Tinta & Pena • 21

Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Oito

Sombras Noturnas Soturnas

A casinha da senhora era simples, o chão de terra batida. Se acomodaram em duas espécies de sofá. Cobertos com couro velho de animal. A sala estava numa escuridão crescente.

- Podem ficar a vontade jovens viajantes-deixe eles Mãe, deixe, deixe - Disse a anfitriã - Estamos em tempos ruins nessas terras, - continuou - não é bom jovens, como vocês, fiquem andando por aí a noite... nesses dias maus...

Então parou de falar. Estava sentada num banco alto próximo á janela. Que estava aberta, assim como a parte de cima da porta. As sombras espalhavam-se lá fora.

- Vejam. Lá vão eles. - Disse num tom sonhador.

De onde Vinci e Flecha estavam era possível ver do que ela falava. Sombras voavam no céu distante. Não era possível dizer, exatamente, o que eram, mas Vinci pegou-se pensando em Ciquem e Delaina. Não pela primeira vez, tinha visto (ou imaginado) uma sombra sobrevoando as montanhas na Terra do Gelo pouco antes de entrar no Salão dos Portais e encontrar Bobby.

- O que são? - Perguntou Flecha. Nenian e Lin se inclinaram para olhar pela porta. Observaram curiosos as sombras aladas não deixando de notar que algumas estrelas já tinham acordado.

- Não sei, meu jovem. Só sei que são más. Sinto aqui. - Disse pondo a mão aberta sobre o peito.

Então Nenian fez a pergunta que realmente importava:

- Onde estamos?

- Já tinha visto em seus rostos que estavam perdidos. Era impossível não serem "estranhos". Estamos na Ilha Antiga. - Disse a mulher que ainda procurava no céu as sombras que julgava serem malignas - tinham sumido.

- Em Benna do Leste? - Perguntou Nenian.

- Sim, a Amaldiçoada. - Disse e estremeceu como se tomada por um frio profundo.

Não seria mentira dizer que eles sentiram o coração acelerar - pelos menos Lin e Flecha. Nem que ficaram entusiasmados com aquilo. Como jovens ao verem um brinquedo "assustador" num parque de diversões. Mas quando o perigo realmente chegasse o medo substituiria a empolgação. Sem dúvidas.

Nenian estava pálida. Parecia ser a única que realmente sabia o que aquilo significava. Flecha sabia muita coisa sobre a terra e as plantas, mas pouco sobre a história antiga de River. Lin sabia muito sobre cavernas, pedras preciosas, água (rios e lagos), e alguma coisa sobre armas. Mas também pouco ouvira sobre o passado distante de Dreamenin, principalmente por que aquela parte da história nos envolvia, sim nós o Povo Livre, os Humanos. E Vinci, como vocês provavelmente desconfiam, sabia tanto sobre o passado daquela terra quanto nós aqui. Mas sabia que o Professor Galhopula estivera lá em Benna "A Antiga", "se aquele velho realmente falou alguma verdade" pensou, mas achava que sim. SABIA que sim.

Mãe se sentara abaixo de sua dona de cabeça baixa. Agora levantava a cabeça e olhava curiosa para todos.

Meu nome era Felícia da Nascente, há muito tempo atrás. Hoje pode ser "Infelícia do Poente". Sou amaldiçoada por viver em Benna. - Disse a dona de Mãe. Seguida pela apresentação de cada um deles. Ficou intrigada com os nomes dos lugares de onde vinham nossos amigos.

- A senhora disse que estamos em tempos sombrios e tem razão - Disse Nenian levantando-se e olhando brevemente para o céu, em busca das sombras aladas, nem sinal.

- O Vazio atacou Rivergard pelo menos pelo Sul, - continuou ela - e sabe-se lá mais por onde. Nós quatro formamos um Gunpix e chegamos aqui por um dos portais antigos do Salão dos Portais. É sabido que o Hexágono da Lei manda jovens aspirantes aos poderes por uma dessas portas, e eles precisam retornar a Lepernitor vitoriosos. As Ingunpix's sempre os mandam para lugares onde alguém ou alguns precisam de ajuda. Nos encontramos próximo a sua casa, então parece evidente que precisamos ajudar vocês: Felícia e Mãe.

Os olhos de Felícia brilhavam. Toda aquela história de "Pix's" e "Salão dos Portais" e "Hexágono da Lei" era tida por ela, e pelos demais habitantes de Benna, como um Bem Fantasioso. Um Bem bom demais para ser verdade. Ou que estava muito longe para alcançar uma ilha desprezada por um passado sombrio.

