O MENINO FEIO
O MENINO FEIO
- Será que há no mundo outro menino mais feio do que eu?
Ele perguntou ao velho espelho pendurado na parede do seu quarto. O espelho não era mágico, mas velho, quase opaco, desbotado pelo tempo. Em nada se comparava àquele da estória de Branca de Neve. Nada respondeu. O menino, persistente, gritou, já que naquele momento estava sozinho em casa.
- Fala, espelho! Fala!
Concluiu, assim, que o espelho sentia-se acanhado em responder, face aos favores que recebia dele, limpando-o sempre, livrando-o da poeira que o vento trazia através da janela. Se falasse, diria a verdade; que o menino era mesmo o único, naquele lugar, o mais feio de todos. Tinha, na verdade, um aspecto de girino, de pernas finas, cabeça volumosa e mais um acentuado estrabismo.
Os seus quinze anos já lhe davam certa maturidade, adquirida no dia-a-dia do ambiente modesto em que sempre viveu. Assim, entendeu a atitude do espelho.
Naquele dia, envergonhado de si mesmo, não saiu de casa. Fingiu se dedicar aos deveres escolares. Trancou-se e chorou muito. Confinado nas quatro paredes do seu aposento simples, só o espelho testemunhava os soluços do seu pranto. Estava ainda mais feio com o rosto franzido e molhado de lágrimas. A indiferença do espelho, naquele instante, acendeu-lhe um ódio tamanho, que o levou a atirar o espelho ao chão, transformando-o em pedaços de cacos de vidro. Não satisfeito, pisou com força as sobras maiores, que se espalharam uniformes pelo piso irregular do seu quarto.
Blasfemou contra Deus e o mundo. Naquela fase de sua vida, já tinha noção de religiosidade. Lembrava-se sempre das prédicas dos Testemunhas de Jeová, que, certa vez, reuniram-se na pracinha da cidade, quando ouviu muita coisa bonita sobre Jesus. E cheio dos conceitos evangélicos, e de ódio de si mesmo, olhou para o alto e indagou aos Céus por que havia vindo ao mundo com aquela aparência estranha, a ponto de ser hostilizado por pessoas inescrupulosas, por onde passava. "Olha o menino feio aí, gente...!" "Que menino feio!" E outros xingamentos desnecessários.
De tanto desespero, cansou e adormeceu.
Uma luz incomum, prateada, tomou o ambiente, clareando outro espelho, agora de um cristal puro, emoldurado de um bronze trabalhado. Ele despertou assustado e notou tudo modificado. As paredes apresentavam outro tom de cor. Havia mais requinte no mobiliário. Até o chão de tijolos comuns parecia de mármore, observou. O espelho, refletindo uma luz intensa, parecia-lhe transmitir alguma mensagem. Temeroso e abismado, aproximou-se lentamente do espelho, tocando-o e alisando a moldura feita de variados e artísticos detalhes. Estava pasmo diante daquela metamorfose. A voz comprimiu-se na garganta, não obstante o esforço desprendido para expressar qualquer palavra. Era o medo de falar com o espelho, que, naquele momento, ofuscava-lhe a visão com uma claridade intensa provocada por um raio de sol incidindo diretamente na superfície lisa do seu cristal. Era tão refulgente como palpitante de indagação. Mas o menino feio, inexpressivo, complexado e tímido não ousara se dirigir àquela maravilha de espelho, tão diferente daquele que havia adquirido numa feira-livre, por um preço irrisório. Permaneceu estático, sem qualquer ação, olhando tudo a seu redor, numa sensação de leveza, como sonhando de olhos abertos. Não entendia aquela modificação. O mobiliário era novo. Até um quadro pendurado na parede, com uma cópia barata da figura de São Jorge e o dragão, apresentava-se reformado.
E o espelho continuava a reluzir um brilho límpido, mas interrogador, alfinetando de flúidos magnéticos o pensamento do menino. Ele entendia como palavras desabonadoras. Ele merecia. Era mesmo um covarde, como parecia ouvir o espelho o qualificando. Experimentava um verdadeiro "suplício chinês", que resolveu desafiar. Tomou-se de coragem e se postou, de olhos cerrados, diante do majestoso espelho e lentamente foi descerrando as pálpebras e não acreditou no que se deparou. Estava transformado numa visão principesca. Era outra criatura, de olhos azuis e brilhantes. A beleza do seu rosto impressionou-o pela forma dos seus lábios e do nariz artisticamente recortados. E emoldurando a sua face, uma cabeleira loura e cacheada se derramava por seus ombros. Ninguém iria mais ridicularizá-lo, pensava naquele momento de glória por que estava passando. Chorou outra vez, mas agora de uma alegria incontida e gritou desvairado:
- Obrigado, meu Deus! Obrigado, meu Deus!
Estava cheio de motivos para aquela satisfação desmesurada. Então, vaidoso, gritou para o espelho:
- Agora, espelho de cristal, diga se ainda sou aquele menino feio, menosprezado, humilhado e carente!
A luz do quarto apagou-se de repente. Alguém bateu na porta do quarto, alertando o pobre menino feio que era hora de acordar para ir à Escola.
