PASSEIO COM O POETA

“ Vou-me embora para Pasárgada
Aqui eu não sou feliz...”
                      Manoel Bandeira


Na minha cidade ainda existem praças, bares, cinemas, pessoas e poetas. Não é em todas as cidades deste planeta, nem talvez deste país, que essas coisas ainda podem ser encontradas com tanta profusão como nesta Mogi quatrocentona. Existem ruas onde ainda se pode andar despreocupado, com as mãos nos bolsos e os olhos no céu, onde a única preocupação é com o salto do sapato ou com o próprios pés, pois os buracos nas ruas são muitos e não são frequentemente tapados. Quem for esperto se aproveitará destas nossas noites ainda tranquilas, pois estamos entrando nos anos setenta e daqui há alguns anos esta cidade será a metrópole que eu não sonho, mas não posso evitar que se torne.
Nossa proximidade com a capital logo cobrará a sua fatura. Para cá virão fábricas e pessoas. Barulho, poluição e violência são coisas que seguem as pessoas. Ou melhor, elas vivem com as pessoas e vão com elas para onde elas vão.
O progresso é uma epidemia e não se convive com ele sem o risco de contrair as doenças que ele carrega no seu bojo. Um dia, que não está muito longe, essas ruas calmas por onde eu caminho à noite não serão tão seguras. Não haverá praças onde se possa sentar com a namorada, e provavelmente o namoro também não precisará delas porque ele será tão diferente de agora que não poderá ser praticado em praça pública. Os motéis já estão chegando estão começando a ganhar mercado. Esse dia virá, mas enquanto não vem, aproveito essas últimas noites prazerosas, andando pelos bares, conversando com os amigos, fazendo serenata e rabiscando versos nos guardanapos.
Amo morar em Mogi das Cruzes.

Morar em Mogi das Cruzes
É como ver de longe o Armagedon.
É sentir de leve o bafo cosmopolita
Da metrópole que não escova os dentes
Para esconder o hálito podre
Que sobra da gente que enguliu.
Gente de toda nacionalidade.
Molhos para todos os gostos e paladares.
―Alemão, eisbein, chucrute e salsichão.
―Italiano, espaguete com brachola.
―Francês, queijo bom e vinhos finos
―Japonês, suchi, sachimi e um bom saquê.
Tão perto, porém tão longe...
Tão longe que o paulistano
Até chama a gente de caipira.
Mas como é bom ser um caipira!
Poder andar devagarinho,
Com as mãos nos bolsos e olhando o céu.
Se perplexo, parar e contar estrelas
Sem o risco de ser atropelado.
De qualquer modo, isto é certo:
Aqui ainda se pode soltar sem medo
(Quando se tem)
Toda a nossa sem-si-bi-li-da-de!

Por exemplo. Uma noite dessas vá até o Café Michel. Repare naqueles jovens (de todas as idades) sentados nas cadeiras espalhadas na calçada.Falam de futebol, namoro, novelas, livros, brincadeiras, pescarias, política como se estivessem discutindo assuntos da maior relevância. Discutem mas não brigam. Brigam mas não se machucam. Quando se machucam só vertem sangue mas não ódios eternos. No dia seguinte, ou mais tardar, no sábado seguinte estarão lá, na mesma mesa, conversando, ou brigando, pelos mesmos assuntos.

Café Michel.
Chopes e chopes que descem.
Copos e copos vazios que retornam
Petiscos, salgadinhos e a pinguinha para rebater.
Conversa vazia boba e fútil
Sem a qual a vida não vale a pena ser vivida.

