Tinta & Pena • 11
Tinta & Pena - Parte 1 - Capítulo Onze
Sombras & Saúvas
Sombras cobriam a lua. "Sombras da Noite" diria Lui. E ele teria razão. Sombras fecharam o céu em Folha Alta naquela noite. Nuvens negras que vinham do sul, logo começaram a despejar toda a fúria gerada pelo que tinham visto lá. Os ventos fortes faziam as janelas baterem e as pessoas correrem para suas casas; para o calor de sua cama ou lareira. Era isso que Velminor Lumiero desejava fazer também, tão certo como a chuva. Ele e o rapaz que, por coincidência ou não, seu nome levava as mesmas iniciais, V e L, isto é: Vinci Laipotem. Os dois seguiam pela estrada que levava a Flor de Laranja. Quando as nuvens chegaram e escureceram o céu foi que Vinci arriscou a primeira pergunta:
- Acha que vai chover Sr... Velminor... é que... o céu ficou escuro...?
- Sério? Puxa! Devemos nos apreçar ainda mais - Respondeu o lumiero apreçando seus passos - que eram longos. Bem longos.
- É, até a Lua de Prata foi encoberta...
- Sério? Isso não é bom, seja mais rápido. - Respondeu ele sem ao menos olhar para trás; aliás, isso, ele não fazia nunca.
- Você tem toda razão jovem amigo, - Disse ele sem olhar para trás novamente - vai chover e muito esta noite, posso senti, mas não devemos parar, por nada. Quando se dar o primeiro passo na Estrada Estreita, não se para até que ela acabe.
Um forte trovão tremeu o chão e anunciou o início da tempestade. Pesadas gotas de chuva golpearam as folhas causando uma barulheira daquelas. Vinci bem que tentou, mas era inútil gritar. Velminor não dava ouvido, continuava caminhando sem olhar para trás. Tão rápido quanto os riachos em miniatura que corriam na terra, eles ficaram ensopados da cabeça aos pés. Mas ainda assim o lumiero parecia não estar disposto a parar, nem se o céu desabasse. Venceram pelo menos mais cinco quilômetros e então Velminor entrou numa trilha a esquerda da estrada. A trilha parecia ser pouco usada pois tinha plantas daninhas rasteiras no caminho. Muitas "me deixa" espinhosas, como Vinci chamava-as, (ou carrapichos como nós chamamos) se prenderam nas calças dele - ele se esforçou para tirar enquanto andava e quase caiu. A escuridão era completa, não fosse a pena de sinalã que Ciquem dera a Vinci, ele teria muita dificuldade em seguir o guia nesta parte do trajeto, que foi cheia de curvas. Vinci ficava se perguntando que capacidade extra de visão teria o lumiero para enxergar tão bem naquele breu.
No meio da noite, (a chuva ainda caía e pelo menos dois raios tinham caído nas proximidades tremendo a terra), finalmente Lumiero parou. Na luz da pluma de Vinci, nenhuma construção a vista. Apenas Velminor imóvel como se estivesse muito concentrado. E estava mesmo, pois de repente começou a emitir um som parecido ao "cri-cri" dos grilos sim, mas mais alto e menos repetitivo. Mas a chuva ainda sobrepunha os "alto-falantes" do lumiero. Não demorou muito e Vinci ouviu um estalo. Um ferrolho fora aberto em baixo da terra. Uma grande porta circular abriu-se no chão. De dentro vinha uma luz já conhecida por Vinci, a luz de manans é claro. Quem abriu a porta tinha um par de antenas. "Por quê será que eu não estou surpreso..." murmurou Vinci. A criatura fez gestos com a mão indicando que eles deviam entrar, e emitiu um som característico, que Vinci entendeu tão bem o quanto entendera o "Huuurwoolf woolf!" de Capitão mais cedo. Velminor foi em frente e, sem olhar para trás, desceu os degraus de terra. Vinci o seguiu. O guarda cedeu espaço para eles passarem, e eles passaram. O guarda fechou a porta e o silêncio foi imediato. Vinci podia ouvir sua respiração. Profunda. O que ele iria encontrar ali?
