Tinta & Pena • 22
Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Nove
Sob Silan
Silan, a Lua de Prata, se punha no oeste.
Com sua luz mais prateada que quando no centro celeste.
Vinci caminhava só, a cabeça baixa.
Isso foi depois de Felícia acordar e servir-se, um pouco, da comida do gunpix. Os outros (Nenian, Flecha e Lin) já tinham deitado nas "camas" improvisadas pela anfitriã. Ele até que tinha tentado dormir, mas o sono se recusava a obedecer a ordem: "Venha! Apodere-se de mim!"
Decidira que seria bom mais um encontro com, o que Lepernitor chamara de, "seu pior inimigo" - ele mesmo. Queria vencer mais uma batalha. Iria trava-la entre as sombras daquela noite. Estava na trilha dos girassóis, onde acordara depois de passar por aquela estranha porta (no chão) chamada ingunpix. Tudo era estranho ali. Sua percepção estava diferente. Mas, o que era ainda mais estranho, ele não se sentia mal. Sentia-se bem, não exatamente "à vontade", mas bem. Como alguém que passara a vida inteira tocando um instrumento da forma errada e agora aprendia o "jeito certo de tocar". Estranho, diferente, mas melhor, e ia melhorar no futuro. Ele sabia disso. Tão certo como dia segue a noite, e vice-versa.
Os pensamentos flutuavam e dançavam em volta dele. Tudo o que vivera voltava a ele em ondas - como os cocos lançados na água no jogo coco-seco. As imagens nos espelhos na sala da ingunpix, algumas lembranças que ele nem sabia que ainda as conservava, dançavam uma dança inominável. A Dança de Sua Vida. Que ele ainda estava aprendendo a dançar. As melodias que, a pouco, ouvira a nindano e o mongue tocarem se misturavam a peça. Os girassóis acompanhavam o ritmo lentamente. De repente sem saber por que estava cantando. Começou uma canção que vinha do "nada". Não lembraria quase nada dela no dia seguinte. Um pouco do que lembrou está aqui:
Silan lua minha
Que brilhou quando nasci
Iluminaste minhas noites
Me guiaste até aqui
Quando estive perdido...
Quando sem direção clamei...
Ainda estou perdido
Até quando, eu não sei
Mas estou no meu caminho
E seguirei para onde levar
Enfrentarei o que vai vim
E no fim irei cantar
Por todas as noites solitárias
Por todos os dias infelizes
Por todos os sonhos não sonhados
Por todos os sorrisos quebrados
E você vai brilhar
Na noite do meu cantar
E então irá dizer:
"Ainda estou com você"
No fim, da longa canção, viu que Silan já fechava as cortinas e poucos raios de luz pura ainda atingiam a terra. Pensou em voltar para a casa de Felícia. Mas algo o deteve. O assustou na verdade. Um som semelhante ao rugido de um leão, um leão muito perto. Vinci nunca tinha ouvido o rugido de um leão nem nada parecido - pois não havia leões no continente de Rivergard, e a Ilha Benna, onde estava pertencia a River. Pensou em correr para se livrar daquela criatura, mas foi tarde, foi triste e rápido. Muito rápido. Num segundo estava montado no lombo do que inicialmente jugou ser um enorme cavalo, com alguém. Alguém o puxara para cima do animal, tampando sua boca - não gentilmente pode ficar certo. Uma vez que tinham se afastado, o que o condutor do animal jugou ser: o bastante, Vinci teve sua boca liberta.
- Não faça movimentos bruscos, a queda de cima uma loka em movimento é mortal. E eu sei usar bem minha adaga - Falou a voz da pessoa que o capturara, uma voz grossa, fria, fria como a noite.