Então os Poderes ainda se lembram de nós... - Disse Felícia voltando a tremer, uma lágrima desceu rapidamente pelo olho esquerdo. - Não somos "Os Esquecidos" como todos diziam... (...) (...) (...) Eu... Eu sempre tive fé (fazia gestos enfáticos com a mão). Nunca me deixei levar. Sempre tentei ser uma pessoa boa... Nunca perdi a esperança, nem mesmo quando Leogue se foi. E os meus filhos também... dois meninos, gêmeos. Levados pelos Tubarões. Aqueles desalmados...Vivo por que respiro, e respiro por pouco tempo.

Flecha se levantou.

- Precisamos de fogo boa senhora, a noite está completa.

- Sim, como eu fui m'esquecer - Dizia ela levantando-se.

- Não, pode deixar comigo. Continue - Disse Flecha servindo-se da lenha que ela tinha pego e carregando a rústica lareira dela.

- Quem são os tubarões? - Perguntou Vinci.

- Homens cruéis. Muito cruéis. - Respondeu Felícia - Dizem-se donos da Ilha. - continuou - Dizem que somos um povo amaldiçoado e devemos pagar por nossos pecados. Acham-se nossos carrascos. Confiscaram nossas terras, tomaram nossos homens para seu exército ou trabalho escravo, e nos fazem trabalhar pelas migalhas que caem de suas mesas. Nós que somos velhas de mais para seus propósitos nefastos.

O fogo começou a queimar e ela continuou.

- Por todos estes longos anos eu sonhei com o dia que veria minha família novamente. Meu marido e meus filhos. É tudo o que desejo. Se vocês, meus amados, são enviados do Criador, só podem estar aqui para isso. Ele, e só Ele (lágrimas subsequentes) sabe. (...) O quanto tenho sofrido durante todo este tempo (mais lágrimas).

A luz da lareira, acesa por Flecha, lançava sombras nas rugas em sua face. E coloria de fogo os envelhecidos cabelos brancos de Felícia.

Não há dúvida que estamos aqui para isso. - Vinci ouviu-se dizendo.

Todos, com exceção de Felícia, olharam para ele.

Ela começou a chorar ruidosamente, a despeito das lambidas de Mãe em suas pernas.

Vinci sentiu-se mal. Achou que tinha falado a "maior besteira do mundo". E refletiu que a família dela poderia já estar morta há anos. Ele não podia afirmar que iriam encontra-los - mas acabava de fazer isso. Pensou em consertar a coisa mas não conseguiu dizer mais nada. Até pensou em dizer: "Talvez... ou pode ser que..." mas simplesmente não saia nada mais de sua boca.

- Certamente estamos aqui para ajuda-la Felícia. De uma forma ou de outra. - Fez Nenian o que Vinci não conseguiu.

- Mas é uma pena, gente tão importante em minha casinha e eu não tenho nada a oferecer, só estas batatas que são poucas e ruins. - Disse Felícia ainda chorando.

Vinci sentiu-se tocado por aquele "importante". Não se achava importante. Tinha consciência que, não muito tempo atrás, não passava de um, mal, jogador de Coco Seco. E agora tinha uma "importante" e, pelo visto, difícil tarefa a cumprir. As sombras aladas, a pobreza, a tristeza de Felícia, a Ilha Amaldiçoada, tudo isso se misturava e ecoava dentro dele no rítmo da batida do coração.

- Não se preocupe conosco. Trouxemos provisões para alguns dias. - Disse Lin que até agora estava com cara de indiferença.

- E vamos dividir com a senhora - Emendou Flecha. Recebendo um olhar reprovador de Lin, que logo foi abrandado por um olhar "orientador" de Nenian.

E foi assim que conheceram Felícia e Mãe.

As duas que tinham um laço forte entre homem e animal. Formado pelos tempos difíceis que passaram juntas. Quantas vezes, nos dias em que estava doente ou fraca demais para trabalhar, Felícia não se alimentou unicamente da caça de Mãe? Que caçava nos campos "pertecentes" aos Tubarões. Onde certa vez fora ferida por uma flecha de dente de Alicriu (um crocodilo-do-mar). Trazia uma cicatriz que era coberta pelos longos pêlos dela.

