Tinta & Pena • 1

Tinta & Pena - Parte 1 - Capítulo Um

Penas Voando

Era um dia como outro qualquer. Era nisso que Vinci Laipotem vinha pensando enquanto caminhava para a oficina em que trabalhava com seu pai; na confecção de redes de pesca. Seu pai já estaria lá desde as cinco da manhã, e já teria “feito muita coisa na oficina”, pensava ele.

Cinco horas era madrugada para Vinci com seus dezoito anos. Já era por volta das sete e ele ainda estava sonolento.

Era uma rua movimentada aquela, uma das principais da cidade de Mastro Forte. Repleta de lojas, com todo tipo de parafernália disponível para pesca, nado, embarcações ou qualquer outra atividade relacionada ao mar. Mastro Forte, uma bonita cidade que prosperava no comércio e na pesca, era o extremo sul do antigo continente de Rivergard.

Mas o que é Rivergard? Você deve estar se perguntando.

Trata-se de um continente antigo, cheio de histórias, culturas e memórias. Esta história, de maneira alguma abrange se quer a superfície de tudo que há para se saber sobre Rivergard. O que eu sei é muito pouco e o que pretendo lhe contar (caso você faça a gentileza de ouvir) é ainda menos. Mas ela abrange uma boa parte da vida de um de seus habitantes, esse rapaz que acabamos de conhecer, e nos dá alguns vislumbres desta grande terra.

O pai de Vinci, que a propósito se chamava Trintem Laipotem (“Ambas palavras oxítonas!” ele lhe enfatizaria isso, se você o encontra-se pelas ruas de Mastro Forte), morava lá desde quando Vinci não lembrava, sempre no negócio das redes. A vida dele se resumia em trabalhar na oficina, pescar e jogar Coco Seco nas praias de Mastro Forte.

Esse jogo, muito comum em Mastro Forte, era uma mistura de tiro ao alvo com lançamento de peso. O jogador lançava um coco no mar, em áreas previamente demarcadas (geralmente com folhas de coqueiro). As de fácil acerto agregavam menos pontos ao lançador, enquanto as de difícil alcance, mais. Acertar a crista de uma onda era uma glória, mas a maior pontuação era pra quem acertasse "nos corais" - os distantes recifes que ficavam com suas cabeças amostra quando a maré estava baixa. Havia um campeonato oficial de Coco Seco, onde os melhores (ou os mais empenhados no esporte) mostravam sua classe e habilidade em lançar cocos no mar.

Vinci parou numa loja de Golfinhos de Madeira. Assim eram chamadas as pequenas embarcações, as maiores eram as Baleias de Madeira que correspondem aos nossos navios, mas claro que não tinham nada de barulho de motores e fumaceira. Eram um povo pouco "evoluído" como costuma-se dizer. Era uma loja nova, o proprietário tinha deixado a vida de pescador para se arriscar no comércio.

Os olhos de Vinci pararam num Golfinho de Madeira azul claro de nome Senenhor. Ficou ali sonhando acordado com viagens para terras distantes em mar aberto, descobertas de ilhas, caçadas a tesouros brilhantes, e muitas outras coisas que só o pensamento entende. O barco tinha, riscado numa madeira pintada de verde posta em cima dele, o preço de 650 Menes. Ficou sonhando assim até que o dono, o senhor Jacon Nivis, se aproximou.

- Posso ajuda-lo amigo? [...] Gostou do Senenhor? - Disse Jacon num tom amigável de recepcionista-gerente-zelador-dono.

- Eeeh... eu, eu, não tenho dinheiro, nem um Men se quer saber...

- Mas o que é isso? Eu lhe perguntei se gostou meu jovem, não se você está de samburá cheio.

- Ah claro! Gostei muito, muito mesmo - Respondeu Vinci sonhadoramente. - Esse nome, Senenhor - continuou ele no mesmo tom - não me é estranho. Mas não me lembro bem onde ouvi.

- Senenhor! Claro que você já ouviu falar do Senenhor. Se lhe chamou atenção é por que você sabe, ou já soube, o quê, ou quem foi Senenhor.

- Acho que sim.

- Senenhor, era o nome do Golfinho de Madeira, de Lean Sill, o Olíre, fundador de Dol Sirim, a Cidade do Mar. Perto da qual nossa Mastro Forte some no mapa... Ai, quem me dera ver as bandeiras brancas outra vez... Os Golfinhos de Lundar em volta da Pedra de Artonanca! Belos dias meu filho, belos dias aqueles.

- O senhor já esteve mesmo em Artonan... Digo em Dol Sirim? Bem... Não que eu esteja duvidando, claro, mas... É que... Hunks! É incrível! Até bom demais para ser verdade.

- Ora, ora, meu filho, nada o impede de viajar até lá e provar dessa maravilha com os seus próprios olhos. Será que o Vazio retornou e não fui avisado? O que impede a juventude de hoje ver o mundo? Eu já estou avançado nos meus dias. E acho que não aguento mais uma viagem longa, seja por terra ou mar. Claro que por mar seria muito mais fácil... Sim seria... Mas eu simplesmente não suporto mais o movimento das marés. Por toda minha vida vivi mais em mar que em terra. Mas esses dias já passaram. Agora sinto que deva descansar. Já tive aventuras suficientes para uma vida... E você meu jovem... Como é mesmo o seu nome?

