O Reino Esquecido

CAPÍTULO 1: O PORTAL

Sempre que chove muito, recordo-me do que minha irmã dizia quando ainda era uma criança. Ela falava que as gotas d água da chuva eram as lágrimas dos deuses. Eles choravam quando percebiam que as coisas estavam erradas no mundo dos homens. Se isso for verdade, então os deuses estavam muito tristes, especialmente com o reino de Ludgrim...

Faz muito frio essa época do ano, ainda mais de manhã cedo e numa das maiores montanhas de Tagmar.

- Arthas! - gritou alguém.

Sonhava com minha irmã mais velha. Lia tinha 26 anos, mas parecia bem mais nova. Ela ajudava nossa mãe nas tarefas domésticas e também a cuidar dos irmãos mais novos, era ruiva, assim com nossa mãe, magra e muito simpática, tinha olhos claros e inquietos como os de uma coruja, e enxergava tão bem com eles, que às vezes papai a levava para caçar lebres na parte sul da floresta. Ela sempre conseguia achar as lebres que teimavam em se esconder sob as folhas secas do outono.

Estávamos fugindo para dentro da floresta de Quelm. Malditos orcos da floresta! Naquela noite decidiram invadir o vilarejo onde morávamos. Trucidaram as pessoas sem piedade; mulheres, crianças, velhos e doentes. Um ataque que visava destruir tudo e todos. Eles eram muitos e os habitantes eram aldeões e camponeses indefesos armados apenas com pás e enxadas. Invadiram a vila, levaram tudo que tinha algum valor para eles e depois queimaram nossas casas e nossas plantações. Atacaram com ódio e mancharam com sangue todo o pequeno vilarejo em que nasci.

Não houve tempo para planejar uma fuga. Um estrondo e a porta de nossa pequena casa foi arremessada para o interior com violência . Estava abraçado com Lia e a porta viajou na nossa direção , nos atingiu e arremessou para a parede próxima à janela, e foi exatamente isso que salvou nossas vidas. Um enorme orco entrou em nossa casa rosnando e salivando como um animal faminto, como se nós fôssemos o seu jantar, tinha o rosto enrugado e sujo de sangue , olhos arregalados e um olhar assassino, ele tinha apenas uma orelha com três argolas presas a ela, o outro lado da cabeça tinha a pele lisa e esticada,parecia ter sido atingido por alguma lâmina que deformou o seu rosto e arrancou a outra orelha. Esse foi o maior orco que eu vi na vida, mais tarde soube que não era um orco, e sim um ogro, ele tinha uma cabeça recém-decepada de um jovem camponês amarrada ao seu cinto gotejando sangue e uma grande clava coberta de pregos e sangue que ele segurava com as duas mãos. Meu pai gritou para que fugíssemos pela janela enquanto ele corria na direção da criatura. Lia e eu, que estávamos perto da janela, pulamos para fora da casa e vimos que mais dois orcos vinham na nossa direção contornando pelo lado de fora da casa. Lia puxou-me pelo braço e começamos a correr dali. Ouvimos os gritos de nossa família sendo trucidada enquanto fugíamos desesperados, e logo os gritos deles misturaram-se aos de outras pessoas do vilarejo. Tudo ardia em chamas e a fumaça dificultava a visão. Mas Lia enxergava muito bem e guiou-nos para fora do vilarejo. Afastamos uns 40 metros do vilarejo e enquanto eu tentava recuperar o fôlego, com as mãos no joelho e aos prantos, ouvia os gritos e via a fumaça que saía das paliçadas das casas em chamas e subia aos céus como um turbilhão negro, tentava imaginar que estava sonhando, que aquilo não era verdade, que meu pai conseguiria derrotar o ogro grandão e fugir dali a salvo com minha mãe e meus irmãos pequenos, mas no fundo eu sabia que eles não tinham a menor chance, meu pai era um aldeão que sabia muito bem plantar, colher e arar o solo, mas não era um guerreiro; não sabia lutar. O desespero que sentia retirava o ar dos meus pulmões e me fazia perder as forças, tentava respirar, mas soluçava aos prantos, Lia me segurava forte contra o seu peito e chorava como nunca tinha visto ela chorar, estava sem forças, talvez a única coisa que a mantinha ali de pé, era eu. Ela sempre fora responsável, cuidava de todos os irmãos e cozinhava quando mamãe adoecia, ela não poderia se entregar ao desespero e reduzir mais ainda as nossas chances de sobreviver. De longe, vimos o terror do ataque, havia pessoas enforcadas nos trocos de árvores próximas ao vilarejo e corpos esquartejados no chão, alguns aldeões ainda tentavam lutar em vão contra o inevitável: a morte. Aquele foi o pior dia de minha vida, perdi quase toda minha família, exceto Lia.

- Arthas! Repetia insistente aquela voz.

Precisávamos fugir dali o mais rápido possível; então começamos a subir a montanha desesperadamente na direção de Quelm, que era o lugar mais seguro. Lia sabia que Quelm era território anão, alguns mercadores do nosso vilarejo às vezes subiam a montanha para comercializar iguarias com os anões , mas eram muito pouco os humanos que tinham permissão para entrar no naquele território, e nós não estávamos entre esses. Os orcos não gostavam de subir a montanha, porque os anões que patrulhavam não toleravam a sua presença, aliás, eles não toleravam a presença de ninguém e eram extremamente hostis contra invasores, principalmente os orcos, mas só era possível encontrar patrulhas de anões do meio da montanha para cima, ou seja, para sobreviver teríamos que tentar alcançar as árvores Quelm, que marcavam o início do território anão. Não estávamos sozinhos naquela subida perigosa e desesperada, alguns sobreviventes do ataque seguiam conosco. Os mais fracos eram pouco a pouco alcançados e destroçados pelos facões e lanças dos orcos sanguinários que vinham perseguindo os sobreviventes na tentativa de acabar com todos antes que pudessem chegar ao território anão. À noite a subida é ainda mais perigosa e a maioria das pessoas não estava acostumada a andar na floresta naquele período, diferente do orcos, que viviam na floresta e conheciam muito bem a mata. Alcançamos Quelm ao amanhecer, estávamos esfarrapados, sujos e com alguns ferimentos. Além de minha irmã e eu, Ramos e Norman também conseguiram chegar, igualmente feridos e abalados. Nunca mais tive notícia de nenhum outro sobrevivente do banho de sangue proporcionado por aquelas criaturas naquela noite.

Ao perceber que não estávamos mais sendo seguidos, desabamos no chão exaustos, tínhamos corrido, chorado e sido perseguidos durante praticamente a noite toda. Meu corpo todo doía, minha cabeça estava prestes a explodir, sentia câimbras nas pernas, uma forte dor no peito e o coração batendo em ritmo alucinante. Paramos para descansar em uma clareira na mata. Não tinha mais forças nas pernas para manter-me em pé. Deitei, meu corpo exaurido pela fuga montanha acima durante toda a noite, e tudo ficou escuro. Não me lembro de como estava Lia e os outros ao chegar à clareira, mas tenho certeza que estavam na mesma condição, ou piores do que eu.

- Arthas!

Pela manhã fomos encontrados por uma patrulha de guerreiros anões e levados ao líder de Quelm. O vilarejo de Quelm era cercado por imensas muralhas construídas com toras das árvores Quelm, que na voz da pedra significa “Resistência”. São árvores exclusivas daquela região, dizem que só nascem ali por causa do solo sagrado da floresta onde há muitos anos houve uma grande batalha entre os deuses e os titãs. A madeira da árvore Quelm é extremamente resistente e é conhecida em todo reino por isso. O vilarejo de Quelm fica na encosta de um grande penhasco, quase no cume da montanha, tendo a grande floresta de Quelm a sua frente. Uma névoa criada pelo ar frio do alto da montanha estava sempre presente, e dava um tom sombrio ao lugar. O líder do vilarejo era Hedro, um mal-humorado e mal educado anão, tinha uma cicatriz na testa e uma grande barba branca já denunciando sua idade, seus poucos cabelos também eram brancos e contrastavam com seus dentes escuros, a maioria podre. Sua voz era grossa e lembrava o rugido de um urso quando ele falava.

