bordado com linha cinza, e só. Nada no centro. Era só um círculo. Um círculo vazio.

Vinci não conseguia falar nada. Ele também estava oculto pelas sombras.

- Apresente-se forasteiro. - Instou o homem novamente. - Diga seu nome, de onde veio e para onde estava indo cantando no meio da noite. Como se os anos luminosos ainda não tivessem passado.

Vinci pôs-se de joelhos começando a chorar. As lágrimas desciam numa cachoeira de soluços.

A voz do homem oculto era a mesma voz que, não muito tempo atrás, o acordava toda manhã.

A voz do homem oculto era a voz de seu pai. A voz de Trintem, o fazedor de redes de Mastro Forte. O homem oculto não era outro se não seu próprio misterioso pai.

Enquanto Vinci Laipotem acordava no covil dos Tubarões, Nenian Silmarin acordava na casa de Felícia. Cantarolava, assim como ele, uma orla à aurora. Sussurrava para sí mesma e para os pássaros que saudavam a luz crepuscular.

- Você viu o Vinci - Era a voz, fina, de Flecha.

- Não - Respondeu ela. - Acho que não dormiu na casa. Dei por falta dele durante a noite quando Silan se despedia.

Os dois voltaram para a casinha. Felícia tinha feito chá e os ofereceu, junto com as raízes cozidas que ela trouxera na noite anterior.

Flecha observara Lin sair de manhã, antes mesmo de Nenian, e agora ele chegava.

- Nem sinal do Donpix, Vinci de Mastro Quebrado. - Anunciou ele - Só não digo que ele nos deixou porque sua bolsa ainda está aqui.

- Ele não tinha motivos para nos deixar - Respondeu Flecha com cara de raiva.

- Não se conhece todos os segredos que uma caverna esconde - Disse Lin retirando uma mecha, de seu cabelo loiro, dos olhos - Cavernas estranhas são as almas dos Homens! - Completou.

- O melhor que temos a fazer é comer e depois procura-lo. - Disse Nenian para por ordem - Tenho certeza que ele está por aí. Na certa precisava de um tempo sozinho, estava muito pensativo na noite passada. Não falou quase nada. De qualquer forma, espero que ele retorne antes de acabarmos o desjejum.

Mãe, a cadela, chegou na cozinha desejando-os um bom dia com lambidas e abanos da cauda espessa.

Enquanto eles comiam, Vinci chorava, soluçava e falava:

- Pai, é você?

[...]

[...]

- Vin...

[...]

- Vinci? - Disse Trintem por fim.

- Sou eu pai. Seu filho, o enganado... o iludido... o abandonado. Eis-me aqui. Surpreso em me ver? Não esperava que eu conseguir-se não é? Tenho certeza que não confiava em mim, por isso me escondeu tudo todo o tempo.

- Deixem-me a sós com meu filho. - Falou alto a voz de Trintem. Os quatro que estavam divididos em duplas se retiraram, e fecharam a pesada porta de madeira. Deixando Vinci frente a frente com seu pai, entre os raios de luz e poeira que vinham das brechas no teto.

Um deles iluminou o rosto de Vinci, coberto de lágrimas e o homem sentado no trono do Tubarões chorou. Uma parte dele deixava de ser o senhor daquele lugar para ser novamente o homem comum com um filho comum, mas com uma vida que jamais voltaria a ser comum.

Um filho que não conhecia o pai.

Um pai que não conhecia o filho.

Passou-se algum tempo sem que uma palavra fosse dita. Poucos minutos de suspense para palavras guardadas há anos.

- Muitas perguntas, não é meu filho? Todas querendo sair ao mesmo tempo. E o resultado? Nenhuma consegue passar. Eu sei, porque também as tenho. Bem-vindo ao País das Dúvidas. É nele que eu vivo, há muito, muito tempo.

Dezoito anos meu filho. O tempo que você move-se nesta terra maldita. Esta que só nos dá a beleza, a bondade e tudo que reluz... Com o intuito de saborear nossa tristeza ao perde-las. Mas acalme-se, você ainda não as teve completamente e talvez terá o prazer de alcança-las por um tempo. Sim apenas "por um mísero tempo". Um momento, e o que é isso? Não sabemos. No fim tudo é A Queda meu filho. Tudo cai. Só não cai quem já caiu.