- Vinci, Vinci Laipotem.

- Filho de Trintem Laipotem?

- Sim, conhece meu pai?

- Conhecia e conheço, não tive notícias dele por muitos longos anos, não sabia se estava vivo ou morto. Seu pai e eu já fomos grandes amigos, mas há pelo menos vinte anos, eu não vi falar mais dele. Desde que fugiu de seu lar a fim de se encontrar com Merah Silanmel, do povo dos Nindanos, em Solvim. O reencontrei aqui a pouco tempo desde que cheguei.

Os olhos de Vinci brilhavam como corais fluorescentes em espanto e dúvida.

- Mas meu pai nunca me falou disso! Nem mesmo que alguma vez na vida já tinha saído de Mastro Forte... - Disse ele pensativamente - Aliás, agora percebo que ele nunca falou nada do passado antes de eu nascer... - Pensou.

- Do que você está falando? O lar de que eu falo é Dol Sirim do Nordeste, não Mastro Forte do Sul. Imaginei que saberia que seu pai já foi um Cavaleiro-Marinho. Daí vinha, pensei, seu desejo de visitar a Cidade da Pedra de Artonanca... Perdão, acho que estou falando de mais. Esqueça o que eu disse, pois...

Nivis talvez fosse falar, ainda, muitas coisas importantes caso Vinci não tivesse saído correndo dali. Não sabia se chorava, se ria, ou se tinha raiva. Saiu sem rumo descendo as ingrimes ladeiras de pedra de Mastro Forte. Correu como um louco pela cidade, em meio ao constante movimento de pessoas que trabalhavam, arduamente, para ganhar o peixe de cada dia. Vinha correndo numa velocidade que não foi possível diminuir, quando viu que no caminho vinha um senhor em sua direção. Esbarrou forte nele. E tudo o que ele viu foi penas voando num céu azul limpo de nuvens. O tempo parou e quando voltou a correr Vinci ouviu-se dizendo:

- Perdão senhor... eu...eu... - Gaguejou, enquanto recolhia as penas do homem.

O homem estava vestido com um sobretudo azul-marinho; botões de prata com o formato de conchas de mariscos adornavam-no - a luz do Sol refletia forte num dos botões. No peito esquerdo tinha bordado, com linhas prateadas, um brasão - um octógono com uma pena no centro, enquanto duas outras penas faziam um arco. No lado direito outro brasão: dois golfinhos circundando o que parecia ser uma pedra preciosa.

- Deixe disso, não se preocupe. Eu mesmo vinha muito distraído. - Disse o homem.

As penas tinham caído duma pasta preta, com o brasão das penas pintado de prata na capa escura. E, assim como os botões, era cintilante no sol da manhã.

Vinci recolheu a penas reconhecendo algumas das aves que, um dia, haviam as ostentado. Uma era branca como as nuvens no céu de Mastro Forte, ele julgou ser de uma pomba branca. A negra ele sabia, ou pensava que sabia, ter sido de um corvo. Havia pelo menos sete penas. A de gulina Vinci conheceu logo; vez ou outra ele achava uma na praia. As outras eram de aves desconhecidas dele, algumas multicolores. Cada uma das penas tinha um lugar especial na pasta negra do Homem. Um C entrelaçado com um bonito L pendia no pescoço dele numa fina corrente de prata. Vinci o entregou as penas sem levantar a vista - lágrimas nos olhos.

- Por que choras herdeiro da terra? - Disse o Homem das Penas como se estivesse dizendo a coisa mais comum do mundo.

- Quem? Eu? Não senhor. Sou apenas o filho de um fazedor de redes de pesca. - Falou Vinci enxugando os olhos.

- São assim mesmo os acasos da vida! - Exclamou o homem. - Sabia... - continuou ele - que estou aqui exatamente a procura de alguém que teça uma rede especial para mim?

- Bem... o meu pai faz redes de pescas... e claro, são ótimas... mas não têm nada de especial... - Ia falando e então se lembrou do que seu pai lhe falara, sobre “valorizar o seu trabalho”, e emendou: - Quer dizer... a oficina fica logo ali adiante, próxima rua a direita, depois do bar, são na verdade ótimas redes senhor...

- Ciquem Laminuel. Pode me chamar de Ciquem.

- Ciquem, certo, senhor Ciquem.

- Então vamos? - perguntou o homem de longos cabelos negros.

- Perdão mas eu realmente preciso ir senhor olíre... Ciquem perdão.

- Não precisa se desculpar por me chamar de olíre. É uma honra caro amigo herdeiro da terra.

Vinci o chamou assim por que de alguma forma sua mente associava as penas, que voaram da pasta de Ciquem, com a palavra olíre. Palavra essa que ele não lembrava bem o significado na ocasião; nem onde a tinha ouvido.

