Tinta & Pena • 12
Tinta & Pena - Parte 1 - Capítulo Doze
Galhopula
A ponte que levava ao lar de Galhopula (aquele sapato) era de madeira flutuante. E aparentemente (para o desgosto de Vinci) não era fixada por nenhuma estrutura ou corda. As águas do Narian estavam agitadas naquela chuva torrencial, que atingia a Floresta Anã naquela noite. O grilo (que era como Vinci pensava nele), não teve dificuldades em "montar" a ponte flutuante. Vinci, por outro lado, hesitava. Mas depois raciocinou que mesmo se ele caísse diretamente no fundo mais fundo do mar, não se molharia mais do que já estava molhado. O que era bem verdade, convenhamos. Velminor corria pela ponte selvagem com certa facilidade. Vinci logo percebeu que era este o melhor modo de passar por ela. Fora algumas paradas para equilibrar-se e uma queda em meio a plantas aquáticas e anfíbios, Vinci chegou muito bem a ilha onde ficava "o sapato".
Quando chegou já não havia sinal do grilo. Então ele seguiu a luz que conseguia ver vindo da casa, talvez de uma janela. A porta ficava na metade do sapato. Era de madeira e estava fechada, mas sem trava. Vinci a empurrou, entrou e fechou-a atrás de si. Então se sentou, exausto, com as costas apoiadas nela. O barulho da chuva ainda era bastante audível. Mas junto com o som do vento e da chuva lá fora, ouvia-se outro som, mais calmo e relaxante. Fez Vinci se lembrar da canção que ouvira o lumiero cantar e tocar mais cedo no coreto. A canção Vinha de trás de uma porta (que era na verdade duas grandes folhas de bananeira fechando a passagem). Vinci levantou-se decidido a falar com o Galhopula de uma vez por todas, embora estivesse bastante cansado. Mas não havia sinal dele além da canção, então resolveu esperar. Na meia luz (apenas uma espécie de abajur de manans estava aceso), ele observou esculturas de madeira, a maior parte semelhante a carrancas e outras de diferentes formas e formatos. Estavam espalhadas por ali, animais ou boguinites eram os mais comuns, gameros, muitos gameros e lumieros. Porém uma peça ali chamou muito a atenção de Vinci, de Mastro Forte. A figura de uma mulher dotada de asas. Pelo menos era isso que sugeria a ele, a peça de cerca de 30 centímetros de altura. Era belíssima. Tão bela que se destacava das demais em sua beleza como Vênus destaca-se na alvorada.
- Por que está aí parado? - Velminor apareceu de trás das folhas de bananeira.
- Estou esperando para falar com Galhopula. - Respondeu Vinci ainda sem conseguir tirar os olhos da escultura.
- Acha que ele vai lhe atender agora? - Perguntou Velminor falando baixo - Não, não mesmo. - respondeu - Hora de dormir meu jovem. Hora de dormir.
Vinci teve uma lembrança desagradável de Martha e suas perguntas/respostas. Num impulso respondeu:
- Posso saber por que ele não vai me atender depois de toda essa correria pela chuva?
- Está cansado - disse Velminor - muito cansado e eu também estou, pois Fenil já vai nascer. Hora de dormir.
Não fosse pelo cansaço Vinci teria discutido um pouco mais, mas seu corpo gritava por uma cama e ele já não conseguia resistir ao pedido. Encontrou o que parecia ser um colchão de palha, mas para Vinci era uma cama luxuosa com travesseiros recheados de penas de cisnes.
- Tudo bem, Sr. Lumiero. Boa noite.
Foi tudo o que disse antes de jogar-se na "cama". Foi instantâneo, já caiu no segundo estágio do sono. Acordou cerca de duas horas depois e ainda podia ouvir a música, mais alta agora que a chuva tinha maneirado. Mas não demorou a voltar a dormir e desta vez caiu num sonho (em um dos sentidos da palavra).
Estava novamente em Mastro Forte naquela manhã em que dirigia-se a oficina de redes despreocupado. Estava sozinho ao lado da Pedra de Gornand, o Corajoso. O mar no seu movimento costumeiro quebrava nas pedras abaixo. Acima uma gulina passava cantando, exatamente como naquela manhã. Mas quando fixou os olhos nos da estátua levou um susto digno de um bom filme de suspense. Gornand, o Corajoso chorava. O corajoso conquistador contemplava o mar e chorava.
Chorava sangue.
O sangue misturava-se com o esterco seco das aves marítimas. Virou-se para o mar horrorizado e o que viu o deixou em pior situação. Estava lá as Hordas Negras do Vazio, de uma extensão a outra, não havia falha na linha negra. Sim, ele tinha que fugir. E teria feito isso se pudesse. Mas, como é típico dos pesadelos, suas pernas estavam mortas, paralisadas. Ao virar-se novamente para trás não viu mais Gornand, com ou sem coragem. Lá estava seu pai morto em cima das pedras ensanguentadas que sobraram do monumento. Uma voz em sua mente falou, num tom que era quase majestoso: A QUEDA. Um trovão soou e ele acordou ainda ouvindo o eco.