- Arthas! Acorde! - gritava uma voz grossa e bem familiar.

Sempre sonho com o dia do ataque e de minha chegada a Quelm. Lembro da primeira vez que atravessei as grandes e firmes muralhas de Quelm. O portão principal do vilarejo era enorme apesar dos habitantes não serem altos. O portão que dava acesso a uma praça precisava ser aberto por 3 ou 4 anões adultos que rodavam uma espécie de leme para abri-lo. Havia duas torres de observação uma de cada lado do portão e alguns anões em cima delas com machadinhas nos cintos e gibões de pele que os deixavam mais largos do que normalmente eles já eram, protegia-os do frio e ainda serviam como armadura, quase todos os anões guerreiros de Quelm usavam bacinetes ou elmos abertos deixando seus rostos brutos e invocados à mostra. A grande maioria das construções era feita de pedra e tinham um aspecto rústico e antigo,outras tantas casas eram buracos escavados na própria montanha com portas de madeira que moldavam a abertura do buraco. Quelm era mais simples do que eu imaginava.

Cresci ouvindo diversas histórias sobre os anões que moravam em Quelm, algumas histórias eram fantásticas e durante boa parte da minha infância desejei ser um anão guerreiro, e os anões eram realmente excelentes guerreiros,exatamente como as histórias contavam.

Quando os gritos de Ramos finalmente arracaram-me do sonho e comecei a abrir meus olhos, senti imediatamente o cheiro de terra molhada da floresta. Chovia sem parar há uma semana, às vezes garoas que mal conseguiam molhar os cabelos, às vezes fortes tempestades com trovões que pareciam o rugido de um animal gigantesco enfurecido e raios que apareciam de repente e iluminavam o céu como se naquele rápido instante fosse dia novamente.

- Já está na minha vez? - perguntei a Ramos ainda sonolento e cansado por ter dormido apenas algumas horas - Otávio Ramos é meu melhor amigo, cresceu junto comigo no vilarejo onde hoje existe apenas um descampado sujo e fedorento na floresta. Ele é um sujeito enorme, com ombros largos e músculos grandes e evidentes. Aos 23 anos, mesma idade que eu, já está no auge de sua forma física.

- Claro – respondeu Ramos com seus olhos fundos e atordoado de sono, ficava ainda mais carrancudo quando estava com sono. – Não agüento mais vigiar essa droga de floresta. Nada acontece. Toda noite é a mesma droga!– disse ele ao agachar para tirar um velho cobertor retalhado de dentro de uma das gavetas que ficavam no interior da torre de guarita ao leste do grande portão de Quelm.

Ramos ficava mal-humorado todas as vezes que éramos escolhidos para vigiar o vilarejo. Ele tinha razão, era realmente muito entediante ficar ali parado olhando para a floresta, para nos defender de ataques que nunca vinham. A noite demorava muito, as horas pareciam dias e além de tudo, fazia muito frio no alto da montanha e naqueles dias, não parava de chover, o que tornava a noite ainda mais fria.

Ramos e Norman foram acolhidos por Hedro na noite em que chegamos, ambos moravam e trabalhavam em casa. Norman trabalhava na cozinha, pois era muito magro e de uma aparência extremamente frágil, vivia doente. Ramos cortava lenha, carregava pedras e fazia o trabalho pesado para Hedro. A tarde aprendia o que Hedro chamava de “a arte da guerra”, na verdade, ele levava Ramos para espancá-lo nos treinamentos de luta, porque nenhum anão de Quelm gostava de treinar com ele, devido a sua brutalidade e perícia com o machado. Os guerreiros anões,muito orgulhosos, não apreciavam ser derrotados nem mesmo nos treinamentos. Diferente do enorme machado muito bem afiado com o cabo em formato de dragão que ele levava para todo lugar que ia, quando treinavam, eles usavam machados de madeira que permitia que Ramos sobrevivesse aos treinamentos apenas com hematomas e dores no corpo. Ramos aprendeu a manejar o machado exatamente como Hedro, imitava todos os seus movimentos de ataque: como ladear o inimigo para confundi-lo antes de desferir um golpe e como aparar golpes usando o cabo e a lâmina do machado. Ramos bloqueava muito bem, porque no treinamento Hedro sempre o atacava várias vezes tentando acertar sua cabeça, uma vez conseguiu quebrar o nariz e dois dentes de Ramos com uma única pancada.

– É a sua vez de vigiar as árvores Arthas, preste bem atenção, hoje deve ser uma noite agitada – disse ele com ironia.

– Sempre é – respondi levantando-me. Ao sair debaixo do cobertor senti instantaneamente a névoa da montanha enrijecer os movimentos dos dedos e tocar a fina pele do rosto com ardor. Peguei a bainha da minha espada e prendi no meu cinto, também levava uma adaga feita por mim mesmo na ferraria do Sr.Dorian. O Sr. Dorian é um anão de bom coração, era um dos mais velhos do vilarejo e foi ele que me ofereceu abrigo em troca de serviços na ferraria. Aprendi a ser um ótimo ferreiro com ele. Minha irmã também foi acolhida por ele, e trabalhava comigo na ferraria, junto com os dois sobrinhos do Sr.Dorian. Minha adaga foi a primeira arma que forjei para mim, tinha um cabo grosso de madeira Quelm e as letras AN forjadas na base da Lâmina, eram minhas iniciais “Arthas Navarro”. Quando a fiz imaginava cravá-la na garganta daquele maldito ogro que invadiu minha casa e matou minha família, por isso coloquei minhas iniciais na adaga, para que aquela criatura maldita e os deuses do inferno leiam quando o mandar para lá, e saibam que fui eu que o mandei.

Levantei-me e coloquei meu cobertor em cima de Ramos, ele sempre se cobria com dois por causa do seu tamanho. Espreguicei-me enquanto o grandão se acomodava no chão frio da torre. Odiávamos fazer aquele tipo de serviço, mas desde que entramos para guarda e nos tornamos guerreiros de Quelm, há oito meses, não tínhamos escolha. O Sr. Dorian uma vez disse-me que os anões estavam começando a confiar em nós, e por isso Hedro nos integrou à guarda da cidade e nos nomeou guerreiros de Quelm. Entretanto sempre achei que os reais motivos para a nossa nomeação a guerreiros era a mágoa que tínhamos dos orcos da montanha. Os anões sabiam que, se nos treinassem, seríamos os maiores caçadores de orcos de todo o reino devido a carnificina com nossa família. Eu era extremamente rápido com a espada, tinha muita força no braço já naquela época e conseguia desferir golpes arrasadores. Logo que fui integrado à tropa de guerreiros treinava todos os dias, às vezes até sozinho no frio da noite quando a névoa já tinha encoberto o vilarejo inteiro. Aprendi a sempre manter o escudo firme para que golpes fortes, como os de Hedro ou Ramos, não quebrassem o meu braço durante os treinos. Os guerreiros anões sabiam lutar como ninguém e me ensinaram muita coisa a respeito de combates.

Ramos e eu sempre ficávamos encarregados de patrulhar a floresta nos arredores de Quelm, para proteger o vilarejo dos orcos ou de qualquer outros invasores, mas às vezes, Hedro nos convocava para vigiar na torre à noite. Na verdade Ramos e eu não patrulhávamos a floresta, e sim caçávamos nela, e os anões sabiam disso. Eles sabiam que na primeira oportunidade de nos vingar dos malditos orcos não hesitaríamos em fazê-lo. Lembro ainda do primeiro orco que matei em Quelm, era nossa terceira vez patrulhando a floresta e estávamos muito ansiosos pelo nosso primeiro reencontro desde o dia que eles invadiram e aniquilaram nosso vilarejo. Caía uma verdadeira tempestade nesse dia, o que facilitou a nossa aproximação ao local onde as criaturas estavam, o barulho da chuva e os estrondos provocados pelos trovões camuflavam os ruídos provocados pela nossa aproximação desajeitada acentuada pelos nossos pesados gibões de pele. As criaturas tinham caçado algum animal na floresta e estavam se alimentando ao redor da caça no momento em que subitamente saímos de trás das árvores. Gritei e corri na direção do primeiro orco que vi com minha espada em punho e meu escudo feito de madeira Quelm. Ele usava uma espécie de armadura de couro com ossos e estava de costas para mim. Ramos que era mais pesado veio em seguida, portando seu enorme machado de guerra, segurando-o firme com as duas mãos. O fato de portar uma arma pesada e manuseá-la com duas mãos deixava-o lento para correr.