O vento soprava forte a medida que a noite ia se aprofundando. Tiveram de fechar a porta e a janela para não apagar o fogo. O que acabou acontecendo de qualquer forma. Conversaram muito, pois a noite tinha apenas começado. Foi nessa conversa que Vinci ficou sabendo um pouco da história de cada um deles. E vice-versa. Ficou sabendo como Nenian e Flecha tinham se encontrado na Lagoa dos Patos e pego uma estrada errada indo parar na cidade rochosa de Hanibrake, onde havia muita agitação referente ao caso em Mastro Forte, mas com a ajuda de Hunbruk tinham pego a estrada certa e atravessado as terras geladas até suas Inpix's na Terra do Gelo. Soube também como Lin tinha seguido pelas florestas altas. Aquele lugar onde ele (Vinci), Ciquem e Delaina encontraram Martha e Maria as duas mothinas encrenqueiras. Lin tinha subido a nado o rio Sem Rumo até quase sua nascente próxima a Terra do Gelo. Pois era um excelente nadador, mesmo contra as correntes. Vinci os contou a aventura que tivera para chegar até o Salão dos Portais, essa que conhecemos bem. Todos ficaram impressionados, até mesmo Lin que tentou demonstrar o contrário. No íntimo Vinci até que agradecia agora aos contratempos, que o fizeram ter mais respeito perante seus amigos.

Felícia ouvia tudo interessada, mas não demorou muito e já cochilava com o queixo colado no tórax. Nenian foi a primeira a notar e anunciou que todos deviam falar baixo.

- Acho que era bom dormirmos também... - Ia dizendo ela.

- Sem comer! - Entreviu Flecha o que rendeu um suspiro a Felícia. Mãe de vez em quando dava uma "cheiradinha" nos hóspedes mas logo voltava aos pés da dona. Estava cansada do "show vip" que tinha proporcionado aos viajantes.

- Tudo bem vamos comer, mas lá fora para não fazer barulho. - Disse Nenian, que Vinci reconhecia como a verdadeira líder do gunpix.

- Oba! Jantar sob as estrelas! - Exclamou Flecha com sua voz estridente que não parecia saber o significado da palavra silêncio.

Vinci abrio a porta com cuidado e foram todos lá pra fora. Com exceção de Mãe, que permaneceu fazendo companhia a dona que dormia.

Levaram uns banquinhos toscos de madeira e os puseram no quintal de Felícia. O vento soprava calmo. O silêncio era pleno. Nada além do som do vento nas folhas sombrias. Nenhuma luz ao não ser a que vinha do céu. Das estrelas e de Silan (A Lua de Prata) em sua faze minguante, provavelmente despedir-se-ia de Rivergard aquela noite dando lugar mais tarde a Navian (A Lua de Ouro).

Comeram de suas provisões calados contemplando as estrelas. Que nunca pareceram tantas nem tão perto para Vinci. Nunca pareceram tão bonitas a ele. Mas lembraria-se-ia daquela noite com saudades sempre que visse a faze minguante de Silan.

Depois do jantar Nenian e Flecha arriscaram algumas canções. Flecha retirou um pequeno alaúde de sua bolsa e começou a dedilhar enquanto Nenian cantava uma canção nindana de autoria de um olíre de Solvim.

Ó Silan linda de prata

És tu quem ilumina a noite que mata

És tu a mais bela na noite de Ornata

Rios que banhaste vivos ficarão

Flores que curaste frutos nascerão

Fontes em que brilhaste nunca secarão

Vidas que olhaste novas se farão

Ó Silan nobre Rainha

Quem dera pudesse fazer-te minha

Para não nadares tão longe e sozinha

Noites que embelezaste nunca serão esquecidas

Orlas que criaste sempre iluminarão minha'vida

Mas vá minha querida

Se precisas realmente ir

Faça curta a despedida

Quando voltar... Estou aqui

Uma nindano cantando a noite sob a luz de Silan (refletindo em seus olhos) era algo que poucos homens já tinham visto. Os que viam jamais esqueciam. Um fenômeno tão singular que podia ser comparado a uma manifestação artística da própria natureza, não de um produto-da-terra.

A voz de Nenian tinha um tom soprano e era afinada. Para Vinci era perfeita. Mas Nenian sabia o quanto era limitada para os "padrões ninandos".

Depois Flecha, como que para "quebrar o clima", cantou uma canção infantil dos mongues sobre como era bom correr, subir em árvores, colher frutos e brincar em noites de Luas. Uma canção um tanto animada.

Lin se afastou para ficar sozinho. Vinci ficou ali no meio dos dois menestréis se divertindo. Estranhando um pouco, claro, mas se divertindo. Se divertindo pra valer. Intimamente.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 07/05/2010
Reeditado em 20/11/2010
Código do texto: T2243576
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