Certo, não era um cavalo era uma loka, um animal que nas histórias que Vinci conhecia era uma espécie de mistura entre tigre e cavalo, mais robusto que os dois e com um rosto que denotava inteligência. Era capaz de viajar longas distâncias e dar longos saltos. Vinci experimentava esses saltos, agora, com um frio na barriga. Estava achando pior que voar em Delaina, a groenpiterix de Ciquem, o olíre de Dol Sirim. Isso por que o voo de Delaina não tinha tantos "altos e baixo". A loka dava saltos altos de mais para o gosto dele.
A cavalgada se estendeu pelas terras escuras mesmo depois de Silan ter adormecido. Saltavam abismos e rios como uma criança salta poças d'água numa ruazinha.
Já passava das duas da madrugada quando eles chegaram no alojamento dos Tubarões. Por que era só o que podia ser todas aquelas feias construções de pedra escura iluminadas por tochas. Não as belas tochas frias feitas com penas de Silanãs, mas tochas comuns. Lá Vinci foi preso numa cela pequena, apenas com uma pedra que seria sua cama.
- Fique ai até amanhã, quando você verá o Martelo. Não tente fugir, temos bons arqueiros para bons fujões.
(Sei, com flechas feitas com dentes de alicrius, já sei) Pensou Vinci.
Tentou ver o rosto da figura que dava as ordens, sem sucesso. A loka porém estava na luz laranja duma tocha e ele viu. Mais uma visão impressionante para a lista que vinha compondo desde aquele dia em que esbarrou em Ciquem, derrubando as penas do olíre. O animal era brutal, poderoso, feroz e inteligente. As três primeiras qualidades combinavam perfeitamente numa fera como ela, mas a última...
Impressionante. Uma palavra comum para uma criatura singular. Havia muitas em Rivergard (no continente) também, mas não no Sul de onde vinha Vinci.
A loka se virou e ele ficou no escuro e só. Sem tempo para sentir pena de si mesmo, ele apenas pensou:
"Então a batalha contra meu pior inimigo deve continuar!"
Mas não continuou. Esgotado da viajem foi logo adormecendo, na rocha fria, num sono profundo.
Profundo...
Muito profundo...
PROFUUUUuuund...
[...]
Profundo como águas profundas...
Escuras...
Paradas...
Misteriosas...
Por todos os lados água. Escura, profunda e parada. Vinci está nadando lentamente, observando as ondinhas sendo desenhadas na superfície da água (profuuunda...). Move-se para nadar, e, da água, não há som. Mas espere... há som. Uma canção está sendo cantada, por uma voz doce.
Dorme bebê
Que o Tutú vai pegar
Papai foi pro Mar
Mamãe não vai voltar
A trova continuava, repetindo-se enquanto Vinci era tomado por uma tristeza vinda de uma saudade tão profunda quantos as águas em sua volta.
Uma sombra no formato de um enorme peixe surgiu nas águas sombrias (e profundas). A sombra aumentava de tamanho a cada repetição da canção.
Quando estava muito próxima a superfície, Vinci percebeu que não era só um "enorme peixe". Era um tubarão. Era o "Tutú" da trova. Foi tamanha a compreensão que Vinci num "insight" teve pleno conhecimento da lenda do Tutú.
Um tubarão pré-histórico gigante que seria capaz de engolir um barco inteiro como um qualquer engole um peixinho colorido. O Tutú, o terror dos mares. O que por anos assustou os navegadores e impediu que muitos do Povo Livre viajassem para o Sul do Mundo. Ora, o Sul do Mundo naqueles lados era Rivergard, e há muito os homens tinham ocupado aquelas terras, que eles chamavam (antes da ocupação) de Selvagens. Teriam eles perdido o medo e enfrentado da fera? Sim. Mas a fera realmente existia? Vinci achava que não. Mas ela estava ali. Na água profunda onde ele nadava sem nenhuma proteção. E se aproximava. A tristeza misturou-se com o medo gerando um sentimento terrível.