O pensamento de que ele podia ter caído numa armadilha não foi completamente descartado até que (tendo caminhado todo o caminho apenas com Velminor - o guarda tinha ficado "guardando" lá atrás), se viu num cômodo aconchegante, com uma grande lareira queimando e uma mesa farta a sua espera. A mesa, que era de pedra trabalhada, não estava forrada com nenhuma toalha mas a comida parecia saborosa - com a fome que ele estava nem podia ser diferente. Vinci ainda segurava a pena e as criaturas olhavam para ele inquietas, olhavam umas para as outras e apontavam emitindo seus sons (quase) alienígenas, Vinci resolveu então guarda-la. Sentou-se perto da lareira com o fim de secar-se. As criaturas em sua volta, que o olhavam meio tímidas, eram humanas, claro. Tão humanas quanto Maria, Lui ou o próprio Velminor são, ou eram. Mas eram ao mesmo tempo formigas, disso não havia dúvida. Elas se comunicavam com Velminor, Vinci percebia isso, e não era uma situação agradável.
- Pode descansar um pouco, - Disse Velminor depois de toca-lo com as antenas longas e finas - Depois você poderá jantar. As saúvas são amigas, povo bom, e trabalhador, não como os gameros... Depois seguiremos por alguns túneis, um deles nos deixará perto da lagoa.
- Que lagoa?
- A Lagoa de Narian.
"Ah sim, claro a LAGOA DE NARIAN, como pude me esquecer..." pensou Vinci ironicamente.
Logo estava sentado à mesa, cercado de olhos vermelhos curiosos, uma saúva criança tentou se aproximar dele mas foi puxada por sua mãe. Isso deixava Vinci meio embaraçado, mais no fim a fome falou mais alto que o embaraço. A comida foi deliciosa, embora Vinci não soubesse quase nada sobre os ingredientes que compunham o jantar. Havia retângulos brancos enrolados em folhas de bananeira que eram muito saborosos, tipos de raízes fritas, bolos de sementes que Vinci desconhecia, tinha uma espécie de geléia muito saborosa, feita evidentemente de frutas silvestres, e outras coisas que não acharam lugar no estômago do Sr. Laipotem. Por último bebeu um líquido com um sabor leve e bastante revigorante. Agora as saúvas já o tinham deixado "em paz", apenas uma ou outra, que aparentavam terem sido chamadas por outras, ainda chegava com seus olhos curiosos. Eram criaturas adoráveis sem dúvida, Vinci até que simpatizou com elas no final, mas não sabia o que dizer e nem tinha tempo para conhecê-las melhor naquela ocasião. Aproveitou o pouco tempo de descanso que o lumiero o dera, e, aliás, este tinha sumido de seu campo de visão.
Vinci já cochilava quando....
- Ei, acorde, não vá dormir, temos que ir - Velminor tinha voltado.
- Não podemos ir amanhã? - Perguntou Vinci com a voz fanhosa de sono.
- Amanhã? De jeito nenhum! - Respondeu Velminor, com um tom de voz muito alto (Achou Vinci) que ecoou na sala subterrânea. - Amanhã - Continuou Lumiero - de manhã eu vou estar morto de cansado!
Vinci não queria acreditar que estava ouvindo aquilo, mas estava.
- Não se descansar a noite, agora. - Disse ele já completamente desperto.
- Você não está me entendendo... - "Realmente, me surpreenderia se estivesse" Pensou Vinci. - Galhopula o espera! - continuou Velminor - Vamos filho do Folha Cortada.
"Que diabos ele quer dizer com Folha Cortada? ...Ah! Deixa pra lá...." Vinci pensou e então respondeu:
- Ok Sr. Velminor, podemos ir. - Disse pondo-se de pé piscando os olhos e espreguiçando-se.