E é por isso que o seu pai não vai mais cair! Não, nunca mais. Já estou no fundo do poço. E se o que há aqui para aproveitar é lama e minhocas, façamos delas um banquete real. Digno dos mais altos dias de Dol Sirim. Sim, estes que já estão passando, pois a queda de Dol Sirim se aproxima!

Mas isso você já sabe, não é? Imagino que aquele velho arrogante, da Floresta Anã, tenha lhe contado muita coisa. Claro que sim... Ele é uma fogueira e você, meu filho, você é um galho seco.

Eu poderia esperar muita coisa de você, meu filho, mas jamais encontra-lo aqui, na Amaldiçoada. O topo da torre de minha própria maldição. Labirinto cruel...

Labirinto cruel...

[...]

Mas fale. Pergunte. Só não diga "por quê?". Faça este pequeno favor ao seu velho pai, Vinci. Esta pergunta jamais poderá ser respondida, pois, como alguém certa vez disse:

"Nada para o curso do desastre."

- Você... - Começou Vinci - Você não é meu pai... ou, quem sabe, é... a verdade que eu não o conheço. Nunca o conheci. Nesses últimos dias eu vi coisas que jamais pensei existirem e ouvi coisas que meus ouvidos saborearam como leite materno. Mas o pior de tudo isso é vê-lo neste estado. Então você é o Martelo? O líder desses homens terríveis.

- Não meu filho, não sou o Martelo. Sou o Branco, o grande tubarão, o terror dos mares. O Branco está de volta!

- Como isso é possível? - Gritou Vinci - Até pouco tempo o senhor não passava de uma fazedor de redes. Como já está aqui e com essa posição nojenta? É, eu sei o que os "Tubarões" fazem, e conheci uma mulher que teve sua vida destruída por eles. Me diga que loucura é essa? - Concluiu Vinci, e pensava: "Loucura... O que não virou loucura em minha vida? Pesadelo que não acaba..."

- Como você sabe, meu filho, um Rei nunca perde a majestade!

Mas preciso que me diga... Renuncia ao Hexágono da Lei? Deseja juntar-se aos futuros Homens Livres e governantes de Rivergard e Benna? Como meu filho você terá lugar de destaque. E não faça essa cara de que não sabe do que estou falando. Não foi por isso que eu o mandei falar com o gamero velho naquela lagoa mais velha ainda? Para que você tivesse o direito, que todos temos, de escolher.

Aceite isso como um presente de seu pai. (A voz baixou o tom) Um dia quando você for pai... saberá que um pai só quer o melhor para um filho. Mas de qualquer forma, o que é a Estrada Estreita? Se não um caminho estreito até a Larga. Estreito é o início, como o nascimento, mas o final é o mesmo, para todos nós. Do pó para o pó. A sina de todos os herdeiros da terra. Bem-vindo ao mundo Vinci meu filho. O protegi dele o tempo que pude. O Criador sabe o quanto minhas intenções eram boas no início, sempre no início... mas no fim o tempo sempre passa, as garras do destino não são curtas. Cedo ou tarde a bifurcação chega.

Dei-lhe o poder da escolha e espero que você entenda que este é o único poder que, realmente, possuímos. O poder de escolher os caminhos, apenas os caminhos, entenda. O destino é o pó. O destino é sempre poeira.

Está vendo a luz, que eles chamam de pura? O que está vendo dançando nela? Em?

Dizem que a luz mostra a verdade. E está é a pura verdade: Poeira! A única verdade absoluta. Nada muda o curso do desastre. Somos grãos de areia numa tempestade que não formamos. Não vimos o começo e não veremos o fim! E não importa se não veremos o fim. Porque ele é sempre, sempre o mesmo. O fim é pó. O fim é só pó e poeira. Eles não viveram felizes para sempre... Acha que Hulmatan, O Primeiro, morreu feliz? Ou Lean, o Tolo, morreu ele feliz? Acha que sua vida foi uma ascensão brilhante até o fim? Não. Tudo que sobe cai. As belas obras de arte não vencerão as furiosas ondas do tempo, as belas esculturas e os monumentos desmoronarão sob os mares infinitos. O Vazio remanescerá para sempre. Só poeira. Limpe-a hoje e amanhã está lá. Em todos os amanhãs. E nós? Eu e você aqui com nossas, "belas e abençoadas", almas? Não. Nós não. Nos juntaremos a ela e no final seremos tão importantes quanto os peixes-cegos das profundezas.

