Tinta & Pena • 19
Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Seis
A Ingunpix
Os caminhos entre o Salão dos Portais pareciam infinitos. O Gunpix de Silan seguia Lepernitor de perto passando por portas e mais portas (e mais portas e mais portas...). Vinci prestava atenção em todas elas com muita curiosidade, se perguntava qual delas seria a "Ingunpix". Logo reparou que nem todas as portas eram alcançáveis, pelo menos, não pelos meios convencionais. Algumas pareciam até mesmo intransponíveis tendo em vista seu tamanho, havia uma que só um rato passaria por ela sem problemas. Enquanto outras talvez fossem destinadas a gigantes. Algumas eram perfeitamente redondas, outras parecia só haver a metade de uma porta quadrada. E o mais estranho de tudo - havia portas no teto. Estas porém não seriam usadas por um longo tempo, uma vez que o gelo as envolvia completamente - seriam usadas, quem sabe, quando a Terra do Gelo deixasse de ser "do Gelo". Passaram por uma de madeira bruta com grossos pregos a mostra, e então Vinci focalizou uma muito estranha (oh, como se todas as outras não fossem, de alguma forma, estranha). Era de um metal muito diferente do que ele estava acostumado, e brilhava em movimento constante nas bordas, estava escrito num display digital de letras vermelhas (que piscava): Somente o pessoal autorizado (ah, como se as outras fossem "abertas ao público").
- Sr. Lepernitor... - Disse Vinci num impulso.
- Sim... - Respondeu ele.
- Todas essas portas... Todas aqui... Por quê?
Era uma pergunta bastante óbvia, mas apenas Vinci via-se na obrigação de fazê-la. Pois estava sempre com aquela sensação de ter perdido "alguma parte do filme" e não queria perder mais nada.
- E todas aquelas estrelas no céu, por quê? - Respondeu Lepernitor com um sorriso. - Mas se o que quer saber é aonde elas levam. A varios lugares. Distantes e perto, bons e ruins, a praticamente qualquer lugar de muitos universos. Mas certamente a maior parte delas nunca se abriram nem nunca se abrirão. Algumas se se abrirem será um mal pior que o que o vazio, outras, quem sabe, um bem sem igual... E por falar nisso chegamos.
Estavam parados diante uma porta prateada-azulada de pedra.
- Primeiramente iremos entrar eu e Vinci, que será, o líder do Gunpix, o Donpix - Dizia Lepernitor - caso ele passe no teste. Os demais serão chamados um a um e também serão submetidos ao teste.
O coração de Vinci palpitava. Um teste? Mas ser tirado de sua cidade natal em uma ave gigante (sem mencionar o fato da cidade ter sido atacada), quase ser morto por insetos gigantes, e chegar sozinho numa terra inóspita portando nada mais agressivo que uma pena de sinalã, tudo isso não era um teste suficiente? Pensava ele. Para ele depois de tudo isso ele já podia ser o que quisesse ali.
Lerpenitor entrou e Vinci o seguiu. A sala era perfeitamente redonda, como um iglu. Porém as paredes não eram de gelo, o que, nossa, era um alívio. Havia espelhos nas paredes. Olhando melhor não "havia espelhos" mas as próprias paredes ERAM espelhos. Pelo menos de início tudo que Vinci viu foi o seu reflexo (que "hunks! como estou magro!") e o de Lepernitor. Não havia portas nas paredes, com exceção daquela pela qual tinham entrado. Que, por sinal, agora estava fechada, e vejam só, era um espelho também.
- Vinci Laipotem, - Começou Lepernitor - antes de seguir em sua jornada. Antes de conquistar colinas e vencer dragões. Antes de salvar donzelas e proteger reinos. Antes de viajar por planetas e salvar galáxias. Antes de comandar e derrotar exércitos. Antes de salvar o mundo das garras do tirano. (Vinci não entendeu tudo que ele falou, termos como "galáxias" para ele, e para todos os outros habitantes de Rivergard diga-se de passagem, eram desconhecidos). Existe um inimigo que precisa ser derrotado antes de todos os outros. Se você vencê-lo, terá grandes chances de vencer os demais. Certamente não é esperado que você o derrote definitivamente, pelo menos não agora, não tão cedo. Mas chegou a hora de vencer pelo menos uma ou mais batalhas. Pois mesmo os que tiveram grandes glórias e vitórias sucumbiram ao poder deste terrível inimigo. Este inimigo, meu amigo, é você.
Na última sílaba do "você" os espelhos deixaram de ser espelhos - pelo menos no sentido clássico da palavra. Nuvens e ondas trêmulas turvaram a superfície das paredes espelhadas. Em questão de segundo dezenas de cenas passaram nas paredes, e , pasmem, as imagens tinham som.