Velminor seguiu só (sem nenhum habitante do sauveiro) pelos túneis e Vinci o seguia. Alguns dos corredores, os últimos eram mal iluminados, mas Velminor, a despeito disso, seguia sem parar um milésimo de segundo se quer. Conhecia aquele lugar tão bem quanto eu ou você conhecemos o nosso "caminho de casa". O caminho de nossos amigos era silêncio, e Vinci aproveitou para fazer algumas perguntinhas básicas. Uma delas não saia de sua cabeça, mas ele estava sem jeito de pergunta-la, porém perguntou assim mesmo.
- O Sr. enxerga muito bem, não é?
- Não... Por que pensas assim?
- Bem... Já que enxerga bem no escuro e parece que nunca se perde...
- Isso é bem verdade, eu nunca me perco. Mas não por que enxergo bem, não, absolutamente não. Pelo contrário, não enxergo bem...
- Não posso acreditar...
- Nem bem, nem mal. Eu não enxergo nada. - Respondeu Velminor ainda sem dar nem uma olhadinha para trás.
Essa era boa. Ninguém ia acreditar naquela história "maluquérrima". Estava sendo conduzido por um guia cego, e o mais doido de tudo: era um guia excelente, tirando a parte de nunca olhar pra trás claro... (Mas o que faria uma pessoa que não enxerga olhando para trás afinal???) Nem mesmo o próprio Vinci estava acreditando naquilo tudo.
- Como assim não enxerga? Como pode andar sem ver, é loucura.
- Existem outros sentidos capazes de nos guiar, caro amigo.
Estas palavras ( "existem outros sentidos" ), que encerraram - por hora - o diálogo, nunca saíram da cabeça de Vinci.
No fim do último corredor, como Vinci já esperava, outra escadaria e outra porta. Mas desta vez a porta era na sua localização clássica, na parede.
Quando Velminor a abriu veio a decepção - ainda estava chovendo, talvez ainda mais forte que anteriormente. Vinci estremeceu com a ideia de molhar-se novamente. Ao sair com a chuva o castigando ele observou o que estava gravado na parte exterior da porta, quando Velminor a fechou.
Isso aqui:
Gravado em ouro no ferro.
Vinci não fazia a menor ideia do que estava escrito ali. E pensou que com "letras" como aquelas, não era a toa que a linguagem das saúvas fosse tão esquisita.
- O que está escrito aqui, Sr. Velminor? - Perguntou Vinci esquecendo que o Lumiero era completamente cego. Porém ele já tinha passado suas "anteninhas" naquela superfície em outras ocasiões e sabia muito bem o que estava ali.
- Nada de mais - Respondeu Lumiero elevando a voz na chuva - Em cima está escrito: "SAÚVAS" em baixo da insígnia: "PORTA" e em baixo de porta :"17".
Vinci ainda pôs a mão tocando as gravações douradas. Depois se virou e ficou maravilhado com o que viu.
Era aquela hora da madrugada que precede a aurora. Embora estivesse escuro e chovendo (pra caramba), o lugar era de uma beleza natural singular. A Lagoa de Narian estava a poucos metros de sua frente. Em volta dela plantas que pareciam girassóis (quando chegasse o dia seriam de fato girassóis) contornavam quase toda margem. Uma ponte levava a uma ilhota no meio exato da ilha. E na ilhota uma moradia, no mínimo inusitada - Um sapato gigante. Era lá que Galhopula vivia. Vinci não precisou ouvir Velminor dizer isso para ter certeza. Viu tudo isso quando um raio seguido de trovão iluminou a "casa". Da chaminé (que não era nada menos que a abertura para colocar o pé de quem quer que fosse que calçasse um número tão alto) subia fumaça. Pelo menos a noite não seria fria.
"Galhopula o espera". Então aqui vamos nós. - Disse Vinci para si mesmo.