A CHAVE DO CÉU

A CHAVE DO CÉU

No tempo em que o céu vivia cheio, havia um anjo para cada ser vivente na terra. Anjos protetores, cuidadosos, vigilantes e, sobretudo, atentos a tudo que ocorre na vida, eram comumente conhecidos por anjos da guarda. Não podiam escolher nem trocar, após a designação, tinham que carregar o protegido nas costas, ou melhor, sob as asas.

Anjos novatos recebiam casos fáceis, assim como solteironas, viúvas ou funcionários públicos de baixo escalão; os mais experientes, ficavam sempre com as crianças, os cachorros e os bêbados e os casos difíceis como virgens românticas, delegados e deputados federais ficavam a cargo dos anjos que esperavam na fila para a promoção. Quando acontecia de um caso se complicar era chamado o arcanjo de plantão que assumia até controlar a situação. Como toda sociedade organizada existia um manual de instruções, a fim de orientar a atuação dos anjos e dirimir qualquer questão referente à interferência celeste na vida terrena. Conhecer o livro era indispensável para uma boa ação, e também para evitar um sem fim de perguntas aos sábios querubins que sempre eram consultados e constituíam um tipo de internet real.

João da Asa – assim conhecido por ter perdido uma asa numa confusão – olhava preocupado para baixo enquanto conhecia o seu próximo caso e as instruções do que deveria fazer e a quem pedir socorro se algo desse errado.

Maria Lina era uma senhora de quase setenta anos, baixa, gorda, morena, de mãos e pés pequenos, seios fartos e abdômen proeminente resultado de sucessivas gravidezes. Tinha os cabelos ralos, cortados rente a orelha com poucos fios brancos, usava óculos e dentadura que tirava para dormir e guardava num copo escondido no banheiro. Estudou só até a quarta série, sendo perita em trabalhos manuais e culinária, como a maioria das senhoras daquela geração, tinha sete filhos: três mulheres e quatro homens; os doze netos constituíam sua alegria.

A velha tinha duas manias: chaves e santos. Tudo dela era lacrado, bem arrumado e fechado a chave. Na casa, fora as portas que normalmente já têm chaves, as gavetas, armários, caixas e até a geladeira tinham fechaduras ou cadeados. Tal hábito foi motivo de várias discussões entre a família, mas dentro de uma estrutura matriarcal como esta, a última palavra era sempre dela e só os estranhos se assustavam com aquele excesso de cuidado da dona da casa em fechar todas as coisas. Acrescentando a tudo isto, o hábito de guardar chaves que não serviam mais, além de recolher as que via perdidas pela rua ou jogadas em qualquer lugar por onde andasse.

Quanto aos santos, a devoção por todos causava uma certa confusão: ela usava uma medalha de nossa senhora, tinha um quadro de São Benedito e no altar da sala estavam Santa Luzia, Santo Expedito, Nossa Senhora de Fátima e o menino Jesus de Praga que tinha sido presente de uma amiga que viajara ao exterior. Freqüentava a paróquia de São Francisco e era fanática pelo padre Roque.

No céu fantástico, do qual falamos, João da Asa olhava para a sua protegida e não entendia o grau de dificuldade da missão: - Vai com Deus, disse o arcanjo orientador, depois emendou – estamos sempre com Ele, foi a despedida. “Vai ser moleza” – pensou o anjo, sobraria tempo para deleitar-se com os prazeres celestiais.

Mal entrava num cochilo, ouviu um tremendo grito: - Ai meu Deus! – era D. Maria invocando a proteção, o anjo descendo disparado pôs-se a ouvir: - Valei-me minha nossa senhora, meu são Benedito, meu são Longuinho, Mãe Rainha... Cadê a chave? O anjo caiu em si, a quem recorrer? Quem poderia ajudar? Decidiu trabalhar sozinho, passando a observar que se tratava da perda de uma chave passou a olhar por todos os recantos a fim de dar uma indicação de onde estava o objeto. Enquanto isso, uma das filhas de D. Maria veio falar com a mãe e encontrou a velha desfalecida no sofá da sala:

- Mãe, o que está acontecendo? Está sentindo o que?

- Nada demais, foi a chave que eu perdi.

- De novo? Qual dessa vez?

- Foram todas, teu pai me deu a idéia de amarrar para não perder e agora eu já me vali de todos os santos e nada.

- Diga o que a senhora queria abrir?

- A dispensa, está faltando papel...Ai meu Deus! Minha dor de barriga...

Saiu correndo com a filha atrás, no caminho tropeçou e se não fosse o anjo tinha caído com a cara no chão, mas um braço invisível a sustentou, levantou e ela viu pendurado no prego da porta o molho de chaves. Daí em diante não houve dia em que o anjo ficasse de folga, sempre por causa das chaves. Resolveu, então dar plantão e seguir o caminho das chaves para não perdê-las de vista. Funcionou até o dia que vieram uns netos passar as férias com a avó e descobriram que dependiam das chaves para tudo: o lanche na dispensa, as moedas perdidas em todos os lugares e as gavetas que guardavam todo tipo de quinquilharias ótimas para brincadeiras.

Os meninos ficavam na espreita esperando a Avó cochilar para pegar as chaves e fazer a festa, quando ela acordava e dava por falta das chaves era um deus nos acuda, ou melhor, o anjo acuda, para procurar as chaves e dar conta das coisas tiradas pelas crianças. Somando-se a isso outros tantos acidentes e incidentes que sempre aconteciam naquela modesta residência, aos quais o anjo sempre estava presente dando uma mãozinha.

Passados seis meses, o anjo estava exausto, como D. Maria recorria a ele e a todos os santos, ficava difícil dividir as tarefas. Sobrando tudo para o João mesmo, das cinco da manhã as dez da noite, de domingo a domingo, procurando, encontrando, desviando, apagando o fogo, segurando óculos, tudo para evitar que tragédias acontecessem na vida de D. Maria.

Sentindo-se fraco e cansado, decidiu pedir uma dispensa médica para descansar e neste ínterim entre marcar consulta, fazer exames e o médico atender – não se assuste tem disso também na outra vida – D. Maria teve um mal súbito e morreu. O anjo, que não tivera tempo de ser destituído de suas funções, foi chamado as pressas no portão para resolver uma confusão: viu D. Maria gritando na porta do céu que entraria de todo jeito, que tinha sido uma católica fervorosa, filha de Maria, ajudante de procissão e por toda vida tinha contribuído com a igreja e sempre dado na coleta da missa dominical. Era devota de todos os santos e ao longo da vida tinha juntado muitas chaves na certeza de que uma delas abriria as portas do céu.

Por não ter estudado o manual, o anjo não sabia se morto tinha protetor, além do mais essas questões de direito adquirido, código canônico e financiamento de terreno celeste são difíceis demais para um pobre anjo estressado resolver. Saiu de fininho, acariciando a asa que lhe restou, pensando que se a chave desse ela tinha o direito de entrar no céu.

P.S. - Enviem comentários.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 23/08/2006
Código do texto: T223233