Minha espada atravessou as costas da criatura, rompendo sua frágil cota de couro com ossos, saindo pelo peito e fazendo jorrar o sangue dele na carniça que estavam comendo, depositei toda a raiva acumulada desde o dia do ataque ao vilarejo, meu coração batia à toda velocidade e estava tomado por um frenesi assassino, com os olhos arregalados e apertando os dentes quase a ponto de quebrá-los. Desencravei a espada do corpo inerte da criatura, enquanto os outros três se levantavam surpresos. Raivosos e rosnando alto empunharam suas lanças, enquanto um estrondo provocado por um trovão rugia em nossos ouvidos. Ramos ainda correndo, tomou a minha frente e com toda a força desferiu um golpe lateral na altura da cintura de uma criatura. Esse era o golpe mais lento e mais avassalador que Ramos sabia fazer, ele segurava o pesado e grande machado do lado direito do seu corpo com as duas mãos próximas e firmes no final do cabo do machado, corria o mais rápido que podia e quando estava a alguns instantes do alvo adiantava a perna esquerda para fincá-la no chão, e girava a cintura e os braços com toda a força o machado da direita para a esquerda onde estava o alvo e provocava um golpe giratório que contava com toda a sua força e era agravado pelo seu peso. Ele aprendeu esse golpe com Hedro, e o chamava de “Escrom” que na Voz da Pedra,idioma anão, significa “rebatida fulminante”. O machado cravou um pouco abaixo da cintura da criatura rompendo sua pele verde e suja e continuou a avançar por dentre o seu corpo partindo ossos e espirrando sangue em tudo que estava próximo até arrancar a sua perna e arremessar o corpo agonizante em cima do outro orco que estava ao lado derrubando-o também no chão. O Escrom era um golpe lento, que sendo feito por um brutamonte do tamanho de Ramos tornava-se mais lento ainda, porém, sendo feito no momento certo era absolutamente mortal pelo seu tamanho e força. Cravei minha espada no peito do orco que ainda tentava remover o corpo do amputado de cima si. Ele gritou alto e se debateu no chão quando seu peito foi perfurado pela minha espada. Um raio cortou o céu e iluminou a fuga do orco que ainda não tinha sido atingido. Ele sabia que não tinha chance, pois em alguns segundos perdeu três de seus aliados entre eles o que parecia ser o líder do grupo, a julgar pelo seu tamanho e pelos trajes, mas que agora agonizava no chão sem uma perna dentro de uma enorme poça do seu próprio sangue. Corremos atrás daquela criatura, não queria deixá-lo escapar, assim como eles não pouparam ninguém no momento em que destruíram o lugar onde eu nasci. Ele era mais rápido, pois nossos gibões pesados reduziam nossa mobilidade, estávamos aos poucos sendo deixados para trás, a criatura rosnava desesperada quando olhava para trás e nos via no seu encalço. Ramos, sem fôlego, parou. Aos poucos o orco ganhava cada vez mais distância, até que eu parei, peguei minha adaga na cintura e arremessei com toda a força na direção dele, mas não seria aquela a primeira criatura a ir para o inferno com as minhas iniciais. Minha adaga cravou numa árvore e aquele maldito orco escapou, ao som dos trovões que novamente ecoaram no céu.

A chuva reduziu sua intensidade e voltamos ao local onde tínhamos atacado as criaturas. O orco agonizante já tinha morrido. Desejei não estar chovendo tanto para que eu pudesse queimá-los, queria que eles tivessem um fim parecido com o da minha família, mas chovia tanto que nem as tochas que normalmente levávamos nas patrulhas à noite conseguiam ficar acessas. Ramos e eu olhamos durante um tempo para os orcos mortos e nos orgulhamos daquilo, sentamos próximos ao local para descansar e sentir o mau cheiro do sangue das criaturas, o cheiro da nossa vingança; saboreamos aquele momento. O treinamento tinha funcionado, éramos guerreiros de verdade, matamos nossas primeiras criaturas e embora elas tenham sido pegas de surpresa lutamos bem e conseguimos ser exatamente o que Hedro sempre pedia para seus guerreiros: implacáveis. Ainda não me sentia totalmente vingado, apenas três orcos não era o suficiente por toda dor e sofrimento causados a mim, minha irmã e aos outros. Ramos olhava com ódio as criaturas esvaindo-se em sangue no chão, um olhar que intimidaria até um anão guerreiro experiente. Desse dia em diante, sempre que ficamos na patrulha da floresta matávamos orcos. Mandei muitos deles ao inferno com minha adaga que apelidei carinhosamente de “Talon” que na voz da pedra significava “Vingança”. Ramos e eu voltávamos da floresta pela manhã, mesmo que nosso período de guarda acabasse antes disso. Voltávamos sempre sujos de sangue e com o tempo a cor de nossos gibões foi se tornando avermelhada. Os anões sabiam que não estávamos simplesmente patrulhando, estávamos caçando. Os guerreiros que vigiavam da torre às vezes ouviam os gritos dos orcos na floresta sendo estripados por nossas armas e às vezes ouviam nossos gritos altos e amedrontadores durante o combate. Com o passar do tempo, tornamos-nos guerreiros experientes em combater, acumulamos cicatrizes e feridas pelo corpo, mas, acima de tudo, muito conhecimento e habilidade. Toda noite que íamos patrulhar na floresta eu desejava encontrar aquele maldito ogro com as argolas na orelha, mas nunca o encontrei. Talvez isso não tenha sido tão ruim assim, pois os ogros tinham três vezes o tamanho e a força de um orco e não sabia se estava preparado para enfrentar um ainda.

- Essa droga de chuva não dá trégua nem por uma noite – disse Ramos enquanto bocejava ao mesmo tempo.

- O Sr. Dorian disse-me que nunca choveu tanto na montanha, e ele está ficando preocupado com as plantações de nanímea, sem contar as goteiras que surgem na ferraria, só semana passada eu e Lia fechamos cinco malditas goteiras.

- Qual é o problema com as plantações de nanímea? – perguntou Ramos preocupado, ele adora comer nanímeas, e comia muitas na casa de Hedro, que dizia que a raiz de nanímea endurecia a pele e acelerava os reflexos para o combate, mas sempre achei muito ruim, amargo e duro de mastigar.

- As nanímeas estão morrendo por causa do excesso de chuva esse ano. Ele disse que se continuar assim, em quatro meses não haverá mais nanímeas em Quelm.

-Você acha que essas chuvas têm relação com aquelas coisas que pegamos naquele dia? - perguntou Ramos ainda mantendo uma feição evidente de preocupação no rosto. Há duas semanas , durante uma de nossas rondas pela floresta, encontramos um grupo de pessoas mortas dentro de uma caverna na floresta. Eram dois corpos de homens de meia idade e um elfo. Eu nuca tinha visto um elfo antes, mas já sabia como eram porque os anões sempre nos alertavam sobre eles, diziam para nunca confiar num elfo e tomar muito cuidado, porque eles são seres egoístas e traidores. O elfo estava caído mais ao fundo da caverna vestido com um robe preto, tinha cabelos dourados como ouro e portava muitas jóias e anéis. Ele estava com a pele roxa em todo o corpo, suas veias eram verdes e visíveis sobre a pela roxa e os olhos totalmente brancos, assim como os dois homens que estavam com ele. Estavam com a boca aberta, como se nos momentos finais de vida, estivessem gritando e apavorados. Era inquietante olhar para eles. Os dois homens estavam armados, mas não havia sinais de luta, as suas espadas ainda estavam na bainha e os escudos nas costas. Ramos remexia nos corpos dos dois enquanto eu olhava atentamente o corpo do elfo caído recostado sobre uma pedra no fundo da caverna. O elfo segurava um pergaminho velho com ambas as mãos e tinha um cordão com um medalhão de prata em forma de águia pendurado no seu fino pescoço. A águia tinha as asas abertas e dois rubis vermelhos no lugar dos olhos. Ramos havia pegado um arco de um dos homens, arcos eram armas que os anões não sabiam fazer. Ramos levou também uma aljava cheia de flechas e uma bolsa com moedas que estava com eles. Aproveitei a bolsa de Ramos e coloquei as jóias do elfo, incluindo um anel velho de ferro enferrujado, que destoava dos outros anéis e jóias polidas e brilhantes que ele carregava, e o medalhão da águia de prata. Ramos ainda enrolou, fechou e colocou o pergaminho velho que estava nas mãos do elfo na bolsa, como não sabíamos ler nem escrever, não nos interessamos por ele.