Mas se esse não for o seu gênero (tem gente que não gosta de ir a bares), vá pegar um cineminha. Eu mesmo sou maluco por um bom filme. Está passando o Poderoso Chefão no Urupema. Ganhou um monte de Oscares. O Marlon Brando está fantástico no papel do Don Corleone e tem um ator novo, que faz o papel de filho dele, o Michael, que é um verdadeiro show. O nome dele é Al Pacino e vai ser um dos grandes nomes de Hollywood nas próximas décadas.
Dos cinco cinemas que haviam em Mogi nos meus dias de garoto restaram três. Sinal dos tempos. Foram expulsos do mercado pela televisão com suas novelas e shows ao vivo.
Até há alguns anos tínhamos shows ao vivo nas nossas praças. Lembro-me das Lojas Chagas com os seus carnês. Tentativa cabocla de imitar o Baú da Felicidade. Sorteou um Sinca Chambord novinho. Quem ganhou o carro foi o Toninho Mineiro mas quem levou a maior parte da grana dos Chagas foi o Spinosa com seus programas de calouros. O Chagas e o Spinosa ficou, dizem.
Gamei numa garota que cantava nesses programas. Chamava-se Magda Elisabete, nome esquisito, que certamente um nome artístico. Era irmã do meu amigo Vadinho, baixinho boêmio que bebia todas e vivia cantando velhas canções do Orlando Silva e Silvio Caldas nos bares da noite. Mas ela nunca soube que eu era gamado nela. Que assistia esses shows em praça pública só para vê-la. No fundo eu odiava esses programas. Achava de profundo mau gosto aqueles caras tentando imitar Carlos Gonzaga, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos ( é uma "brasa, mora!)
O Urupema é maior cinema da cidade. O mais luxuoso é o Avenida. Lá, até a algum tempo atrás só se entrava de gravata e paletó. Agora não se exige mais, mas a tradição de ser cinema de bacana continua. O Urupema é popularzão. É tão grande que só enche quando passa filme do Mazzaropi.

Diziam que o fantasma do Capitão Quinzinho
Que foi dono desse cinema
Iria derrubá-lo um dia por vingança
Das coisas que andaram dizendo dele.
(Como Sansão fez em Gaza, pensei)
Imaginei que seria em noite de Mazaropi
Quando a casa ficava cheia
E o povo esquecia seus cuidados.
Nunca acreditei nessas bobagens
Mas por vias das muitas dúvidas
Nunca fui no Urupema nesses dias.
Que besteira, pensava eu,
Não precisa o Capitão voltar do túmulo
Basta o Álamo com seus canhões.
Mas o Mazaroppi morreu
E com ele enterrei os meus receios.
Cresci científico, cartesiano e gozador.
O Urupema fechou e reabriu.
Joaquim de Mello Freire
Está com Deus e ri de tudo.

É claro que você pode não gostar de cinema. Muita gente não gosta. Acha maçante ficar diante de uma tela assistindo coisas que não verdadeiras e lendo letrinhas para acompanhar o filme. Perdi uma namorada por causa disso. Não tanto por causa disso, na verdade, mas também por causa disso. Ela não gostava de cinema nem e muito menos do tipo de filmes que eu gosto. Levava-a para ver os filmes de Jonh Wayne e ela os odiava. Brigávamos por causa disso. A gota dágua foi o dia que a levei para ver Ben-Hur. Três horas diante de uma tela para ver um enlatado, disse ela, eram demais para uma garota que preferia dançar, comer pizza e ver os Galãs Cantam e Dançam nos Domingos, do programa do Silvio Santos. Mau gosto, eu dizia para ela. Ficar em frente à uma telinha preto e branco vendo uns carinhas chatos cantando cançõezinhas piegas e dançando com menininhas esquizofrênicas, que se rasgam toda quando vê um cantorzinho de lamê. "Mau gosto é o seu, que paga para ver esses enlatados bobos", dizia ela. Assim chegou dia que não deu mais. Ela entrou com o pe, eu com a bunda, e lá fomos nós em busca de relacionamentos mais prazerosos. 

Ah!, mas se você não curte cinema eu proponho um passeio pela rua Dr. Deodato. Hoje você não verá muita coisa, mas até alguns anos atrás, a juventude da terra costumava se encontrar ali. Os rapazes ficavam na calçadas, parados, como espectadores; as meninas subindo e descendo a rua, como modelos numa passarela. Muitas famílias mogianas começaram na Dr. Deodato. Era o lugar onde todos íamos para arranjar namorada ou namorado. Se você não se lembra, deixa eu recordar.

