Tinta & Pena • 14
Tinta & Pena - Parte 2 - Capítulo Um
Uma Porta Para O Futuro
Os céus estavam agitados.
O vento guerreava contra as rochas lançando projéteis de neve.
Alguém caminhava no meio desta batalha. A neve que caía em volta dele se amontoava nas dobras de seu casaco.
Caminhava com uma certa dificuldade, com uma pena numa das mãos. Nada de anormal nisso se não fosse um detalhe - a pena emitia uma tímida luz azulada. "Mais alguns passos e...", era o que ele pensava. Até que seus olhos foram atraídos ao céu. No meio da tempestade, mesmo naquela escuridão impenetrável, ele viu. Um vulto voando em direção às montanhas. Não fazia idéia do que podia ser aquilo, mas mesmo assim seu coração deu um salto. Seria ele? Não, não era, mas podia ser...
Estamos falando de Vinci Laipotem claro, é ele quem caminha no meio da neve eterna. E esse "ele" em que Vinci pensava era Ciquem, o olíre, que salvara sua vida quando sua cidade fora atacada pelo mal que veio do mar. Desde então Vinci viveu umas aventuras e desventuras esquisitas que jamais imaginara antes. Essas aventuras estão contadas na primeira parte deste conto. Mas para você que não leu, e para você que deseja relembrar, farei um resumo.
Como disse, o olíre (que quer dizer poeta) Ciquem salvou Vinci o levando para longe de Mastro Forte, uma cidade ao sul do continente de Rivergard, quando esta foi atacada por um exército, que podia ter saído de um pesadelo, vindo do mar. Vinci não teve tempo de desperdice de seu pai Trintem, que era um homem de poucas palavras. Ciquem disse que conhecera Trintem, quando ele fora um cavaleiro marinho servindo em Dol Sirim, a Cidade do Mar. Também disse a Vinci que ele precisava falar com um sujeito chamado Galhopula que vivia numa floresta, a Floresta Anã.
Então ambos partiram em busca desta floresta. Depois de alguns contratempos com duas mothinas (que, em poucas palavras, são mariposas humanóides do mal), eles tiveram a ajuda de Elih, um homem que tinha sido capturado pelas mothinas. Ciquem deixou Vinci (nosso herói) aos cuidados de Elih e partiu - pois dizia que tinha muito o que fazer em Solvim e Dol Sirim. Com a ajuda de Elih (o sem sobrenome) e mais tarde de Velminor Lumiero, Vinci finalmente encontrou-se com Galhopula, que o abriu um pouco o leque da história. Vimos no último capítulo o Professor Galhopula dando uma aula de arrogância... digo de história a Vinci. Entre outras coisas ele falou que Vinci precisa ir a Terra do Gelo (uma terra onde era inverno o ano inteiro) e seguir no que ele chamava de Estrada Estreita.
Pois bem, é nelas que Vinci agora se encontra (na Terra do Gelo e na Estrada Estreita), vestindo roupas quentes dadas por Galhopula antes dele partir e bebendo de um líquido vitalizador de um odre de couro de dingue (um mamífero parente do servo), no formato de uma cabeça de gafanhoto.
Já faz mais de dois dias que ele deixou a Lagoa de Narian, onde fica "o Sapato" a casa de Galhopula. E faz mais de um dia que ele pegou a trilha de Lepernitor, indicada numa rocha fincada no chão lá em baixo e atrás agora - na entrada das trilhas das montanhas da Terra do Gelo. O paredão de rocha a sua esquerda parece não ter fim. Não há nada que indique uma porta. A viagem até ali foi tranquila para Vinci, talvez por isso ele não recorde muito esta parte. Afinal são as dificuldades que passamos das quais nos orgulhamos em contar, não as facilidades. O mapa que Galhopula o dera tinha grande participação nesta tal facilidade. Tinha contornado, como Galhopula aconselhara, os charcos do Vale de Fenil pelas altas passagens dos montes, que, ao contrário do que pareciam ser, eram passagens seguras, apesar de desertas. E depois contemplara a brancura das Montanhas Centrais cobertas pelo gelo eterno, onde Vinci se encontrava agora no meio da tempestade.