Um menino só olhando o mar em cima de uma grande rocha. Um menino só correndo nas areias da praia ao encontro de alguém - que não aparecia. Um menino só contemplando o limite de sua área conhecida, um bosque por trás das montanhas protetoras de Mastro Forte, e o desejo de adentra-lo no coração. Um menino chorando pela mãe que nunca conhecera. Um menino acordando no meio da noite, após um pesadelo com ondas marinhas gigantes destruindo uma cidade que não era a sua. Um menino que acordava sorrindo depois de um sonho, em que voava nas asas de uma Sinalã em direção ao horizonte crepuscular. Um jovem rapaz trabalhador e obediente. Um rapaz que ainda chorava pela mãe e por alguém mais que nunca conhecera. Um rapaz que gostava de ficar acordado até mais tarde, só pelo prazer de perambular sozinho sob a luz de alguma lua, sonhando com "terras distantes". Um rapaz que tinha poucos amigos - sejamos sinceros - um rapaz que não tinha nenhum amigo íntimo. Um rapaz que tivera sua "pacata" vida virada num único dia, e agora perto do monumento em homenagem a Gornand, o Corajoso (Sim, "Pela bravura e determinação nas Terras Selvagens e nos Mares do Sul"), tinha uma confusão mental, no horizonte marinho manchas negras se aproximavam.
Muitas outras cenas passaram naquela tempestade de memórias. Mas essas foram as que mais tocaram Vinci. Os momentos em que ele estava só. Com ele mesmo. Com o seu maior, e pior, inimigo. Sim ele era o menino e o rapaz das imagens.
- Vinci Laipotem. - Falou Lepernitor - Está pronto para fechar a porta do passado e abrir a do futuro? Ciente de que tem muito o que aprender, muito o que mudar e muito o que fazer?
Vinci estava de joelhos e de olhos fechados. As imagens das paredes tinham cessado, mas as da mente não. A tempestade continuava com força total em sua mente, os olhos fechados só as tornavam mais reais. E ajudavam as lágrimas a escorregarem para fora. Fazia frio no local, afinal era a Terra do Gelo, mas o frio que Vinci sentia agora era superior ao da temperatura ambiente.
Demorou cerca de vinte minutos para vim a reposta. Durante os quais Lepernitor esperou pacientemente, já tinha esperado muito mais por outras respostas para dizer a verdade. Por fim veio o tão esperado:
- Sim. - Disse Vinci Laipotem, filho de Trintem. - Estou pronto... para começar.
- Parabéns você passou no teste filho do Povo Livre, da Linhagem de Lean de Dol Sirim. - Disse Lepernitor - Chegou a hora de atravessar a Ingunpix.
- E onde ela está? - Perguntou Vinci com a voz de alguém recém despertado.
Lepernitor respondeu baixando levemente os olhos e a cabeça para o chão. E então devolveu a Onpix de Vinci, aquela com o cavalo-marinho entre as ondas, que ele havia perdido na Inpix - A porta ao conhecimento. No chão, que era de mármore, havia o desenho exatamente no centro, uma lua, com inscrições numa língua desconhecida circundando-a. Vinci não tinha idéia do que aquilo poderia significar. Não tinha idéia de como aquilo podia ser uma porta também já que não tinha elevação nem da altura de um milímetro. Mas sabia como abri-la. No centro da luz o espaço hexagonal já conhecido dele. Então ele não teve mais dúvida. Encaixou a Inpix na Ingunpix e caiu no infinito.
Lá fora, Lin, Nenian e Flecha esperavam impacientes.
- Por que um dos Ladrões-de-Terra Livres para ser o Donpix??? - Perguntava Lin para ninguém especificamente, enquanto andava de uma lado para o outro - seus longos cabelos balançando a cada passo.
- O Antigo não erra na escolha, jovem findolino. - Respondeu Nenian sem olhar para ele. Estava ainda com raiva, (e com razão) dele.
- Isso só piora as coisas - Respondeu Lin num tom alto - Nota-se que ele não passa de um imbecil, está escrito na cara dele. - dizia ainda gritando - E não venham me dizer que não leram, ou são tão tolos quanto ele.
Flecha ia falar alguma coisa mas Nenian interveio.
- Pode ser que sim... ele pode ser um copo vazio mesmo. - Disse ela, ainda sem olhar pra ele - Mas são os copos vazios os melhores para se encherem com as melhores e mais frescas bebidas.
Ele lançou-lhe um olhar que só podia significar: "Deixe de ser ingênua".
- Apenas os sacos vazios são levados pelo vento. - Disse e então voltou a encostar-se na parede de braços cruzados e cara amarrada.
- Mas nem todo vento leva à um mal lugar - Disse Nenian , depois do que ouviu o seu nome. Lepernitor a chamara. O que disparou seu coração imediatamente. Ela seria a próxima a atravessar a Ingunpix.
Mas antes viria o teste.
Que viesse então.