Contos Avulsos
Contos Avulsos - O início
Na esquina dos contos, que consagrou o personagem Alface como um dos maiores contadores de causos de que já se teve notícia , passaram também inúmeros outros contistas anônimos, alguns deles inclusive eram caminhantes sem nome , residência ou qualquer outro parâmetro de referência . Eles chegavam atraídos pelo agrupamento de jovens desocupados e contavam suas histórias.
Aqui estamos apenas registrando alguns desses contos que não guardam vinculação com personagens fixos . Cada uma das “estórias” representam apenas o resgate daqueles encontros na esquina , onde ninguém imaginava que um dia seriam compilados para uma coletânea . Os contos avulsos são, portanto, uma síntese de um passado de nômades anônimos.
Realidade ou ficção , ninguém sabe - nem nunca se saberá – mas o certo é que esses contos sobreviverão para todo o sempre , pelas mãos deste que vos escreve e que foi um dos camaradas da esquina , quiçá o único daquela geração que empenhou no mercado do tempo algumas horas destinadas à lavra.
Certa ocasião, num dia de chuva mansa e vento frio, estávamos todos amontoados no avarandado, quando adentrou ao resto de abrigo um caminhante com trajes que beiravam à mendicância . Ouviu alguns contos, abriu aquele sorriso largo e generoso que só os pobres parecem reverenciar como um tesouro único , e logo nos contou uma história que nós nunca esquecemos.
Disse que no início do século XX , quando as cidades do interior não possuíam luz elétrica , seu pai – ainda jovem e solteiro - trabalhava para a municipalidade como acendedor de lanternas da iluminação pública que eram alimentadas a querosene e cujas mechas eram avivadas ao anoitecer e apagadas ao raiar do dia.
Numa dessas noites , contou o anônimo, que seu pai encontrou uma bela mulher vestida de branco e que tremia de frio. Agindo com piedade, mas ao mesmo tempo seduzido pela beleza da donzela ele ofereceu-lhe seu casaco e prontificou-se a lhe dar uma carona na carroça da prefeitura, onde havia espaço para duas pessoas além do compartimento de carga onde se depositavam os galões de querosene, estoques de mechas para reposição e uma escada , além de outros utensílios.
Ao chegar nas proximidades do cemitério, a moça pediu para descer da carroça e rogou para que ele não a acompanhasse, alegando que seus pais a puniriam se a vissem chegar acompanhada. Seu incauto pai acatou o pedido da intrigante mulher da noite, mas desconfiou ao vê-la desaparecer na penumbra do portão principal do cemitério. Porém, tratou logo de retornar a suas atividades, conquanto já havia se arriscado demais ...
No outro dia, ao perceber que não havia resgatado seu casaco, voltou ao bairro onde se situava o cemitério e indagou pela moça, dando seus rasgos físicos , mas ninguém a conhecia ... Intrigado entrou no cemitério e se pôs a caminhar por entre os túmulos , sentindo um calafrio ao ver seu casado bem dobrado repousando sobre uma lápide de mármore , escurecida pelo tempo .
Quase desmaiou quando se aproximou do túmulo, pois ao retirar seu casaco ficou a descoberto a inscrição e a fotografia , onde constava a data do óbito como sendo no dia treze de agosto de 1907 ... Era ela , a mesma mulher que ele carregara na noite anterior.
Contou que seu pai morreu velho e que cada vez que lembrava do acontecido, molhava os olhos e fixava o olhar ao desconhecido. Logo em seguida a chuva parou, e sem dizer mais nada, o homem partiu deixando-nos atônitos com esse que ficou marcado como sendo o primeiro dos nossos “Contos Avulsos” ...