O MENINO FEIO
- Será que há no mundo outro menino mais feio do que eu?
Ele perguntou ao velho espelho pendurado na parede do seu quarto. O espelho não era mágico, mas velho, quase opaco, desbotado pelo tempo. Em nada se comparava àquele da estória de Branca de Neve. Nada respondeu. O menino, persistente, gritou, já que naquele momento estava sozinho em casa.
- Fala, espelho! Fala!
Concluiu, assim, que o espelho sentia-se acanhado em responder, face aos favores que recebia dele, limpando-o sempre, livrando-o da poeira que o vento trazia através da janela. Se falasse, diria a verdade; que o menino era mesmo o único, naquele lugar, o mais feio de todos. Tinha, na verdade, um aspecto de girino, de pernas finas, cabeça volumosa e mais um acentuado estrabismo.
Os seus quinze anos já lhe davam certa maturidade, adquirida no dia-a-dia do ambiente modesto em que sempre viveu. Assim, entendeu a atitude do espelho.
Naquele dia, envergonhado de si mesmo, não saiu de casa. Fingiu se dedicar aos deveres escolares. Trancou-se e chorou muito. Confinado nas quatro paredes do seu aposento simples, só o espelho testemunhava os soluços do seu pranto. Estava ainda mais feio com o rosto franzido e molhado de lágrimas. A indiferença do espelho, naquele instante, acendeu-lhe um ódio tamanho, que o levou a atirar o espelho ao chão, transformando-o em pedaços de cacos de vidro. Não satisfeito, pisou com força as sobras maiores, que se espalharam uniformes pelo piso irregular do seu quarto.
Blasfemou contra Deus e o mundo. Naquela fase de sua vida, já tinha noção de religiosidade. Lembrava-se sempre das prédicas dos Testemunhas de Jeová, que, certa vez, reuniram-se na pracinha da cidade, quando ouviu muita coisa bonita sobre Jesus. E cheio dos conceitos evangélicos, e de ódio de si mesmo, olhou para o alto e indagou aos Céus por que havia vindo ao mundo com aquela aparência estranha, a ponto de ser hostilizado por pessoas inescrupulosas, por onde passava. "Olha o menino feio aí, gente...!" "Que menino feio!" E outros xingamentos desnecessários.
De tanto desespero, cansou e adormeceu.
Uma luz incomum, prateada, tomou o ambiente, clareando outro espelho, agora de um cristal puro, emoldurado de um bronze trabalhado. Ele despertou assustado e notou tudo modificado. As paredes apresentavam outro tom de cor. Havia mais requinte no mobiliário. Até o chão de tijolos comuns parecia de mármore, observou. O espelho, refletindo uma luz intensa, parecia-lhe transmitir alguma mensagem. Temeroso e abismado, aproximou-se lentamente do espelho, tocando-o e alisando a moldura feita de variados e artísticos detalhes. Estava pasmo diante daquela metamorfose. A voz comprimiu-se na garganta, não obstante o esforço desprendido para expressar qualquer palavra. Era o medo de falar com o espelho, que, naquele momento, ofuscava-lhe a visão com uma claridade intensa provocada por um raio de sol incidindo diretamente na superfície lisa do seu cristal. Era tão refulgente como palpitante de indagação. Mas o menino feio, inexpressivo, complexado e tímido não ousara se dirigir àquela maravilha de espelho, tão diferente daquele que havia adquirido numa feira-livre, por um preço irrisório. Permaneceu estático, sem qualquer ação, olhando tudo a seu redor, numa sensação de leveza, como sonhando de olhos abertos. Não entendia aquela modificação. O mobiliário era novo. Até um quadro pendurado na parede, com uma cópia barata da figura de São Jorge e o dragão, apresentava-se reformado.
E o espelho continuava a reluzir um brilho límpido, mas interrogador, alfinetando de flúidos magnéticos o pensamento do menino. Ele entendia como palavras desabonadoras. Ele merecia. Era mesmo um covarde, como parecia ouvir o espelho o qualificando. Experimentava um verdadeiro "suplício chinês", que resolveu desafiar. Tomou-se de coragem e se postou, de olhos cerrados, diante do majestoso espelho e lentamente foi descerrando as pálpebras e não acreditou no que se deparou. Estava transformado numa visão principesca. Era outra criatura, de olhos azuis e brilhantes. A beleza do seu rosto impressionou-o pela forma dos seus lábios e do nariz artisticamente recortados. E emoldurando a sua face, uma cabeleira loura e cacheada se derramava por seus ombros. Ninguém iria mais ridicularizá-lo, pensava naquele momento de glória por que estava passando. Chorou outra vez, mas agora de uma alegria incontida e gritou desvairado:
- Obrigado, meu Deus! Obrigado, meu Deus!
Estava cheio de motivos para aquela satisfação desmesurada. Então, vaidoso, gritou para o espelho:
- Agora, espelho de cristal, diga se ainda sou aquele menino feio, menosprezado, humilhado e carente!
A luz do quarto apagou-se de repente. Alguém bateu na porta do quarto, alertando o pobre menino feio que era hora de acordar para ir à Escola.