Abriu os olhos sentando-se na cama de palha. Levou uns 30 segundos para lembrar-se como tinha chegado ali. Então se lembrou do voo em Delaina, lembrou Ciquem, Elih e Capitão, e o Lumiero. Estava tudo bem. Tinha chegado no fim do primeiro estágio da Estrada Estreita. Isso era fato. Talvez o fim ainda estivesse começando, mas...
Em sua volta estavam as esculturas de madeira que vira na noite anterior, tudo no seu lugar, e lá estava a "mulher com asas". Agora na luz do dia podia vê-la melhor. O que mais surpreendia não era o fato de ela ter asas. Afinal Vinci já tinha ouvido falar de um "povo-pássaro" e agora já não duvidava de sua existência. Nada era mais impossível. O mais notável de tudo eram as asas em si. Pois não pareciam de maneira nenhuma asas de um pássaro "coladas" numa pessoa. Simplesmente não parecia um enxerto, um implante ou coisa parecida. As asas pertenciam a criatura de forma uniforme e simétrica. Tanto como suas mãos ou seus pés o pertencem. Era um ser completo e as asas o completavam. O trabalho realizado na madeira era impecável, divino.
Vinci pôs-se de pé e percebeu que suas roupas estavam agora apenas levemente úmidas.
- Ô de casa...- Chamou sem resposta.
- Ô de casa.... - Chamou novamente apoiando-se numa escultura de uma ave azul; sem resposta.
Resolveu então sair, pois não achava apropriado invadir a casa do "grande" Galhopula. E queria ver o Sol para saber a quantas horas o dia já ia. A luz que entrava palas cavidades circulares próximas ao teto (que lembravam escotilhas, mas eram nada mais nada menos que buracos por onde correm os cadarços dos sapatos) era forte. O dia já estava adiantado.
Vinci então saiu pela mesma porta que entrara no meio da noite. Aquela noite que a julgar pela beleza que estava o dia tinha sido a sete gerações atrás em outra galáxia. Próximo a Vinci estava uma parte do jardim do Galhopula. Plantas muito bonitas, nada extravagantes, mas bonitas em sua beleza natural. E ao redor a Lagoa de Narian com seus girassóis era de uma beleza de tirar o fôlego de um poeta (ou um Olíre). Colibris passavam voando. O Sol indicava não mais que dez horas, e não menos que nove. Vinci ouviu algo agitar a calma superfície da lagoa. Talvez um peixe, talvez uma pedra atirada na água. Dirigiu-se então na direção de onde vinha o som e as ondas circulares na superfície. Não caminhou muito e encontrou alguém. Este alguém estava sentado num banquinho na margem da lagoa, e outro banquinho igual estava ao lado dele. Do lado também tinha um cesto de palha. Estava pescando com um chapéu de tamanho desproporcional na cabeça, também de palha. O chapéu era de palha, não a cabeça.
- Sente-se Folhaverde.- Disse uma voz antiga como a lagoa em que estavam. - Eu o esperei. Você está atrasado.
- Desculpe senhor... - Professor por favor, interveio o pescador - Vinci até que pensou em dizer "Galhopula" mas hesitou. - Professor. É que tive uns contratempos... - Terminou sentando-se no banquinho na margem gramada, ao lado do cesto de pescados. Vinci reparou nas duas antenas que saíam do chapéu de palha por dois círculos perfeitos. Ilhoses de ferro. Em baixo do chapéu estava um rosto velho, era um gamero bastante velho, com um par de olhos azuis novos, apesar do rosto, novos como a grama em volta deles.
- Silêncio, Folhaverde! Acho que fisguei um. - Disse o dono dos olhos fazendo um barulhinho estranho, que Vinci não soube dizer de onde vinha. Uma espécie de "Kiplek".
- Segure para mim Folhaverde, sim? Por favor - Disse Galhopula, (que a propósito o título de "o Grande" não lhe fazia jus - tinha a metade da altura de Vinci.) entregando a varinha de bambu a Vinci enquanto puxava a linha de pesca, com um peixe azul prateado pendurado.
- É um zulou! - Disse ele animado, como se fosse o primeiro. Como se aquela espécie tivesse sido criada aquele dia, naquele momento, para ele. Parecia um iniciante na pesca, seus olhos azuis brilhavam, vendo o peixe debater-se na linha. Ele o estendeu na direção de Vinci.
- Segure-o com cuidado, sim? Preciso retirar o anzol - Disse ele - Mas o que está fazendo - Acrescentou ao ver a forma desajeitada que Vinci segurava o peixe. O que era uma vergonha para um filho de pescador, com certeza. Mas ele logo honrou seu sangue lembrando-se de segurar com os dedos polegares dentro das cavidades das guelras do peixe. Que, feito isso, abria a bocarra facilitando a vida do pescador. O que não era nenhuma gentileza com o peixe, claro. Galhopula retirou o anzol enquanto Vinci observava os quatros dedos em cada mão do gamero e as articulações azuis transparentes.