Cada mogiano tem seu pedaço na Dr. Deodato,
Nos bloquetes de seu piso, como num “chips”,
Estão impressos os sonhos de cada um.
As meninas que hoje beiram os trinta
Passeavam de braços dados na rua
E os garotos eram os seus espectadores.
Os rapazes se postavam nas calçadas
E escolhiam pelas pernas ou pelo rosto.
E a noite terminava sempre no portão.
Para quem não arrumava nada
Restavam os bares da meia-noite.
No bar Cruzeiro Pelotão era atração
Seu violão falava por todos que calavam.
Naqueles dias sem novelas e discotecas
Todo mundo se encontrava na Deodato.
―Ingenuidade que o progresso atropelou.

Se preferir podemos ir á Praça Osvaldo Cruz. Hoje ela não parece tão romântica, mas nesses dias que estou falando, passear lá, de mãos dadas, com a garota que a gente pescou na Deodato era a maior glória. Sentar num banco da praça, dar uns amassos, trocar uns beijinhos, acabava sendo o prêmio da noite. 

Velhas árvores cascas grossas
Que a inteligência Valdemarista poupou.
Hoje não guardam mais segredos,
Já não parecem tão circumpectas.

Em tempos idos os namorados passeavam aqui.
Malandrinhos de calças justas
Mocinhas de vestido saco
E tome bandinha no coreto.
Nos bares sem vitrolas automáticas
Xexéu e Cabo Lua, Vadinho e Pelotão
Cantavam sem razão.

O Bar Cruzeiro hoje é loja de sapatos.
Mas o Vadinho morreu descalço
Pedindo pão de porta em porta.
O Guanabara não agüentou a barra
E fechou as suas portas de tristeza.

Aqui na Praça Osvaldo Cruz
Fiz de quase tudo um pouco.
Vendi gibis na Pif-Paf
Cantei no Clube dos garotos.
Engraxei os sapatos dos bacanas.

Quando não estava na Deodato “pescando” garotas, eu estava no cinema. Ah! O Cine Parque. Cine Parque das pulgas e dos velhos faroestes. Sabe que uma vez eu me apaixonei pela Jênifer Jones? Morenaça. Vi Duelo ao Sol e Suave é a Noite pelos umas dez vezes por causa dela. Fiz para ela um poema.

De que lenda eu a conheço?
És a ninfa do Oriente,
Ou simplesmente a Vênus grega
Mais esbelta do que um sabre
Orgulhoso de um guerreiro?

Eu vi seguro nas tuas mãos morenas
A chave do cofre dos meus dias.
Tu remendaste a minha vida
Com retalhos de mil sonhos.

Há dois mil anos te espero,
Desde que em sal fui transformado
Por ousar mirar-te a face
E desejar o teu contato.

Eu era ilha amaldiçoada,
Onde as harpias faziam ninho
Sobre os ossos dos malditos,
Quando o raio do teu sorriso
Iluminou-me a solicitude.

Hoje sou alegre balneário
Onde o sonho pode aportar.

Não era grande coisa o poema, mas eu achava ele bonito. Usei-o para seduzir outras meninas e até funcionava. Não muitas, é verdade, mas também não se pode exigir tanto de uns versos tão chulos. Ah! mas como eram bonitas aquelas artistas. Claudia Cardinale em Cartouche me tirou o sono de muitas noites. Sofia Loren em Duas Mulheres me deixava louco. Brigite Bardot foi a primeira mulher que eu vi em pelo. E depois do cinema uma cerveja no bar Cruzeiro, no Brucutú ou no Café Michel. E aquelas fantasias.

Mais uma cerveja seu Davi.
Depois vou executar o plano
Que já maquino a bem três dias.
Vou raptar a Sherazade,
Que está na tela do Odeon.
Depois vou dormir com ela
No número 10 do Hotel Carioca.
Harum-Al- Rachid, o Califa de Bagdá,
Que me mande seus padrinhos,
Caso fique muito ofendido.
Recebe-los-ei pela manhã
Quando a vida depois do amor
Já não tiver mais importância.

Ai pelas onze da noite a cidade ficava vazia. Um ou outro casalzinho permanecia nos cantos, tão enterrados um no outro que mal se conseguia distinguir quem era quem. Um guarda noturno pas-sava apitando. Era então a hora sagrada da ronda pelos bares, das serenatas, dos versos rabiscados em papel de pão. E as fantasias.

