Tinta & Pena • 10

Tinta & Pena - Parte 1 - Capítulo Dez

Folha Alta

O Sem Rumo corria atrás deles agora. A noite se fechava, mas Silan começava a lançar seus raios azuis-prateados-estelares sobre a copa das árvores. O gamero Lui fechou o portão que dava para a passagem subterrânea, da qual eles tinham vindo. A chave de ferro com "cabeça" de gafanhoto pendia num colar no pescoço dele. Uma floresta de Toaks os circundava. Ainda era possível ouvir o murmúrio do rio. Vinci sentia o coração acelerado. E sem saber exatamente o porquê, pensava:

"Eis que finalmente dou meu primeiro passo na Estrada Estreita". Repetia para si mesmo: "Estrada Estreita, Estrada Estreita.... De onde eu fui tirar isso..."

- Temos visitantes? - Disse uma voz amigável. Vinci virou-se e observou uma figura parecida com Lui, só um pouco mais alta.

- Sim meu irmão, parece que a Lua caiu no mar, não é? - Disse Lui para o outro gamero que chegara.

- Pelo menos Silan continua no mar de cima - Replicou o gamero mais alto, apontando para Silan (maior que na noite anterior) por entre os negros galhos de uma toak.

- Ah sim! Senhores, perdão. Este é um de meus irmãos mais velhos, seu nome é Dep.

- Salve gameros, Povo Bom, Antigos em Dreamenim. - Disse Elih; que era o único dos três que sabia (ou pensava que sabia), realmente, o que dizer.

- Salve, homens livres de Rivergard! - Respondeu Dep; que era o único dos dois que sabia (ou pensava que sabia) como responder aquela antiga saudação.

- Eu e Dep guardamos as passagens das bananeiras agora. - Disse Lui, aparentemente ignorando a saudação que desconhecia.

- O que aconteceu ao antigo porteiro? - Indagou Vinci.

- Não sabemos - Respondeu Dep - Simplesmente desapareceu - Concluiu ele.

- As sombras da noite, com certeza o pegaram... - Acrescentou Lui - Pobre Fiun, - Continuou ele - Mas quem mandou ficar lá até a noite, desobedecendo às regras?

- Fiun, agora sim, me recordo - Disse Elih com uma voz pensativa - Ele era pelo menos duas vezes mais velho que eu...

- Soooombras da nooooooite.... Há! Deixe de besteiras Lui - Disse Dep, dando um murrinho no ombro do irmão - Parece um grook chorão.... Todo mundo sabe que isso é pura invenção de covardes como você! Cadê que essas suas sombras não ousam me atacar.... - Continuou Dep - Será que conhecem toda a minha força e habilidade com bastão? - Neste momento Dep fez questão de exibir e girar o bastão de toak, que trazia consigo.

- Acho que é por que você está sempre muito ocupado bebendo nedka e "babando" a Giu... - Zombou Lui - E nunca está no seu posto. E depois eu é que sou o chorão... Lui é o grook claro... Lui sempre é o grook....

- Já chega Lui! Se não eu vou...

Vinci estava maravilhado com as criaturas e não conseguiria, mesmo se quisesse, dizer uma palavra. Elih talvez achasse deselegante interromper uma demonstração de laços fraternais tão bonita, como aquela. Logo sobrou para o pobre Capitão por um fim na discussão.

- Huuurwoolf woolf!

Dep já se punha em pose de luta e Lui já virava o cabo da lança na direção dele. Mas ao ouvirem Capitão, pararam subitamente.

- O Sr. Capitão está certo. - Disse Lui - Não é hora, nem lugar, de brigarmos, principalmente por que ainda estamos em serviço, (o que é bem verdade ainda nem entregamos a chave). E o seu dono e seu novo amigo - continuou Lui - têm assuntos a tratarem com Galhopula, e não precisam perderem seu tempo assistindo tolices como esta.

- Ele disse isso? - Perguntou Vinci quase num grito.

- Pois é... Incrível não? - Concordou Dep.

- Sim, impressionante... - Ia dizendo Vinci.