- Não sei, mas aquelas coisas estão muito bem guardadas , desde aquele dia. As únicas pessoas que sabem o que aconteceu naquele dia e que tais coisas existem são eu, você, o Norman e Lia. – disse eu murmurando para Ramos.

- É melhor assim, se os anões souberem que pegamos essas coisas de um elfo morto na floresta com os olhos totalmente brancos, dirão que é uma maldição élfica, como sempre, e vão querer destruir tudo. Provavelmente terão a certeza de que essa ininterrupta chuva em suas terras foi algo que aquele elfo fez antes de morrer– disse Ramos falando baixo.

- O que você acha de darmos o pergaminho para Norman ler? – Perguntei a Ramos franzindo a testa ainda sem saber se era isso mesmo que queria. Norman sabia ler, porque era filho do sr.Molzer, um homem sábio que vivia no nosso vilarejo e sempre dava conselhos sobre diversas coisas para os aldeões. Era muito respeitado e convincente , sempre seus conselhos eram atendidos pelos moradores do vilarejo, o que o tornava uma espécie de líder. Ele ensinou Norman, seu único filho, a ler e a escrever, assim como ensinou Lia e também a um rapaz que morreu no ataque dos orcos. Ramos e eu não tínhamos vontade de aprender a ler nem a escrever, achamos que era perca de tempo e nunca aprenderíamos.

Quase não se via Norman fora do casebre onde morava somente com seu pai. Sua mãe morreu no parto e ele nunca a conheceu. Norman deve ter a mesma idade que Lia, e dificilmente é visto sorrindo ou demonstrando afeto por alguém ou alguma coisa, é muito sério e observador. Desde o dia do ataque, ele se aproximou mais de nós e passamos a confiar mais nele e até a tratá-lo como um amigo. Ele gostava de ler sobre lendas e sobre coisas relacionadas à magia. Sempre dizia que um dia ia tornar-se um poderoso mago. Mas atualmente ele não passa de um aprendiz que sabe fazer alguns truques legais ensinados pelo pai. Norman é mais baixo do que eu e Ramos e muito magro. Tem a pele extremamente clara e o rosto fino. Há duas semanas descrevi para ele e Lia a noite em que achamos os objetos. Norman pela primeira vez desde que chegou a Quelm demonstrou real interesse por alguma coisa ao pedir-me para ler o pergaminho e analisar as outras coisas. Mas recusei e decidi guardar tudo alegando que poderiam estar amaldiçoados pelos elfos, como nas histórias que o Sr. Dorian contava-me.

- Não sei, talvez possa ser perigoso. E se aquelas pessoas morreram porque o elfo decidiu ler aquilo? Poderemos ter o mesmo fim – disse Ramos lembrando a fisionomia de desespero dos corpos na caverna. Essa lembrança às vezes embrulhava-me o estômago. Mesmo já tendo trucidado e estripado orcos inúmeras vezes na floresta da Montanha de Quelm, eles eram inimigos que podíamos ver e enfrentar. Bem diferente de uma maldição élfica que nos mataria num instante e não daria a menor chance de nos defendermos. Não gostava da idéia de ter uma morte estúpida. Gostaria de morrer em combate; como um guerreiro; com uma espada na mão.

- Às vezes acho que estamos privando Norman de evoluir. Sei que ele nunca vai saber lutar e ser um guerreiro como nós. E também sabemos que ele só fica trabalhando na cozinha de Hedro porque não serviria para outra coisa em Quelm. Ele é fraco, não agüenta levar muito peso, tem fortes dores nas costas e adoece com freqüência. Acho que aquele pergaminho pode dar a ele algo com que ele possa evoluir, ou pelo menos se entreter, assim com o arco que você deu a Lia. – Disse Ramos, referindo-se ao dia em que ele deu para Lia o arco e as flechas encontradas na caverna. Ela ficou muito feliz, como nunca tinha ficado desde aquela noite de horror criada pelos orcos há dois anos.

- É mesmo. É mais fácil ver sua irmã sem as botas do que sem aquele Arco. – respondeu ele sorrindo. Lia havia-se tornado uma excelente arqueira.Treinava atirando em alvos nas árvores todos os dias. Sua visão aguçada permitia que ela acertasse alvos bem difíceis.Era a arma perfeita para ela, que também desejava poder caçar as criaturas que mataram nossa família. Apesar disso nunca deixei-a ir conosco em nossas patrulhas. Porque sempre achei perigoso e não queria que arriscasse sua vida. Soube que uma vez ela saiu escondida na floresta, e voltou com menos flechas do que tinha ido. O Sr. Dorian havia ensinado-lhe a fazer pontas de flechas de metal na ferraria.

– Acho que amanhã podemos trazer o Normam para patrulhar conosco na floresta. Lá mostramos a ele tudo que está guardado na bolsa. – disse Ramos enquanto bocejava novamente.

–Está certo. Agora vá dormir – disse eu enquanto acenava para o anão que estava na torre do outro lado do portão de guarda. Os anões ficavam quase imóveis olhando fixamente para frente durante quase todo o turno, como se fossem pedras em cima da torre. Nunca consegui manter-me imóvel num frio daquele. Sempre ficava andando de um lado para o outro tentando me esquentar um pouco. Apesar do Gibão de peles e das roupas de inverno, ainda sentia muito frio.

A noite passou bem lentamente, igual a todas as outras em que ficamos de vigia na torre. Queria conversar com alguém, mas a maioria dos anões guerreiros não gostava muito de conversar, eram muito sérios, diferente dos sobrinhos do Sr. Dorian, que são os anões mais simpáticos que existem em Quelm, depois do tio deles.

No final da madrugada acordei Ramos, estava na hora do seu último turno e no final do meu. Cada um ficava duas vezes vigiando por noite. Fui à ferraria já quase amanhecendo e dormi no quartinho que ficava nos fundos. Onde eu e Lia morávamos.

Acordei no final da manhã, quase na hora do almoço, com o barulho tradicional provocado pelos martelos na ferraria. Desde que fui recrutado pela guarda de Quelm, não trabalhava mais ali, porém continuava morando lá, e sempre que tinha um tempo livre procurava ajudar Lia e os outros.

Ainda no quartinho, reparei que Lia tinha feito um novo feixe de flechas. O feixe estava amarrado por uma fina corda e todas as flechas tinham pontas de metal.

Ouvi muitos trovões, e preocupei-me com isso. Pois só começava a trovejar daquele jeito à tarde, quando a chuva apertava e caía impiedosamente noite adentro. Pela manhã chovia pouco. Lembrei-me da conversa com Ramos na noite anterior e pensei se realmente pudesse aquele elfo da caverna ter alguma coisa a ver com essas chuvas. Peguei a bolsa que guardava desde aquela noite em baixo da minha cama e reparei que uma luminosidade vermelha saía de dentro, fachos de luz saíam pelas frestas. Não entendia o que poderia causar aquele brilho dentro da bolsa, já que da última vez que a vi, nada brilhava. Comecei a soltar as amarras que fechavam, franzi a testa e apertei os olhos temendo uma forte luminosidade ao abrí-la ou talvez uma maldição élfica que me deixaria com a pele roxa e tomaria minha vida. Tive receio de morrer ali naquele quartinho escuro e decidi prender novamente as amarras e não abrir a bolsa. Guardei-a de volta.

