Tinta & Pena • 15
Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Dois
Bobby
Era uma noite de Silan.
Aquela em que Vinci finalmente atravessou sua Inpix - a porta ao conhecimento. Ele sabia que em algum lugar, acima das nuvens da tempestade, que cobria a Terra do Gelo, Silan lançava sua luz azul-prateada-estelar. Não que ele pudesse a ver, mas sabia que só em noites de Silan um penã de Sinalã brilhava com a luz de Silan. No corredor em que se encontrava havia novas provas disso. De ambos os lados, o corredor era iluminado por tochas frias, tochas feitas com penas de Sinalãs, muito usadas em Rivergard nessa época. Aquelas, porém, eram especiais, o cabo em que as penas estavam fincadas não era de madeira, mas de gelo. Vinci caminhava ofegante, estava cansado, bem cansado na verdade. Mas não se faria a cortesia de parar. Não ali. Não naquele momento. Enquanto andava, percebia presenças no corredor. Não eram humanas, nada além de desenhos na parede. Nas duas paredes, iluminadas pelas tochas frias, haviam desenhos. Feitos em baixo relevo na rocha fria, um trabalho muito habilidoso. Muito do que via era hieróglifos, ou figuras de homens, boguinites e seres alados, estes ele julgava serem os nindanos. Havia exércitos de homens montados em unicórnios-marinhos, portando longas lanças, em combates no mar contra monstros, como caranguejos e lagostas gigantes, alguns lembravam as aberrações que ele tinha visto da praia de Mastro Forte. Mas um desenho em especial lhe chamou atenção.
Estava lá num mar agitado um navio. Um homem no navio no mar agitado. Oito colunas, que tinham a base nas águas, circundavam uma mais espessa. A esse pilar, maior, o navio seguia. Um raio de trovão descia do céu. As colunas que brotavam do mar, seguiam a uma altura indefinida. Vinci até mesmo retirou uma tocha fria, de seu suporte prateado, e iluminou tão acima quanto pode, até fica na ponta dos pés. Não havia fim dos pilares. Já tinha ouvido falar neles, mas nunca os tinha visto gravuras. Eram os Pilares da Criação. Ele sabia disso. Mesmo os desenhos dos pilares inspiravam um temor reverente, como alguém diante de uma montanha.
Mas o caminho continuava. Vinci o seguiu por um longo tempo. Não soube ao certo quanto tempo tinha-se passado quando atingiu o Pátio da Fonte (como se referia a ele mentalmente). Atingiu ao passar por um arco sem porta. "Ainda bem" pensou ele, "Nada de Onpix's desta vez". O Pátio da Fonte era mais iluminado que o corredor. Não eram tochas frias, mas luzes mais fortes, embora também frias. Vinci olhou para a cima e viu o que iluminava o lugar tão bem. Estalactites fluorescentes como lâmpadas.
Não foi por acaso que ele chamou o lugar de Pátio da Fonte. Havia uma fonte no pátio. Uma linda e enorme fonte. Nela, criaturas fantásticas, esculpidas em gelo, formavam um círculo em torno de uma maior, lançavam jatos d'água que se encontravam no meio refletindo como se feitos de cristais na luz das estalactites. As criaturas variavam em espécies marinhas. A do centro era um golfinho com, ao que parecia, uma coroa na cabeça, provavelmente um rei de outrora, pois lançava um jato maior, do orifício respiratória, que subia acima do ponto de encontro dos jatos das criaturas menores, caindo sobre todos em gotas brilhantes. Vinci olhava para aquilo maravilhado. Quem imaginaria? Num lugar deserto como aquele, existiria dentro das rochas uma beleza como aquela? Já tinha visto algumas coisas bonitas na vida, algumas garotas talvez encabeçassem essa lista. Mas aquilo era diferente. De alguma forma diferente. Talvez não superior, talvez não inferior. Mas ainda assim diferente. Não se sentia naquele mundo em que estava acostumado a viver acordado. Não no mundo rotineiro em que todas a luas, e crepúsculos passavam completamente despercebidos pelos caminhantes apressados e preocupados. Estava num mundo em que algo não precisava ter uma função, uma utilidade ou um lucro, para ser criado, com trabalho árduo e dedicação, a beleza já era um motivo mais suficiente. Estava num lugar de sonhos. Não havia dúvida. Numa parte do mundo em que os sonhos ainda eram preservados. O Vazio estava longe, mas Vinci sentiu uma tristeza profunda em pensar que ele pudesse alcançar aquele lugar. Uma tristeza ainda maior que a que sentiu com a queda de sua cidade natal. Estava lá a menos de dez minutos e era como se sempre o conhecesse. Desde suas primeiras lembranças e imaginações. Lágrimas escorreram em sua face. Se aquilo que chamavam de Vazio algum dia profana-se aquele lugar, ele sentia que nesse dia todas as esperanças, para todos, estariam perdidas.
- Não chore bobão, você fica parecendo um bobão assim... chorando que nem um bobão!