- Impressionante - Interrompeu Dep - Como ele pode chamar alguém de "dono"? Tá precisando melhorar essa autoestima em rapaz? - Concluiu Dep dirigindo-se a Capitão, que o olhava seriamente.

A isso Vinci não teve mais o que dizer. Afinal Capitão já dissera tudo, sem o menor esforço. Elih estava indiferente aquilo tudo, pois nada ali era novidade para ele. Um pensamento recente retornou a mente de Vinci num lapso. "...seria melhor ser um cachorro".

- Galhopula mora um pouco distante daqui, numa ilha na Lagoa de Narian na divisa de Folha Alta com Flor de Laranja. - Disse Dep - Não podemos leva-los agora por que a viagem levaria até amanhã talvez, e temos de estar em nossos postos amanhã logo após o nascer do dia.

- Tudo bem caros amigos, daqui pra frente podem deixar conosco. Sabemos nos virar - Disse Elih lançando um olhar para Vinci.

- É podemos nos virar. - Concordou ele.

Assim foram andando, os quatro e o cachorro, em direção a parte movimentada daquela terra.

Logo Vinci percebeu o por quê do vilarejo chamar-se "Folha Alta". A floresta de toak's se estendia em todas as direções. Existiam casas, assim como a de Elih, nas árvores e embaixo também. Seguiam o mesmo modelo da moradia do velho. Quartos e salas nas árvores, cozinhas e todo o resto no térreo. Lâmpadas como Vinci nunca tinha visto antes se acediam nas casas - como colmeias de abelhas feitas de cristais, reluzindo um amarelo cintilante . Elih lhe explicou que eram feitas pelos "vagalumes", e chamavam-se "manans".

Passaram pela rua chamada "dos Ferreiros" e de fato existiam muitos ferreiros em Folha Alta, em sua maioria, se não totalidade, gameros como Lui e Dep. Chegaram numa praça iluminada por muitas manans, penduradas nas árvores de finos troncos, Dep e Lui insistiam para eles irem até lá. O lugar estava movimentado. Havia muitas barraquinhas de madeira onde vendiam-se brinquedos, comidas e outros itens variados e exóticos. Fogos de artifícios eram os preferidos das crianças que ali já se encontravam. Vinci observou, maravilhado, gafanhotos de fogo darem saltos enormes e caírem desaparecendo, borboletas coloridas que subiam em espiral no ar e explodindo em faíscas coloridas, grilos de fogo verde cantavam e desapareciam na velocidade da luz deixando um rastro verde brilhante, libélulas coloridas davam muitas rápidas voltas no ar, rãs verdes de borracha soltavam bolhas de sabão, reluzindo o arco-íris na luz amarela das manans. Quem pareceu não gostar nada daquilo foi Capitão, pelos latidos que deu. As crianças eram na maioria gameras, Vinci percebeu, não só pelos quatro membros superiores mas principalmente pelos inferiores bem característicos nos gameros, bem como o jeito de eles andarem.

Num coreto (coberto de heras frutíferas) bem movimentado acontecia uma exibição - alguém cantava acompanhado por um pooroper (uma espécie de violão de pequeno porte). Os adultos ali, certamente os pais das crianças que brincavam, pareciam estar muito interessados, até mesmo espantados. Vinci olhou pelo meio deles e divisou uma figura estranha de olhos negros e longuíssimas antenas, maiores que ele próprio (ele tinha de ser cuidadoso para não tropeçar nelas, mas isso ele era). Eis o trecho da canção que ele ouviu, (em meio aos gritos das crianças e as explosões dos fogos):

...devem lhe escutar...

Anos de paz

Devem acabar

Pois o Mal tornou a voltar

Festas a noite

Danças ao luar

Tudo isso, deve passar

Escutem povo bom

Foi o que Galhopula mandou avisar

Quem tiver antenas

Deve lhe escutar

Há tempo para rir, há tempo para pular

Mas agora chegou a hora de armas forjar

Quem tiver antenas

Deve lhe escutar

Houve um burburinho no coreto. Vinci sentiu uma vontade tremenda de adentrar ali e falar com a criatura de olhos negros e longas antenas. Pediu desculpas a um gamero por pisar em seu pé e a uma gamera por esbarrar nela, mas em fim chegou perto dele.