- Arthas, você já acordou? – Disse Lia ao entrar no quarto e encontrar-me sentado na cama amontoando feno e madeira em baixo para esconder ainda mais a bolsa. Ela estava com os longos cabelos presos por uma presilha em forma de escaravelho atrás da cabeça, vestia uma armadura de couro e segurava um velho elmo de ferro em uma das mãos – O que achou ? – disse ela olhando para a própria armadura de couro. Era uma armadura leve, não servia para um guerreiro. Era frágil nas pernas e não tinha proteção alguma nos braços. O peitoral foi nitidamente adaptado para os seios, o que levou-me a crer que ela deveria ter encontrado a armadura em algum homem morto pelos orcos na floresta, já que os anões não fazem armaduras de couro e muito menos a adaptariam para uma mulher.

- Achei frágil, acho que um orco a mataria em segundos. – disse eu desdenhando.

- Deixe de bobeira Arthas! Vim dizer que começarei a patrulhar junto com você e Ramos essa noite. Já preparei minha armadura e fiz muitas flechas. E não adianta você falar que é perigoso, pois eu sei muito bem me defender e, como você bem sabe, já andei dando umas voltas pela floresta sozinha. – disse ela com as sobrancelhas levantadas em tom de desafio.

- E foi lá que você achou essas coisas? – disse eu apontando para a armadura e o elmo que colocara em cima da cama dela no quartinho.

- Sim. Eu conversei com o Sr. Dorian e ele disse que quando for com você eu poderei dormir até mais tarde no dia seguinte e trabalhar a partir da tarde.

- Tudo bem Lia. Então prometa-me que você só entra na floresta se for comigo agora, certo? – Já que ela estava começando a entrar na floresta para se vingar dos orcos e eu não podia fazer nada para detê-la, achei melhor que estivesse comigo, assim poderia protegê-la. Lia tinha uma personalidade forte, e era muito difícil dissuadi-la de fazer alguma coisa.

- Tudo bem! Eu prometo. Vou protegê-lo dos perigos como fazia quando você era pequeno – disse ela sorrindo para mim.

Conversamos durante um bom tempo sobre as idas dela à floresta e ela confessou que já tinha acertado flechas em alguns orcos na floresta, mas na maioria das vezes, corria depois de acertar o alvo com medo de que a criatura viesse atrás dela. Eu sabia, contudo, que uma flechada bem lançada poderia acabar com qualquer um, até mesmo com os destemidos guerreiros anões de Quelm. Sabia também que Lia tinha uma visão excepcional e poderia acertar um alvo a boa distância e com grande precisão. Contei a ela que Norman também iria conosco essa noite, ela ficou surpresa e ao mesmo tempo feliz com isso. Lia, assim como eu e Ramos, tinha começado a gostar dele. Ela o achava meio egocêntrico, mas gostava de conversar com ele, porque era sábio e ensinava muitas coisas.

Ao final da tarde, comecei os preparos para render a patrulha da zona norte da floresta. Eram ao todo 4 duplas ou trios que patrulhavam diferentes áreas da floresta. A zona norte da floresta era a que eu e Ramos ficávamos responsáveis toda a noite. Peguei a bolsa do elfo, que não brilhava mais, e a coloquei dentro de minha sacola de couro velha e costurada inúmeras vezes por Lia. Vesti meu gibão de peles avermelhado, que elevava meu ego de guerreiro, pois sempre que o vestia lembrava-me das lutas na floresta e sentia-me bem; seguro e confiante. Prendi minha espada embainhada no meu cinto que levava também a Talon bem afiada presa a ele. Peguei meu escudo e o elmo. Ainda no quarto reparei que as coisas de Lia não estavam mais ali, o que me fez supor que ela já estaria pronta. Deveria estar pronta a horas, pensei. Estava ansiosa a tarde toda. Seria a primeira vez que iria a floresta junto comigo depois daquele fatídico dia em que perdemos nossa família. Apesar de ter acertado alguns orcos em suas aventuras floresta adentro de algumas semanas para cá, nunca contou com o respaldo de guerreiros para isso. Ela sabia que eram precisos muitos orcos para poder intimidar uma linha de frente composta por eu e Ramos. Nossos gibões avermelhados com o sangue de tantas mortes, nossa aparência bruta acentuada pelo convívio com os anões e nossos músculos a deixariam confortável para atirar suas flechas sem precisar correr logo em seguida. Ao sair da ferraria, vi que Ramos e Lia já me aguardavam ao lado do portão. Ela parecia uma das anãs ao lado do brutamonte, que também usava seu gibão avermelhado e seu enorme e afiado machado. Lia estava com sua armadura de couro leve, seu elmo na cabeça e duas aljavas, ambas na cintura, uma de cada lado. O Arco estava em suas costas e ela usava uma capa verde, que a deixaria camuflada entre as árvores da floresta. Fui ao encontro deles.

- Pronto pra mais um dia de guerra? – disse eu a Ramos dando um tapinha em suas costas

- Sempre – respondeu sorrindo ao me ver.

- Onde está o Norman? – perguntou Lia

- Já deveria estar aqui – respondi

- Ele está vindo para cá. Estava colocando aquele monte que quinquilharias dele na bolsa – disse Ramos

Pouco tempo depois, Norman juntou-se a nós. Ele levava uma bolsa, bem cheia, com vários objetos titilando dentro dela. Usava roupas de frio como todos nós, mas nenhuma armadura. Tinha anéis escuros de um tipo de metal que eu desconhecia que contrastavam com sua pele excessivamente pálida. Estava com uma aparência bem melhor, tinha feito a barba, e vestia roupas novas. Bem diferente do homem desgostoso da vida dos últimos anos, que andava sempre sério, mal-humorado e mal vestido. As coisas na bolsa tinham um significado muito especial para Norman, mesmo antes de vê-las. Significavam esperança. Trabalhara na cozinha de Hedro nos últimos anos, e não fazia outra coisa em Quelm além de ler os poucos livros que conseguiu trazer do ataque dos orcos e cozinhar. Era uma vida tediosa, ele não agüentava mais.

- Boa noite amigos! Estou ansioso pela nossa ida - disse Norman enquanto aproximava-se

- Depois de tanto tempo Norman - disse eu, sorrindo e colocando a mão no seu ombro.

- Mal posso esperar Arthas. – disse ele olhando para o portão de Quelm, que se abria para nossa passagem.

Chegava da floresta a patrulha com três anões que normalmente era rendida por mim e Ramos. Os anões entravam em Quelm com sinais de que haviam combatido. Um deles estava sem elmo e com um ferimento na cabeça coberto por uma tala de pano, tingida de vermelho. O sangue que já havia ensopado a tala, e escorria agora pelo rosto do anão que andava lentamente. Os outros estavam igualmente sujos e com marcas de sangue em seus gibões de pele e machados. Lia aproximou-se dos anões que chegavam e sentavam em um pedaço de tronco de árvore que servia de banco próximo a entrada.

- O que aconteceu com vocês? – perguntou Lia aos anões que encostavam seus machados no tronco e retiravam sua armadura do corpo cansado.

- Fomos atacados por um ogro e uma tropa de orcos – respondeu o anão com a tala ensangüentada na cabeça - Aquele maldito ogro quase partiu minha cabeça. Mas acabamos com eles – disse o anão com o rosto enfurecido.

- Como era o ogro que o atacou? Ele tinha uma orelha só, com argolas penduradas nela? – perguntei enquanto sentava ao lado do anão.

- Não. – rosnou enquanto cuspia sangue para o lado – Quando arranquei a sua cabeça com o meu machado ele ainda tinhas as duas orelhas – disse o anão gargalhando e provocando risos nos outros anões exaustos no tronco.