Mas diga. O que escolhe? A estrada estreita e apertada, ou a larga e espaçosa? Lembre-se que o destino é o mesmo. No fim é só pó e poeira. Junte-se a mim e terá glória. Junte-se a mim e terá o orgulho antes da derrocada.

Em Vinci a lembrança do pesadelo na casa de Galhopula. "A Queda" era o que a majestosa voz antes do trovão dissera. Enquanto aquele, que estava em sua frente agora, jazia morto entre as pedras esmiuçadas e os estercos das gulinas. De volta ao pó.

"Então estamos todos numa inevitável queda?

"No fim o destino é o mesmo?

"A mão que me pôs no braço e me ensinou a andar, no fim vai se juntar ao pó...

"E tudo o que eu vi de belo? Os sonhos bons que tive; a Ordem; a Lei; o Salão dos Portais; as paisagens majestosas e mágicas desta terra; as cores; a luz; o seres deste mundo, (as imagens de Nenian, Flecha, Lin, Lepernitor, Bobby, Galhopula, Velminor, As Saúvas, Lui e Dep, Elih, Capitão, Ciquem, Delaina, até mesmo Martha e Maria, passavam pelos olhos de sua mente), a luz de Nenian, a amizade de Flecha, a mão salvadora de Ciquem... Os cuidados de meu verdadeiro pai.

"Então tudo isso não é nada?

"Tudo caminha, de mãos dadas ou não, para o mesmo trágico fim?

Vinci buscava travar uma batalha consigo mesmo, na noite anterior quando deixou a casa de Felícia vendo Flecha ronronar num sono profundo.

Mas a verdadeira batalha estava sendo trava ali. Nos poucos raios de luz contra uma imensa mancha de escuridão. Talvez mais que uma batalha, era a decisão de uma guerra. A última batalha de uma Primeira Guerra talvez.

Quem venceria? Faria alguma diferença no final? Ou seria só pó e poeira?

Os raios de luz ficaram mais forte com a avanço do dia.

A poeira dançava neles como açúcar mexido no café.

- Temos pouco tempo meu filho. O tempo escorre pelos nossos dedos como areia fina. - Disse Trintem levantando-se. E então começou a cantar com uma voz de barítono e a fazer gestos como se estivesse numa ópera.

Mais uma chance

Um novo dia

Um novo lance

Pra fazer tudo outra vez

Pra errar o mesmo erro

Pra ALCANÇAR A ALTIVEZ!

De ser o defunto do enterro

Que espécie de bicho eu sou?

Além de ossos e carne

Que tipo de animal eu sou?

Além destas peles gastas

Das cinzas para as cinzas

Do pó para o pó

A Fênix renasce

Estou novamente só

É fútil tentar

Inútil fugir

Abrir as asas, voar!

Esticar penas e partir

Veja o fogo em meus olhos

A alegria em meu coração

Aproveite cada instante

Desta doce ilusão

De volta a folha branca

De novo um recomeço

Quando sem esperanças

Adormecido eu amanheço

E esqueço:

Tudo o que um dia foi bom...

Só queria ser feliz outra vez

Só queria ver o mar

Nestas areias onde estou

Irei me sufocar

Senhor do Tempo aprece-se por favor

Pois sei que chorarei quando você não estiver mais pra mim

Mas sinceramente...

Queria vê-lo morto...

Só para chorar em seu velório

Chorarei em seu velório

Ingrato

Trintem calou-se. E então jogou-se novamente no trono.

De fora do tribunal onde Vinci era julgado pelo pai veio o terrível som de batalha. O som de batida de ferro contra ferro multiplicado por cem.

"E agora?"

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 16/05/2010
Reeditado em 07/10/2010
Código do texto: T2260179
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.