- Com sua licença Sr...- Disse ele.

- Velnimor Lumiero. - Respondeu a criatura, e então, sem nem mesmo se levantar, passou suas longas e finas antenas pelo corpo de Vinci. Que ficou meio sem jeito, mas estava sendo observado por uma pequena multidão de boguinites, e se esforçou para manter a postura.

- Meu nome é Vinci, sou filho de Trintem Laipotem estou aqui para ver Galhopula.... - Nesse momento um flash na mente disse a Vinci que ele podia ter ouvido aquele nome (Galhopula) na canção, por pura imaginação, apenas por que aquele era o nome que mais passava por sua mente nas últimas horas.

- Filho de Laipotem, a Folha Cortada? Mas isso é isso é inimaginável! - Disse Velnimor levantando-se e guardando o instrumento numa capa de couro de raposa. - Siga-me, devemos ser rápidos; Galhopula o espera! - Disse ele a Vinci em meio a confusão de vozes. As mais frequentes diziam: "Agora ele pirou de vez".

Aquilo (Galhopula o espera) soou como músicas nos ouvidos de Vinci. Mas sua alegria não foi muito longe...

Foi ao encontro de Elih e Capitão que encontravam-se em um banco de madeira mais afastados das pessoas, Dep e Lui já não estavam mais com ele. Vinci correu ao encontro deles e a figura que (agora na luz das manans, lembrava muito um grilo claro - desses que fazem serenatas) atrás dele segurando um chapéu de palha na cabeça sobre as duas perolas negras que eram seus olhos.

- Encontrei Elih! Encontrei alguém que me levará a Galhopula. - Gritou Vinci de longe.

- Mas isso é maravilhoso - Respondeu Elih pondo-se de pé (e Capitão fazendo o mesmo).

- Ele é bem apressado, diz que devemos ir agora mesmo. Vamos logo...

- Então devemos nos despedir... - Disse Elih com os olhos brilhando.

- Como assim? Você não vai comigo? - Disse Vinci sendo tocado pelas longas antenas de Velnimor novamente. - Ah sim, aqui está ele.

- Um lumiero. - disse Elih automaticamente ao ver Velnimor.

- Sim, Velminor Lumiero. - Disse o lumiero passando suas antenas agora por Elih, e por Capitão depois que este latiu. - Vocês são os amigos que vão nos acompanhar?

- Na verdade não... - Ia dizendo Elih.

- Não são amigos? Ou não vão nos acompanhar? É uma pena que... - Ia dizendo Velminor.

- Sim somos amigos, - Respondeu Elih - mas infelizmente não estou em condições de viajar, estou ferido, velho e cansado... Agora que você encontrou alguém que pode ajuda-lo - Disse ele agora olhando para Vinci - Devemos nos separar, está aventura é sua Senhor Laipotem.

- Tudo bem Elih - Disse Vinci. Mas não estava tudo bem, aquela sucessão de encontros e despedidas eram terríveis para alguém que, como Vinci, estava muito acostumado com uma vida estável (ou monótona como ele achava). Mas não havia nada a fazer. Estava a bordo de um trem que andava sem parar, independente de sua vontade. No fim, despedir-se foi difícil para Vinci, principalmente de Capitão, tinha desenvolvido um forte laço com o cão mesmo no curto período juntos. Mas como o lumiero o apressava constantemente, não sobrou outra opção para ele a não ser seguir em frente. Disse para si mesmo que era melhor se acostumar com aquilo. Então pegou sua bolsa, abraçou Elih e Capitão (este o recompensando com lambidas quentes e úmidas) e seguiu Velminor para a estrada que unia Folha Alta com Flor de Laranja.

A noite só tinha começado para Vinci e Velminor. Elih e Capitão, no entanto, dirigiram-se a uma pousada conhecida deles. A noite passava enquanto Silan era encoberta por nuvens negras e um vento frio soprava do Sul.

==

Veja um desenho, feito por Even Line, de Velminor Lumiero nos meus "e-livros".

==

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 03/05/2010
Reeditado em 05/08/2011
Código do texto: T2235610
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.