- Está na hora Arthas – disse Ramos

Estava na nossa hora de trabalhar. Então fomos para fora de Quelm em direção ao norte da floresta. Por um momento desejei que o ogro morto pelos anões na floresta fosse aquele maldito que matou minha família. Mas uma outra parte de mim desejava o contrário. Se fosse ele, eu jamais poderia vingar-me. Ainda queria muito enterrar Talon na garganta daquele infeliz.

Entramos na floresta, que já estava completamente escura àquela hora. Norman e eu carregávamos lanternas a óleo cedidas pelo Sr.Dorian, pois as tochas sempre apagavam quando a chuva ficava mais forte. Chovia pouco naquela hora. Lia estava com o arco armado na mão e apertava os olhos na tentativa de enxergar alguma coisa mais à frente.

- Podemos ir até a caverna onde achamos essas coisas para mostrar a vocês, assim não ficaremos na chuva enquanto Norman avalia os itens daquele elfo – disse eu em direção de Ramos, que andava na frente abrindo caminho com seu grande machado.

- Tudo bem, vamos para lá então. – concordou.

Andamos mais algum tempo em direção a caverna. A chuva tinha apertado como previsto. Chovia muito e Norman demonstrava muita irritação com o fato de as coisas dentro de sua bolsa estarem ficando molhadas. Estrondos de trovões e raios começaram a ficar cada vez mais fortes quando finalmente chegamos à entrada da caverna.

- Lá está ela – apontou Ramos para a entrada da caverna, que tinha ramos e galhas de plantas camuflando a entrada. Mas sabíamos que estava lá.

- Vamos logo para lá, não agüento mais essa chuva – disse Norman irritado.

Ramos brandiu seu machado contra os galhos e trepadeiras que cobriam a entrada da caverna e abriu uma passagem. Alguns morcegos voaram da pequena caverna com a chegada do grandão.

- Retire esses bichos daí Ramos – disse Lia fazendo cara de nojo, enquanto cobria o rosto com uma das mãos.

- Só tinha esses, ilumine aqui dentro Arthas, acho que não tem mais nada aqui – disse Ramos

Aproximei-me e iluminei lá dentro. Para minha surpresa e de Ramos, os corpos do elfo e dos outros dois humanos não estavam mais lá. A pequena caverna estava vazia. Entrei seguido de Lia e Norman na caverna. Ramos entrou por último, encostou-se à parede e ficou próximo da entrada. Sentei no fundo da caverna junto a Norman e Lia.

- Não deveria haver os corpos ou pelo menos a ossada daquelas pessoas aqui? – perguntou Lia, enquanto olhava para o teto procurando morcegos.

- Deviam estar aqui. Não se passou muito tempo desde a última vez que os vi. – disse eu enquanto encostava minha espada na parede da caverna e colocava o elmo em cima do escudo ao lado da lanterna no chão.

- Talvez tenham sido devorados por alguma criatura dessa floresta – disse Norman, que tirava algumas folhas de sua bolsa e colocava perto da lanterna para secarem.

- Aqui está Norman – disse eu, dando a bolsa do elfo para Norman - Tudo que achamos naquele dia está aí. Talvez você possa explicar para nós, o que são essas coisas.

Norman pegou a bolsa, e colocou entre suas pernas. Estava sentado no chão, no fundo da caverna ao meu lado. Lia andava de um lado para o outro, inquieta com a possível presença de morcegos no local, mas ao mesmo tempo demonstrava curiosidade em relação às coisas dentro da bolsa. Um barulho enorme entrou na caverna provocada por um trovão lá fora. Uma tempestade estava se aproximando. Ramos afastou-se da entrada, onde a água da chuva já o alcançara e entrou um pouco mais na caverna.

Norman retirou da bolsa o medalhão de prata em formato de águia. Olhava atentamente o objeto, quando de repente um brilho provocado pelos olhos de rubis da águia iluminou toda a caverna por um instante. Todos nós colocamos as mãos no rosto para proteger os olhos da intensidade daqueles flashes. Ao retirar a mão dos olhos quando o brilho desapareceu percebi que Norman não havia coberto os olhos. Era como se ele soubesse o que iria acontecer. Os olhos do medalhão tinham voltado ao normal. Norman sorria e olhava fascinado para o objeto, segurando-o com as duas mãos. Por um momento temi ficar com a pele roxa e ter o mesmo destino daquele elfo e seus amigos.

- O que você fez Norman? - perguntei um pouco assustado e me sentei um pouco mais afastado dele.

- Não tenha medo Arthas, ninguém vai morrer aqui - disse Norman enrolando a corrente do medalhão no braço.

- O que você está fazendo? - perguntou Lia

- Este medalhão é encantado. Ele é um objeto mágico, que pode ser muito mais valioso do que vocês pensam - disse Norman olhando para mim.

A chuva apertava lá fora, muitos estrondos provocados por raios e trovões caíam. Nunca na minha vida tinha visto uma chuva tão forte. A caverna era frequentemente iluminada pelos raios que cortavam o céu acima da floresta. Ventava muito, mais do que qualquer outro dia desde que chegamos a Quelm. Ramos se afastou novamente da entrada, pois o vento e os raios estavam começando a ficarem assustadores.

Norman pegou o pergaminho dentro da bolsa e começou a desdobrar com muito cuidado. Era frágil e estava um pouco molhado. Enquanto Norman olhava para o conteúdo do pergaminho, olhava atentamente para as feições do seu rosto, gostaria de ler naquele momento. Estava muito curioso.

- E aí? O que está escrito Norman? - perguntei curioso

- Está escrito em élfico, é fascinante! - disse Norman franzindo a testa e olhando atentamente para cada letra ou runa no pergaminho - O mesmo símbolo do medalhão está desenhado aqui dentro também. Os dois devem estar interligados.

- Leia para nós o que está escrito aí - disse Lia, sentando-se ao lado do jovem Mago.

- São feitiços! Apesar de estarem escritos em élfico, eu não consigo entender o significado dos feitiços. Existem runas mágicas sob as letras e é impossível remove-las manualmente. Não posso decifrar que feitiços são - respondeu ele incrédulo com sua própria resposta. Norman sempre sabia a resposta para todas as nossas perguntas, mas dessa vez, ele não conseguiria responder.

- Então esse pergaminho também é mágico? - perguntei

- O pergaminho não é mágico, porém ele possui feitiços - disse Norman olhando rapidamente para mim e baixando os olhos novamente para o pergaminho - Eu posso tentar ler, porque são runas élficas, mas são palavras sem significado para mim. Essas runas quando lidas devem liberar o feitiços abaixo delas. Sendo assim, após ler as runas elas desaparecem, mas não antes de executarem o feitiço.

- Isso significa, que se você ler a runa, vai executar o feitiço? - perguntou Lia

- Isso mesmo - respondeu Norman balançando positivamente a cabeça - Mas ao mesmo tempo se liberar-mos a runa, o feitiço ficará legível para mim, e poderemos usá-lo em outras ocasiões , teremos o feitiço abaixo dela para sempre.

- Não acho uma boa idéia - Disse Ramos olhando seriamente para Norman

- Pode ser um feitiço que pode nos beneficiar, e nos tirar da monotonia dessa montanha. Pode nos transformar em pessoas poderosas. O poder disso pode ser ilimitado - disse Norman excitado, com os olhos arregalados.

- Mas também pode nos matar! - disse Lia repreendendo a euforia do jovem Mago.

- Lia, já estamos morrendo aos poucos aqui nesse maldito lugar! Você não percebe? Essa chuva que não para, essa floresta cheia de criaturas que nos prendem dentro do vilarejo dos anões, esse maldito tédio sem fim! - disse Norman quase gritando, com a cabeça vermelha pelo esforço repentino.

- Estou muito curioso pra saber o que isso pode fazer, acho que Norman poderia ler uma vez, caso algo desse errado, a gente guarda isso e vende para os mercadores que passam em Quelm – disse eu. Estava muito curioso para saber o que aquelas coisas podiam fazer.

- Continuo não achando uma boa idéia – disse Ramos , enquanto olhava para fora da caverna.

- E aquele anel velho e enferrujado que está aí na bolsa? – perguntei a Norman – Ele também é encantado?