Um redemoinho anunciou a chegada da barbatana dorsal, do enorme peixe, a superfície. Era grande e escura. Sua sombra atingiu Vinci mas não escureceu sua visão. Luz veio com a sombra da barbatana do, provável, Tutú, ao mesmo tempo que uma corneta soou nos seus ouvidos. A luz era os primeiros raios do Sol que atingiam as instalações dos (prováveis) Tubarões de verdade, onde ele dormia sobre a pedra fria. E a corneta declarava o início de mais um belo dia de trabalho árduo para os Tubarões - os senhores de Benna, a Ilha Amadiçoada.
Vinci sentou-se na pedra fria com a sensação de que não tinha dormido mais que dez minutos - tinha dormido em torno de três horas na verdade. Pigarreou por causa da frieza e olhou para a pequena árvore um pouco a frente. Um pequeno pássaro pousado num galho, celebrando a aurora com a alegria e esplendor. Os céus estavam pintados com as cores do crepúsculo em pinceladas leves e delicadas - frias. As cores eram mágicas. Uma visão que há tempos não tinha - sempre acordava depois do amanhecer. Trouxe-lhe lembranças da infância, de quando a recém-descoberta beleza do nascer do Sol o fazia acordar primeiro que seu pai e seu tio só para contemplar o Sol nascendo no Leste. O que sentia nesses momentos? No que pensava?
Sentimentos borrados de alegria e imaginação. Uma aquarela que pintava uma vida plena e livre.
Era assim agora? Não. Não chegava nem perto. Mas havia paz. Paz em seu coração, serenidade. Lembremos: estava preso, sozinho novamente, longe de casa, longe da família (o pai), longe de tudo que conhecia como "normal". E estava em paz e sereno. Como era possível? Não sabia. Sabia que estava finalmente fazendo o que era para ser feito. E isso bastava por enquanto.
A cela ficava num canto afastado e ele não tinha visão de nenhum, provável, tubarão, por enquanto. E a paz continuava. Mais pássaros juntaram-se aquele e cantavam juntos. Vinci sentiu-se novamente como na noite passada.
(Então isso é inspiração?) - Perguntou a si mesmo - seu pior inimigo, que as vezes podia ser seu amigo.
E começou a recitar uma orla que podia muito bem ser do tal Lean Orvalho "não sei de quê" que ele ouvira falar. Mas não sabia. Soava em sua mente, mas não lembrava de já tê-la ouvido. Era isso que soava na mente de Vinci Laipotem:
(Naquela manhã triste e solitária, mas pacífica e serena e...
inspiradora.)
"Rainha Alvorada
Seja sua a honra desta manhã
Possa seus raios cristalinos
Cobrir os mais distantes horizontes
Possa os pássaros celebrarem
Em companhia dos nobres ventos celestes"
Estamos indo pr'o amanhã
Eternamente a caminhar
Pelos vales eternos
Pelos caminhos solitários
Pelos erros repetidos
Pelas vozes caladas
Encontramos nosso caminho
Sob a luz da alvorada
O canto dos anjos
Um milagre corriqueiro
A sabedoria infinita
Da imagem ao cheiro
Desde as eras primordiais
Até o tempo atual
Sempre se repete
Nunca é igual!
Eterna luz da alvorada
Sinfonia do amanhecer
O despertar dos sonhos
O chamado pra viver
Depois de uma noite escura
A manhã está salva
O céu cobre seu medo
Luz da Estrela-d'alva
Não é só outro dia
É a Sinfonia do Amanhecer
O despertar dos sonhos
O chamado pra viver
Mas ainda estamos aqui
Outro dia sempre vai chegar
Nós cantamos e dançamos
Deixamos nossa vida nos levar
Sempre seguindo em frente
Longas terras deixadas pra trás
Sempre a espera de um novo dia
Sempre desejando um a mais
Os pássaros continuariam a sinfonia em homenagem a Rainha Alvorada mas Vinci não ficaria para ouvir a apresentação dos "Pássaros do Crepúsculo".
Um homem grande, vestido de preto, apareceu. Destrancou a grade e o pegou pelo braço.
- Vamos lá cotovia. Hora do abate.