- Coloque-o no cesto, sim? - Disse Galhopula sentando-se e respirando fundo. - Acho que já tempos o bastante para o almoço. - Disse depois de uma breve brisa - Você vai querer provar da comida de Galhopula antes de partir não vai Folhaverde? Aliás, é bom que você parta hoje mesmo. A tempestade foi para o norte... Os charcos no vale de Fenil devem estar cheios. Não é bom que você tome esse caminho Folhaverde, então você terá de contornar indo pelas Montanhas Pardas pelas altas passagens escuras, embora esse seja um caminho bem mais longo para a Terra do Gelo de Lerpenitor...
Vinci não fazia a mínima ideia de que lugares eram aqueles, com exceção deste último, a Terra do Gelo. Sim, já tinha ouvido aquilo em algum lugar, e tinha uma vaga lembrança de ter visto aquele nome no mapa de Ciquem, no centro do mapa. Antes dele queimar na fogueira deixando apenas a Montanha Carrancuda e a sua careta.
- Calma, senhor... - ia dizendo.
- Professor Galhopula, por favor, ou Grande se preferir. Eu não conquistei esses títulos a toa meu filho. Minha história é longa Folhaverde. Eu viajei esse mundo todo! Já fui de Tulls do Oeste à Dol Sirim do Leste. Estive em Solvim, ah Solvim, Landorimnadoram e as folhas das estações! Estive nos mares do norte e de longe avistei a Terra Arruinada, a outrora Holigard, de onde veio o seu povo depois da Queda. Passei alguns anos na Terra do Gelo também. Dreamenin, ou Rivergard se prefere, eu conheço até de mais. Estive com os melhores mestres nas artes do mundo. Suponho que tenha visto minhas esculturas. Não viu?
- Vi sim, são muito bonitas.
- Sim são mesmo, mas são mais que isso, são arte, são cultura meu filho! Cultura! Eu tenho muita cultura, falo todas as línguas dos produtos da terra. Já estive até fora do continente. Em Benna, A Almadiçoada. Aquela que permaneceu depois da Queda. E, acredite, eu já vi as Lágrimas de Frijoror! Sabe de que estou falando? As montanhas de pedra que guardam os Pilares da Criação. Como você vê, você não pode chamar uma pessoa como eu simplesmente de senhor, não. Professor! Professor Galhopula, por favor. Professor, por que eu também ensino, línguas, pintura, escultura, música, poesia, e tudo o mais. Mas pena que você tem uma missão, e precisa segui-la. Assim foi decidido no tempo do Olíre, Lean Orvalho de Primavera, ou Lean Sill, Sill que significa Olíre na língua de Holigard. No Círculo de Ornata decidiram que seria assim, por tempo indefinido.
Vinci estava pasmo com aquela chuva de palavras. Era pior que a chuva da noite passada. Tá certo, que andava faminto por informações, e precisava delas sim. Mas como dizem, não é bom que alguém com faminto comer demais, nem rápido.
- Perdão professor, mas eu sou um idiota. Sou um completo idiota talvez. Eu não falo nenhuma língua a não ser a comum. Nunca saí de Mastro Forte antes, e não sei o que é essa Terra Gelada...
- Terra do Gelo, corrigiu o professor.
- É, e também não sei em que missão estou, se o senhor... professor, perdão, quiser me ajudar tornando as coisas mais claras, tudo bem, se não... Vou seguir meu caminho. - Vinci não teve nem um pouco de receio ao falar essas coisas, sua paciência com a "vida" tinha esgotado.
- Não há caminho pra você fora da Estrada Estreita, você precisa manter-se nela. Pois você descende de Dol Sirim, você é da linhagem dos cavaleiros marinhos da Cidade do Mar. Não acredito que a Folha Cortada não tenha lhe instruído nem nas coisas elementares... não é possível! que desprezo, que desprezo!
Vinci sentiu uma vontade enorme de partir pra cima daquele "inseto" arrogante, mas nunca tinha perdido o controle em sua vida, e aquela não seria a ocasião.
- Meu pai tinha medo do seu passado, alguma coisa nessa BELA e GLORIOSA cidade aconteceu. Meu pai fugiu do passado. Agora eu entendo. Queria livrar a mim talvez, ou apenas a si próprio. Só não sei de quê. Mas vou descobrir.
- Tudo bem, eu estou aqui pra lhe ajudar, não me leve a mal. Eu fui, sou, um grande amigo do seu pai, Trintem, a Folha Cortada. E desejo ser seu amigo também Folhaverde. Quero lhe ajudar, preste atenção por que só vou falar uma vez ("Sorte a minha" pensou Vinci).
Os peixes se mexiam no cesto de palha. O coração de Vinci batia com força.
O sol brilhava nos botões do colete que Galhopula vestia. Eram de prata. Vinci lembrou-se da manhã, aquela em que penas voaram. O sol tinha feito a mesma coisa nos botões do sobretudo de Ciquém, o Olíre. Rápido como um jato Vinci pensou que triste fim teria tido aquela peça de roupa, naquela manhã em que ele por acaso esbarrou em Ciquém e as penas tinham caído da pasta. Uma daquelas o pertenciam agora. Um lucro num mar de prejuízos.
Galhopula ia começar.