O Bandeira vermelha

Toda a prataria conseguida na última pilhagem parece gritar implorando ajuda ao sol, parece berrar pra serem tiradas das mãos dos que as amontoam aos pés do mastro, o capitão em partes está satisfeito pois carrega uma quantia equivalente a catorze peças de oito e sete dobrões para cada um em sua tripulação, fora a própria parte. Mas ainda há algo que o preocupa, algo que rasga o carpete verde e calmo a popa do Madrépora.

– Andem seus maltrapilhos, larguem essa maldita prata e vão às velas ou então nunca mais alisarão as pernas de uma mulher com a mesma vontade que acariciam esses cálices – ordenou o capitão Budd Raggs aos treze homens em seu convés.

Todo esse fervor se dá ao fato de que logo atrás a pouco menos de uma milha e meia um capitão britânico o persegue em sua poderosa nau de velas claras. O vento pa-rece favorecer o corsário britânico atraindo os dois titãs de madeira como imãs. A ban-deira dos piratas ostenta um esqueleto humano com a posse de um chicote triplo, isso se dá ao prazer que o capitão sente ao torturar seus prisioneiros pendurados ao sol pelos calcanhares, enquanto ele se diverte com sua tripulação competindo pra ver quem faz a marca mais “bela” nos corpos esticados em seu domínio.

No cesto da gávea, um marinheiro faz sinal ao capitão mostrando que estão a poucos braços de distância de emparelhar o “Florete Real” ao terrível Madrépora.

– Preparem suas cordas, e vão aos canhões, levaremos de volta toda prata à rai-nha e usaremos esses sarnentos como exemplo ainda hoje sob a nossa forca – bradou James Corrigan aos seus leais cães da coroa.

Banhados em desespero e sede de sangue todos os tripulantes do Madrépora se atarefam, carregando os canhões, brandindo suas espadas e bebendo seus últimos goles antes da batalha iminente, o capitão ordena a um homem que espalhe areia sobre o chão de sua cabine, pois não vai querer se escorregar nos barris de sangue que serão derra-mados ali e sem qualquer questionamento o empregado obedeceu num misto de pressa e medo de seu comandante, depois disso feito os dois ouvem o sinal que daria início ao grande evento. Um estouro ensurdecedor atinge seus ouvidos com um impacto tão grande quanto o que a bala do canhão atingiu o peito do contramestre, que agora mergu-lha como um saco de carne moída para as profundezas do baú de Jones. Ganchos unem os dois navios por meio de cordas e algumas pranchas arriscam se fazer de ponte aos mais corajosos, nenhum dos piratas conseguiu entrar na embarcação inglesa, e James aguarda e assiste enquanto os poucos piratas são encurralados como ratos contra a pare-de. Três tiros de canhão foram disparados pelos saqueadores, dois deles atingiram o imponente galeão em cheio, e o terceiro atingiu um dos canhões impossibilitando-o de atirar sem antes causar dano a si mesmo, os soldados avançam e invadem o navio pirata tal qual um viajante do deserto ao encontrar água, e são recebidos com tiros e golpes de várias armas, na proa um alto homem negro tem a posse de uma cimitarra em cada mão e seu tamanho intimida os dois a sua frente que o encaram e receiam em tentar desferir o primeiro golpe, pois sabem que após isso a amarga e última derrota cairá sobre algum deles. O gigante de ébano berra algo em uma língua desconhecida para os dois deixan-do-os confusos. Erguendo os braços de maneira a formar um medonho xis com suas armas ele parece forçar mais ainda seu grito de fúria, deferindo dois golpes ao mesmo tempo com tamanha velocidade incapaz de serem anulados, ele atinge a jugular do ho-mem a sua esquerda e trava sua outra espada no crânio do homem a direita, fácil como se fosse um melão, a arma possuía alguns dentes e deu certo trabalho para ser retirada de seu alvo, com dois homens caídos a seus pés ele ouve uma corneta, olhando pro capitão, ele percebe o sinal, o velho briguento soprou o chifre de bode e gargalhou enquanto degolava mais um soldado a sua frente, entendendo o sinal, Russel o polaco no cesto da gávea recolhe a bandeira negra e no lugar dela, acenando para quem quisesse ver e con-templar, foi colocado um trapo enorme e rubro com costuras fortes e um tom desbotado. A bandeira vermelha, o sinal de que não deverão ser feitos prisioneiros, o sinal de que não haverá piedade ao inimigo. Com o brilho da bandeira fosca nos olhos ele vê o pri-meiro homem que fora golpeado engasgando e tingindo da mesma cor da bandeira o chão do navio, feliz com a atitude do capitão ele junta as mãos e com muita força desfe-re um golpe que atravessa os ossos do pescoço do moribundo como se fosse um frágil tentáculo de lula, cravando suas armas no chão. Ele enfia a mão dentro da boca do degolado e arremessa com força de volta pro navio de onde veio, atingindo os pés do líder de seus inimigos.