Instintivo Vinci enxugou as lágrimas e virou-se para o dono daquela voz. Não seria exagero dizer que assustou-se, mas talvez não tanto o quanto você se assustaria, aí em seu lar confortável. Pois ele já tinha visto uma ou duas coisinhas desde que saiu de Mastro Forte. O dono da voz era um urso branco (não era chamado de polar, pois, apesar do clima do lugar, a Terra do Gelo não ficava no pólo do mundo, não ficava nem mesmo na extremidade do continente, ficava no centro de Rivergard).
- E então bobão vai ficar aí, olhando pra mim que nem um bobão, é bobão?
- É, é, é... - Era tudo o que saia de Vinci, que fazia dias não falava com ninguém e quando finalmente encontrara alguém é um urso (Tá certo que última pessoa com quem falara era um grilo cego, mas isso não vem ao caso). Vinci olhava para o urso branco e gordo, de uns três metros de altura, vestindo um casaco felpudo e enormes botas de couro. Como era mesmo o nome que Galhopula falara... - Sr. Lerpernitor? - Disse por fim.
- Ora... mas só sendo um bobão pra achar que eu sou aquele velho rabugento. - Disse o urso coçando a axila direita com suas longas garras.
Tudo bem. Ele não era Lerpernitor, isso já era um ponto bastante positivo. "Ufa!" pensou Vinci.
- Perdão... Meu nome é Vinci Laipotem filho de Trintem, sou de Mastro Forte... Fui mandado pelo Professor Galhopula na Lagoa de Narian para ver o Sr. Lerpernitor...
- Vinci, prazer Vinci, bonito nome Vinci, - interrompeu o urso branco - mas eu ainda prefiro bobão, então bobão quer ser meu amigo bobão? (...) Dá aqui um abraço!
Sem espera resposta o urso avançou e suspendeu Vinci do chão num verdadeiro abraço de urso.
- Prazer Vinci meu nome é Bobby. Vamos ser amigos para sempreeee! - Disse intensificando o abraço.
- Prazer... Bo... bbyyyyyyy... ai... um momentinho bobb... tá me machu---cando...
- Desculpa Vinci, Bobby não queria machucar, amigos não machucam os outros. Amigos são bonzinhos, dão abraços e carinhos. - Disse o urso Bobby pondo Vinci no chão assanhando-lhe os cabelos.
- Já que a gente agora é amigo Bobby - Disse Vinci quando conseguiu respirar - Me diz onde é que estou.
- Você está no Salão dos Portais, sim, O Salão dos Portais
feito de pedras e corais.
- E é aqui que mora Lerpernitor?
- Sim, o velho rabugento mora aqui sim - Disse Bobby baixinho.
- E onde ele está?
- Não sei. Está em algum lugar nesse mundão, ou quem sabe em outro... o velho não para quieto. Vai pra lá, vem pra cá, sobe, desce, entra numa porta, entra noutra. Ele já foi chamado e está perto de chegar, tem muita gente querendo falar com ele aqui esses dias. Gente importante vindo do mundo todo. Alguma coisa aconteceu num lugar bem longe daqui. Uma coisa ruim, muito ruim.
- Acho que essa parte da história eu conheço bem - Murmurou Vinci.
- Conhece? Então conta aqui pro seu amigo Bobby - Disse ele apertando Vinci com um braço.
- Coisa ruim Bobby, muito ruim. Um mal antigo que chamam de Vazio retornou para trazer a destruição de tudo, e começaram com minha cidade. - Falou Vinci num tom sem emoção, afinal já estava cheio daquela história toda.
- Bobby sente. Bobby sente muito mesmo... - Disse ele dando mais um abraço em Vinci.
E então de repente começou a cantar o que parecia uma cantiga bem antiga.
Quando um ser criado se rebela
E reclama para si a sua vida singela
De sua própria alma passa a ser senhor
Não há mais nenhum poder sobre ela
Que a livre das sombras que perseguem a luz
Não recebe a vida que sempre reluz
Não! Não há mais vida, nunca mais!
Pois poder sobre ela já não existe mais
Que se pode fazer além de lamentar?
Pois só o senhor de uma alma a pode mudar
Sujeita ao acaso ela está
Sujeita ao tempo que a quer matar
Quando silêncio Vinci perguntou:
- Que canção é esta?
- Não conhece mesmo a orla do Mal Antigo? Puxa você é um bobão mesmo né bobão? Dizem aqui que essa é origem do Vazio. A origem do mal no mundo. Orla do Olíre Lean Orvalho de Primavera. Muito recitado, muito cantado aqui também. Eu que não sou bom de memória, já gravei um motão delas. Mas vamos indo amigão bobão. Você precisa se juntar aos outros.
- Que outros? - Perguntou Vinci surpreso e esperançoso, podia ser que Ciquem estivesse no meio daqueles "outros".
- Os outros que atravessaram as Inpix's hoje em algum lugar. São meus amigões. São bobões que nem você! - Disse dando um tampinha nas costas de Vinci enquanto andavam.
Vinci se perguntava o tempo todo se o urso sabia mesmo o que "bobão" queria dizer. Mas já gostava de Bobby, já sentia o que ele dissera também. Eles seriam amigos para sempre.