- Deixe-me ver – disse ele colocando o pergaminho ao lado da lanterna para pudesse secar um pouco.

Norman pegou o anel de ferro velho e enferrujado dentro da bolsa e franziu a testa ao vê-lo. Girava o anel de um lado para o outro com uma das mãos e apertava os olhos como se tentasse ler alguma coisa nele.

- Não acho normal que um nobre elfo, andasse por aí cheio de jóias, itens encantados e um velho anel enferrujado na mão. Com certeza esse anel tem alguma coisa de especial – disse ele enquanto esfregava o anel em sua roupa a fim de limpá-lo.

- Aqui está – disse Norman sorrindo – Eu sabia!

- O que foi? – perguntei curioso

- Esse anel é a chave para alguma coisa. É o que mais ou menos está escrito aqui. A chave para “Shamy Rock”.

- Shamy Rock?! Nunca ouvi falar – disse eu.

- Eu também nunca ouvi falar desse lugar. Tome, guarde isso com você – disse Norman, entregando o anel – acho melhor você colocar no dedo, senão é capaz de perdê-lo.

- Tudo bem – disse eu, enquanto pegava o anel de sua mão. Coloquei o anel no dedo. Era um anel muito feio, mas esperava que ele desse sorte.

Norman pegou o pergaminho que tinha secado ao calor emitido pela lanterna e começou a ler. Estava ficando muito frio ali dentro, caía um temporal lá fora. Agrupamo-nos no fundo da caverna ao redor do jovem mago a fim de nos aquecermos. Colocamos as duas lanternas juntas, para concentrar mais o calor e ficamos próximos uns aos outros. Enquanto Norman lia, ficávamos ouvindo os trovões da tempestade.

- É impossível, não consigo saber o significado desses feitiços. Só tem um jeito de descobrir – disse Norman frustrado – Terei que ler as palavras élficas da runa para removê-las. Isso lançará o feitiço, que eu não tenho como saber qual é.

- Acho que podemos arriscar – disse eu. Sempre fui muito curioso, e agora estava com muita vontade de saber o que poderia acontecer caso Norman lê-se o pergaminho – Vamos ver o que acontece – disse olhando para Ramos e Lia que ainda estavam apreensivos.

- Por mim tudo bem, se vocês acham que não vai nos fazer mal algum – disse Ramos timidamente.

Após insistir algum tempo conseguimos convencer Lia de que seria uma boa idéia ler o pergaminho. Norman tinha um grande poder de persuasão e conseguiu convencê-la de que deveríamos arriscar. Norman então se levantou e começou a recitar palavras que não podíamos entender. Quando começou a ler senti um frio na barriga, por um instante me arrependi e quis voltar atrás, mas minha curiosidade foi maior do que o meu medo, e então simplesmente fiquei sentado olhando para ele. As últimas palavras Norman pronunciou gritando, e foram repetidas algumas vezes pelo eco dentro da caverna. Apertei os olhos. Percebi que nada tinha acontecido. Olhei para minha pele; não estava roxa. Estava tudo como antes. Reparei que Norman estava olhando para o redor da caverna meio desolado. Nada tinha acontecido.

- Não é possível! – gritou ele irritado – Eu li exatamente o que está escrito, devia ter acontecido alguma coisa.

- Tente de novo, você pode ter errado alguma palavra – disse Lia.

- Vou tentar de novo – disse Norman. O jovem mago fez exatamente tudo da mesma maneira e nada aconteceu.

- Droga! – disse ele irritado

- Talvez a chuva tenha estragado o pergaminho, e por isso ele não funciona mais – disse Ramos.

- Essas coisas não estragam assim – respondeu Norman.

- E se você colocar o medalhão no pescoço? Arthas disse que quando encontrou o elfo morto naquele dia, ele usava o medalhão. Pode ser isso que está faltando. – disse Lia apontando para o medalhão enrolado no braço do mago.

- É verdade, estava tão empolgado em ler o feitiço que não percebi isso. Lia você é um gênio! – disse Norman sorrindo.

Norman colocou o medalhão no pescoço e ficou em pé no fundo da caverna, enquanto ficávamos em sua volta. Fechei novamente os olhos, temi ficar roxo e morrer como aqueles homens, mas minha curiosidade não permitiu que eu interrompesse. Apenas as palavras élficas que eu não entendia e o estrondo da chuva eram ouvidos naquele momento. Norman pronunciou as últimas palavras gritando e os olhos da águia no medalhão ficaram vermelhos e brilharam. Fechei os olhos. Logo em seguida, o silêncio. Um silêncio que fez-me pensar que eu tinha morrido. Abri os olhos lentamente, percebi que Lia segurava com força o meu braço. Ela estava franzindo a testa e mordendo os lábios, ainda com os olhos fechados.

- Pessoal! Não está mais chovendo lá fora – gritou Ramos.

Fomos todos para a entrada da caverna. Era incrível, a chuva tinha realmente parado. Ouvia-se apenas o gotejar que caía das folhas das árvores encharcadas pela tempestade.

- Funcionou! – disse Norman ainda olhando para a floresta, com um sorriso largo em seu rosto.

- As nanímeas estão salvas – disse Ramos provocando risos em todos nós.

- É incrível o poder desse pergaminho – disse eu a Norman

- É mesmo! Provavelmente o início das chuvas foi provocado pelo elfo naquele dia – respondeu Norman, enquanto olhava novamente para o pergaminho – Mas não aconteceu tudo como eu previ. As runas ainda continuam sobre os feitiços. Terei que ler todas eles para liberá-los para mim. São feitiços diferentes e preciso ler todas as runas para que o encanto se quebre.

- São quantos feitiços? – perguntei

- Seis. – Disse ele voltando para o fundo da caverna.

- Provavelmente o elfo leu o mesmo que você e provocou as chuvas. Acho que você não deve ler o próximo, pois podemos ter o mesmo destino que ele – disse eu

- Leia o último. Provavelmente ele não chegou a ler o último, porque morreu antes – disse Lia voltando junto com Ramos para o fundo da pequena caverna.

- Tudo bem! Vou ler o último – disse ele segurando com uma das mãos o medalhão.

- Depois que ler esse último, vamos voltar para casa. Está quase amanhecendo e nosso turno já deve ter acabado. – disse Ramos. Ele não gostava muito de magias e estava um pouco incomodado com a situação.

Sentamos ao redor de Norman, que ficou em pé diante de nós e começou a recitar palavras élficas. Sua voz ecoava mais alto ainda com a ausência da chuva. Norman estava muito concentrado lendo o pergaminho e não percebeu o perigo que vinha do lado de fora da caverna.

- Orcos!!! – Gritou Ramos ao ver a aproximação das criaturas.

Os orcos estavam aproximando-se da entrada da caverna, liderados por um grande ogro. Era ele. O maldito que matou minha família. Aproximava-se à frente dos orcos com sua enorme clava. Os orcos atrás dele estavam armados com lanças e alguns usavam armaduras de couro com ossos. Ele rosnava e babava grotescamente enquanto aproximava-se lentamente da entrada da caverna. Eram muitos orcos atrás dele, estávamos encurralados. Levantei rapidamente, peguei meu escudo e saquei a Talon do cinto. Como havia pouco espaço dentro da caverna, talvez fosse melhor usar uma arma pequena e mais rápida, além do que evitaria que eu acertasse algum de meus amigos. Tomei a frente de Ramos, tomado por um sentimento repentino de ódio. A hora de vingar minha família tinha chegado, quase corri em direção do monstro, mas achei que se saísse da caverna, estaria perdido, pois seria cercado pelos vários orcos que estavam lá fora. Era melhor deixar a criatura entrar. As argolas na sua única orelha balançavam com o movimento da cabeça deformada. Era desprezível olhar para ele, sentia nojo e raiva ao mesmo tempo. O grande ogro aproximou-se lentamente e estava há apenas alguns passos da entrada da caverna. Meu coração batia num ritmo acelerado, estava com as mãos suando apesar do frio.

- Fiquem atrás de mim – gritei sem olhar para atrás.