Tomado de uma raiva causada pelo deboche dos criminosos, o capitão Corrigan decide se juntar a comunhão da carnificina sobre o mar, agarrando uma corda ele balan-ça e cai de pé, dois metros a frente de Budd que acaba de eliminar mais um peão do tabuleiro, percebendo a invasão em seu navio o pirata corre para sua cabine, um dos homens da realeza entra logo em seguida e antes que Corrigan possa entrar ele ouve o berro doloroso que lhe causa um arrepio na espinha, mesmo assim ele entra e vê caído ainda se debatendo outro de seus lacaios com um ferimento meio palmo abaixo do peito.

A sala é escura e possui mais dois de seus marinheiros mortos no chão, a visão do homem se recusa a habituar ao padrão de baixa luz, talvez se não fosse pela adrenalina em suas veias jamais ele poderia ter colocado sua espada na frente do golpe que recebera de surpresa do velho lobo do mar, face a face com o ardiloso de barba cheia e hálito fétido ele percebe que o tapa-olho está agora no lado direito, e desvenda o segredo do homem conseguia “ver” no escuro, seu olho tapado já estava acostumado com a falta de luz.

– Você nunca irá escapar com vida deste navio, renda-se e terá a chance de mor-rer honrosamente pagando pelos seus crimes – intimou Corrigan.

– Jamais permitirei que algum vassalo da coroa mande em minhas escolhas, vá pro inferno com tua falsa crença – respondeu o capitão Budd afastando-se dois passos atrás.

Sem pensar em nada melhor para falar, James tenta uma última frase:

– Farei jus então a maldita cor do tecido em teu mastro.

Mantendo o braço direito esticado que aponta pro pirata seu sabre, ele relaxa o ombro esquerdo deixando uma correia se deslizar e fazer com que caia a sua mão um mosquete, traiçoeiramente ele arremessa o sabre no inimigo que desvia da arma lhe dando tempo pra colocá-lo em sua mira. O peso de que ele não pode errar esse tiro cai sobre sua mente, fazendo-o amolecer e falar com Budd.

– Darei-lhe uma última chance já que diz que privo tuas escolhas, prefere uma morte que lhe é justa ou morrer no esquecimento destes mares com teu navio?

– A bandeira vermelha, escravo da rainha, significa morte sem piedade para am-bos os lados! – responde o pirata erguendo novamente seu chifre de bode, porém desta vez ele soprou numa força tremenda, dando a entender que uma nova investida seria feita pelos piratas que ouvissem, impedindo que ele terminasse de soprar, James atira atingindo a garganta do velho que cai largando a arma e o chifre no chão.

O atirador percebe que mesmo tendo parado o pirata o barulho de uma corneta continuava, ele ouve um som bem mais grave vindo de fora, garantindo que sua tarefa seja concluída ele recolhe uma espada de um homem que estava morto no chão e crava no peito do agonizante bucaneiro a sua frente, antes de lhe cuspir na cara. Ele sai da sala em busca de onde vem tal barulho, e no convés não enxerga nada que esteja vivo, nem seus homens, nem os piratas, só um cenário rubro visceral e inerte. Fora da cabine do capitão foi fácil saber de onde vinha tal barulho, difícil foi acreditar no que seus olhos viam, a corneta voltou a soar após um breve descanso, ela soava grave como trombone e aterrorizante como um urro bestial, navegando entre as nuvens inacreditavelmente estava um navio que parecia descer a cerca de vinte braças de distância, pendurados pelo pescoço balançando no ar como âncoras ao lado do casco, vários corpos pareciam dançar suavemente ao som do vento nas velas enegrecidas, cinco mastros compunham seu corpo e na parte central estava estendida uma enorme bandeira rubra e velha que parecia gasta e sem cor, algumas cabeças apareciam curiosas em buracos feitos por ataques no velho casco e suas armas eram enormes canhões da cor de bronze todos apontados para o bar-co onde estava o único sobrevivente daquela briga brevemente acabada. Na altura em que a infernal embarcação estava era possível ver claramente que o timão e vários componentes da nau eram feitos de ossos, todos brancos e polidos, os canhões foram acionados quando o navio se deliciou na superfície do mar, rapidamente vários laços foram jogados em direção de James enquanto esse corria desesperado para a proa, na esperança de alcançar a água e tentar uma milagrosa fuga, porém no momento em que ele estava no ar, foi puxado por um nó que se fazia em seu pescoço, ele fora capturado e agora era erguido pendurado numa das velas do navio lendário, enquanto sua vista se escurecia aos poucos, ele viu a bandeira ser levada ao convés onde houvera há pouco o massacre, ela foi banhada no sangue de ambos os homens, piratas e marinheiros, acom-panhando os homens que a traziam de volta a bordo ele pôde ver aquele vermelho vivo se erguer no mastro, ele estava na altura do cesto na gávea de frente pro enorme chifre que tinha quase seu tamanho e que emanara o som horrível momentos antes, ele demora pra perder a consciência, pois ainda consegue fazer força com as mãos e respirar com muita dificuldade, a bandeira foi colocada de volta e agora tinha um tom apaixonante e vívido, ele percebe que o navio deixa o mar e começa a subir de novo enquanto ele a-bandona o mundo dos vivos. De olhos fechados e pulmões mortos ele só enxerga uma única cor que faz a sua própria e única escuridão, o vermelho sem misericórdia.