Os olíres em nosso mundo são raros, e são mais tímidos do que em Rivergard. Mas existem aqueles, os que você talvez chame de poetas. Sim, poeta é uma boa tradução para olíre. Embora não abranja todo o significado - as traduções são assim mesmo - é a palavra que mais chega perto, como você verá mais pra frente.

- Mas se precisa mesmo ir - continuou o homem de sobretudo num sol cada vez mais quente - vá. O mundo é seu!

Vinci saiu correndo - mais devagar agora - para a parte Oeste da cidade. Não via nada nas conhecidas paisagens, que passavam por ele, tudo era um borrão confuso. Estava pensando em cenas rápidas e desconexas, como uma edição mal feita do filme de sua vida.

Numa cena sorria para o pai, após ganhar vinte pontos numa partida informal de Coco Seco. Noutra mostrava o maior peixe que já tinha pescado na vida; que era bem pequeno. Em outra abraçava o pai dizendo que tinha sentido saudades. Não eram lembranças tristes, eram até alegres, mas estavam carregadas de um vazio incomum. Como se a escultura da vida dele fosse oca e feita de gelo. Tudo se partia e derretia aos estilhaços esvoaçantes. Tudo na velocidade do pensamento.

Chegou por fim na Pedra de Gornand, o Corajoso. Este monumento ficava numa pequena península no sudoeste de Mastro Forte. Havia cercas de meia altura cercando-a. Protegendo as pessoas de uma queda, de pelo menos vinte metros, nas ondas lá em baixo. Vinci olhou a placa na estátua de Gornand.

Em Memória de Gornand, o Corajoso.

Pela bravura e determinação nas Terras Selvagens e nos Mares do Sul

1700 M.A. - 70 T.S.

Era uma velha conhecida sua claro. Dezoito anos em Mastro, não são um dia. Mas este dia aconteceu algo diferente. O espírito viajante, que se apoderou dele na loja de Jacon Nivis, voltou com força total. Enquanto as gulinas cantavam uma música triste, bailando, acima dele. E, subitamente, seu coração não estava mais agitado. Que mal o mar não é capaz de curar? - Pensou sem saber, e sem querer saber a resposta. Embora ela viesse mais tarde sem ser chamada.

Vinci já pensava em voltar à rotina, quando divisou pequenas manchas negras no horizonte. Pequenas mas numerosas. Ele não sabia ainda, mas começava a desconfiar que aquele dia não seria tão igual aos outros, e estava certo. Não seria nem parecido. Aquele dia entraria para a história, não só a de sua vida, mas de toda Rivergard na Época dos Reis.

Por enquanto, ele deixou Gornand só com as gulinas e as manchinhas escuras lá longe e foi à oficina. Chegando lá deu de cara novamente com o "cara das penas". Lá estava ele com o seu pai, conversando como velhos amigos. Uma lembrança desprendeu-se em sua mente e desceu rolando pela montanha das memórias. Até esbarrar com um estrondo trazendo outra pedrinhas consigo.

Houve uma noite - tinha em torno de cinco anos idade na época - em que ele acordou de madrugada, após um pesadelo com um tubarão gigante. Ao levantar-se, com a intenção de correr para os braços do pai, constatou que Trintem não estava em casa. Preocupado, mas sem coragem de sair sozinho no escuro, chorou até dormir novamente. De manhã, quando acordou seu pai estava dormindo como de costume, iluminado pelos raios de Sol que passavam pelas frestas do telhado de folhas de coqueiro. Acordou, quando Vinci o chamou, com os olhos vermelhos. Nunca teria falado nada a respeito daquela noite, não fosse a curiosidade aguçada do filho.

- Fui pescar. - Respondeu ele, as indagações do filho, sem mais, e sem mostrar o fruto do trabalho noturno. O mar não estava pra peixe.

Essa lembrança veio de mãos dadas com uma mais recente - ele tinha uns quinze anos - quando seu pai disse que ficaria no mar por um mês. Disse que ia pescar e que voltaria com algum dinheiro. Vinci ficou com seu tio Renind cuidando das coisas até sua volta. Mas Trintem voltou de mãos vazias, com as roupas gastas e com uma cara de que tinha passado maus momentos. Mas apenas Vinci tinha perguntas a fazer. Renind nunca tocava no assunto, pelo menos na frente dele.

Outras lembranças estavam na fila, mas não tiveram tempo de se apresentarem, voltaram então tristes ao Salão das Memórias Esquecidas.

- Então aí está você meu filho! Que susto você me deu! - A voz do pai era de sinceridade, ele estava realmente muito preocupado.

Vinci fez uma cara de: Hã??

- Temos coisas urgentes a fazer e assuntos urgentes a tratar!

Inesperadamente a rotina tinha sido quebrada. A rotina, bem definida da vida de Vinci Laipotem - jogador amador de Coco Seco de Mastro Forte - mudaria subitamente, com a intensidade do encontro que ele teve com o olíre Cinquem Laminuel, de Dol Sirim, a Cidade do Mar.

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Um mapa de Rivergard, pode ser visto nos meus e-livros.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 30/04/2010
Reeditado em 05/08/2011
Código do texto: T2229883
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