- É ele Arthas! Aquele maldito – disse Lia chorando ao ver o algoz de nossa família a poucos metros dela. Ela estava com o arco armado – Abaixe-se Arthas! – disse ela puxando com toda sua força a corda do arco. Apertava os olhos e mirava, mas estava nervosa, suas mãos tremiam.

- Agora Lia! – gritei para ela ao me abaixar. Escutei o zunido da flecha passando por cima de mim. A flecha acertou a articulação da coxa. A criatura urrou de dor e parou de avançar.Largou a clava e olhou para a flecha encravada na sua perna. Seus gritos apavoraram até os orcos ao seu lado. Era um animal em fúria, que estava agora agachado com um dos joelhos no chão. Ele apontou para dentro da caverna e gritou alguma coisa que mais parecia um rosnado que um comando.

Os orcos atrás dele tomaram imediatamente a frente. Ficou impossível localizá-lo atrás dos orcos que começaram a acumular se na entrada da caverna. De repente, começou a ventar dentro da caverna. Olhei para trás. Lia estava atrás de mim com outra flecha pronta no arco. Ramos estava ao lado dela. Norman estava mais atrás, com o medalhão brilhando no peito. No calor da chegada dos orcos, não tinha percebido que Norman não tinha parado de recitar as palavras. Ele havia mantido-se frio apesar da chegada das criaturas e conseguido pronunciar todas as palavras, pois o medalhão estava brilhando, da mesma maneira que brilhou quando cessou as chuva. O vento estava aumentando de intensidade a cada instante, e pude perceber que ele partia de um pequeno globo de luz, quase transparente, que surgia bem na minha frente. O globo emitiu um brilho que quase cegou meus olhos e senti meu corpo sendo arremessado para trás com uma poderosíssima lufada. Norman, Ramos, Lia e eu fomos jogados para o fundo da caverna. Os orcos do outro lado do globo transparente tinham sido arremessados da mesma maneira. O globo tinha aumentado de tamanho e tinha agora mais de 2,5 metros de altura. Tinha virado uma cortina com um aspecto líquido e transparente, que ia até o teto da caverna. Era como se uma muralha de água fosse estendida bem na nossa frente. Alguns orcos atônitos olhavam bem de longe para o ogro e para a caverna. O grande ogro estava de pé novamente, da sua perna escorria um sangue espesso e fétido, olhava com os olhos arregalados para a cortina d’água à frente. Estava realmente assustado, não tinha mais aquela expressão de predador no rosto. Levantamos do chão sem tirar os olhos daquilo que estava a alguns passos de nós.

- O que é isso Norman? – gritou Lia, assustada.

- Eu não sei! – respondeu o mago

- Lia, atire outra flecha naquele infeliz! – disse olhando seriamente para minha irmã

-Agora vou acertar na cabeça dele! – disse ela apontando para a criatura.

Lia lançou a flecha, ela estava menos nervosa agora, e o alvo estava perto e visível. A flecha viajou na direção do ogro, mas encontrou a parede d’água antes. A flecha penetrou na película d’água e desapareceu, provocando pequenas ondulações, como uma pedra que é jogada numa lagoa. Então não é apenas uma cortina de água, pensei. Estava tenso e ao mesmo tempo confuso com aquela situação.

- O que aconteceu Norman? Porque a flecha desapareceu?– perguntou Lia gritando em direção ao jovem mago, que olhava impressionado para a parede de água.

- Eu já li sobre isso há um tempo. Sua flecha não desapareceu Lia, ela foi mandada para algum lugar. – disse Norman

O grande ogro olhou para um lado e para o outro. Sendo observado de longe por alguns orcos temerosos. Essas criaturas, por natureza, têm medo de magia, por isso estavam ainda mais assustados do que nós. O ogro virou-se de costas para nós e para a caverna e começou a andar. Lia atirou outra flecha, mas o resultado foi o mesmo da tentativa anterior. A criatura parou, largou a clava e agachou para pegar uma enorme pedra que estava ao lado de uma árvore. A pedra era realmente grande, e a criatura parecia levantar com dificuldade apesar do seu tamanho e força. Fazendo careta pelo esforço conseguiu esticar os braços para o alto com a pedra em suas mãos, e começou a correr na direção da caverna. Ele se aproximou rugindo e arremessou-a com toda sua força. Posicionei meu escudo temendo receber o impacto, que provavelmente quebraria meu braço. A pedra “mergulhou” na parede de água provocando enormes ondulações, e simplesmente sumiu. Baixei o escudo e vi que a criatura rosnava de ódio por isso. Estávamos isolados dele, e isso o irritava. Meu coração acelerava, tinha vontade de atravessar a parede misteriosa para dar cabo daquele maldito. Sem pensar com clareza dei alguns passos para trás e comecei a correr e gritar na direção do ogro.

- Arthas, pare! – Gritou Norman, enquanto agarrava meu braço e parava na minha frente.

- Saia da frente Norman! Vou acabar com ele, vou estripá-lo com minhas próprias mãos! – gritei.

- Não faça isso, você não vai conseguir passar para o lado de lá enquanto o portal estiver aberto! – gritou Norman na tentativa de conter minha impulsividade

- Portal? – perguntei ao mago, tentando controlar minha raiva.

- Isso mesmo. Estamos diante de um portal. É uma abertura mágica para um outro lugar que eu não sei qual é – respondeu Norman.

- E por quanto tempo ficará na nossa frente? – perguntou Lia, que assim como eu, estava muito irritada, com a presença da criatura que matou nossa família.

- Não sei Lia, até onde sei pode ficar aí por horas, dias, meses ou até anos – disse o mago

O grande ogro, agora mais calmo, olhava desconfiado para a entrada da caverna. Deu alguns passos para trás, mancando, e agachou para pegar sua clava. Os orcos permaneciam olhando de longe, apavorados. A criatura parecia inquieta, andava de um lado para o outro arrastando a perna ferida, olhava para nós do outro lado do portal com fogo e ódio nos olhos negros e profundos..

- Então podemos ficar presos aqui dentro dessa caverna até morrer de fome? – perguntou Ramos.

- Exatamente meu amigo – disse Norman largando o meu braço e indo até o fundo da caverna – Não adianta desespero. Podemos ficar e morrer de fome ou arriscar e entrar no portal – disse ele pegando sua bolsa no chão e guardando seus pertences, como se estivesse pronto para sair da caverna.

- E se você tentasse parar o portal, do mesmo jeito que parou a chuva? – perguntei a Norman

- Eu não posso, é impossível – disse Norman desconversando – Teremos que atravessar o portal, é o único jeito.

De repente, um grito de fúria do lado de fora da caverna. Olhei e fiquei surpreendido com o que vi. O ogro estava correndo com sua clava na mão na direção do portal. Seu grito era assustador. Voltei a posicionar meu escudo. Ramos agora estava atrás de mim, pronto para acertá-lo caso ultrapassasse o portal. A expressão de ódio em seu rosto era mais nítida a cada passo em nossa direção. Nunca vi uma criatura tão sádica e sanguinária quanto aquele monstro. Ele preparou o golpe, disparou contra a entrada da caverna ainda correndo e sumiu no portal. Seu grito ainda ecoava na caverna, mas ele tinha desaparecido. Olhei para trás e vi que Lia e Ramos se entreolhavam sem entender direito o que tinha acontecido. Norman estava encolhido atrás de Ramos, olhando curiosamente a cena.

- O que aconteceu Norman? – perguntei

- Ele foi para algum lugar, vamos nos apressar! – disse Norman apontando para o portal. Ele nitidamente estava com muita vontade de entrar no portal, mas não queria ir sozinho – Você não quer se vingar dele Arthas? – disse o mago olhando para mim – Vamos pegá-lo!

- Vou matá-lo, nem que tenha que ir ao inferno atrás dele! – gritei e corri em direção ao portal. Ainda tive tempo para me esquivar da mão de Ramos que tentava me impedir. À medida que me aproximava, via meu reflexo mais nitidamente naquela parede de água flutuante. Fechei os olhos antes do contato e então não vi mais nada.