Foi justamente quando Vinci julgava não ter mais forças para mais um passo que ele viu, na luz de um trovão. Uma estátua de pedra no paredão. Era uma ave de asas abertas, mais uma hora ou menos e ela estaria completamente coberta. Aquilo não era uma porta para Vinci - nem pra ninguém. Mas na falta de uma resolveu investigar. Estava a uns cinco metros do paredão de pedra mas para Vinci foram cinco quilômetros até ele. Nos últimos dois metros a neve, que até então vinha na altura dos joelhos de Vinci, atingiu a cintura. E no último metro até o pescoço. "Vai ver que encontrei a maldita porta afinal". Pensou Vinci esforçando-se para retirar a neve em sua volta. Quando já tinha trabalhado um bocado, foi capaz de ver dois terços da porta. Nela não havia nada escrito, apenas uma cavidade em forma de hexágono. Vinci retirou um colar que trazia no pescoço, uma corrente de prata com um pingente com o mesmo formato da fechadura, uma pedra azul revestida de prata em formato de um cavalo-marinho entre ondas do mar. Vinci lembrou-se de como Galhopula o havia lhe entregado aquela peça que fora de seu pai, há um bom tempo atrás.
Foi logo após o almoço do seu primeiro dia na Lagoa de Narian. Velminor Lumiero entrara no sapato com seu chapéu de palha mascando um ramo de mato. Suas longas antenas sempre "vendo" tudo que vinha na frente. Trouxera notícias e presentes de Moncan-Aron. Entre os presentes uma flor cor vermelho-fogo e gelim (o mel feito pela rainha Celesmina). Dissera que a rainha disponibilizaria um marechal e seus "homens" para segurança da Floresta Anã. Galhopula se irara com aquilo e prometera ir pessoalmente ter com a rainha o mais rápido possível, não deixando de ressaltar a incompetência de Velminor como... bem como profeta. Preparava-se para sair pois dizia que não podia perder mais nem um minuto. "O dia está avançado, logo a noite cairá" repetia Galhopula para si mesmo. Remexia ele em suas coisas lá dentro de um quarto quando reapareceu, pelas folhas de bananeiras, com o colar que Vinci agora tinha em mãos. "Queria lhe instruir mais Folha Verde, mas parece que as abees estão mais sonolentas e preguiçosas que as cigarras... E... Preciso eu ir pessoalmente a alguns deles e os lembrar dos votos que seus antepassados fizeram... Oh povo de pouca memória... Se Troncofirme estivesse aqui... Como pode esquecer a Lei!... Sim Folha Verde aqui está ... aqui em minhas mãos a chave para o seu futuro, o que o Povo Livre chama de Onpix, a chave ao conhecimento. Com ela você abrirá uma das portas para o Salão dos Portais na Terra do Gelo onde Lepernitor tem morada..." Disse outras coisas também claro quando Galhopula começava a falar era quase impossível parar, mas, como estava com pressa, após uma meia hora por fim saiu. Vinci que pensava que se sentiria aliviado na ausência do Professor sentiu-se na verdade um pouco sozinho, Velminor não era chegado em longas conversas, respondeu as perguntas de Vinci com um simples "sim" ou "não".
No fim do dia Vinci resolveu fazer uma caminhada para pensar. Andou por uma trilha até conseguir uma boa vista da região e sentir-se completamente só. Nesse lugar, em baixo de uma Toak, Vinci chorou, chorou como uma criança: sem reservas, sem vergonha, sem resistência. O vento soprava forte, o sol dava seus últimos sinais de vida. Vinci sentia o colar em seu pescoço, a chave para seu futuro. Uma porta abriria-se diante dele ao usa-lo. Para um mundo desconhecido. Suas lágrimas ainda caiam quando a escuridão por fim cobriu o mundo.
Agora lá estava ele diante daquela porta, com a chave (a Onpix) em mãos. "Muito bem futuro, vejamos o que tens em reserva para mim agora". Disse ao inserir o pingente na cavidade hexagonal. Logo uma luz azulada envolveu toda porta. Um mecanismo acima de nossa tecnologia moderna liberou a passagem correndo a porta para dentro da rocha. Uma luz azulada, idêntica a da pena de sinalã que Vinci trazia, brilhava no corredor. Vinci deu um passo retirando a perna da neve que ainda a cobria até o joelho. Uma vez dentro do corredor a porta fechou-se novamente. Todo o barulho da tempestade calou-se.
"Ótimo perdi meu Onpix" pensou Vinci.
Só havia um caminho para seguir agora.
A Estrada Estreita.