Imaginei-me um dia passeando com o poeta Manuel Bandeira pelas ruas e bares da cidade. Ele me havia sido apresentado numa das aulas de madureza, que eu freqüentava no Colégio Santa Mônica. Quem me apresentou o poeta foi a Professora Terezinha Langlada. Escrevi-lhe uma carta.

“Poeta, se tiveres tempo
Se a tua Estrela da Manhã deixar
Descansa um pouco a tua lira
E vem cá nos visitar.
Aqui não terás cama nem mulheres
As que haviam a capital no importou.
Mogi das Cruzes sequer já teve rei
Mas serás igualmente feliz, disso sei.

Aqui a existência não é aventura,
É quando muito uma faz-cera danado
Para enganar o juiz e o adversário
E segurar esse joguinho empatado.
Acharás amigos, poetas como o Candelária
O maestro Mármora voltará do túmulo
Ara reger a banda Guarani
Quando desceres no trem na estação.

A propósito, vem de trem.
Pega o subúrbio da Central.
É um trem igual àquele teu
Que passa poste
Passa pobre,
Passa triste,
Passa tudo,
Passa nada,
Pára, pára, pára em Jundiapéba
Onde deves tapar o teu nariz.

A fealdade da paisagem
Será plenamente recompensada
Quando vires a filha do prefeito.
Deus, que olhos têm a Samira!
Ele vai te entregar as rosas
Que cultivamos no Caputera.

Se quiseres prostitutas,
Se bem não tão bonitas,
Na Vila Natal tem inferninho.
Dona Norma, a cafetina
Mostrar-lhe-á suas “princesas”.

Jantaremos no Recanto Holandes.
Previno que de holandês só tem os donos.
Nada especial, um bife mal passado,
Vinho da casa, um cafezinho,
Mas tudo muito aconchegante.
Se às horas tantas ficares triste
Zézinho tocará o seu trombone.
No dia seguinte Tote escreverá no jornal dele
Que o poeta não quis dar declaração.
Perdoarás, pois que de certo ele não sabe
Que o poeta, tendo vindo de Pasárgada,
(Uma outra civilização)
Não esperava encontrar aqui um jornalista.

O Poeta veio num sábado de bom verão, quando o calor era um convite para dormir tarde ou simplesmente não dormir. Passeamos pelas ruas da cidade. Passamos pela rua Olegário Paiva. Tive uma namorada que morava naquela rua. Mostrei para o poeta a casa dela.

Nesta ouvi voz de anjo,
Celestiais sonatas, fiz poemas
Misericórdia, luz interdita!
Aceita este pobre madrigal.

A sonata virou silvo de guarda-noturno
O anjo casou, virou mulher.
Mas aqui não morava gente
Somente seres sobrenaturais,
Havia bruxas, magos e fadas
Seu Cunha, esse era um leprechaun.

Alguns abençoavam meu amor de nefilin.
De outros só ouvi as maldições.
Mas era bom saber que se tem um coração
E experimentar um sentimento tão humano
.

Em frente ao Teatro Vasques tive um momento de desconsolo e disse ao poeta: isso já foi um bom teatro. Vi belos espetáculos aí. Vi o Ankito e o Grande Otelo. Hilários. Vi o Juca de Oliveira. Hoje está sendo usado como Câmara de vereadores.

Espero ter a resistência desse edifício.
Sobreviver aos palradores mentirosos
Não crer nas promessas que eles fazem
Não esperar demais dos seus projetos.

O discurso vão, cujo fim é interesse,
O requerimento, cujo fim é pessoal
Como tu, quero gente de verdade,
Que só aplauda se gostar do espetáculo.

Infeliz a tua sina―palco de mentirosos.
―Como eu,quanta mentira admiti.
Bem que nós dois precisamos nos redimir.

Quanto a mim vou procurar em outros livros,
Amigos novos, professores que me ensinem
Quanto a ti, que voltes a ser só um teatro.

Ai eu e o poeta nos sentamos num dos bancos do Largo do Car-mo. “Aqui, poeta,” disse eu, “se fazem as melhores quermesses.” Muitas barracas, doces deliciosos, bingo, churrasco e vinho quente. E meninas bonitas, muitas meninas. A mais bonita é a filha do pipoqueiro.Tem os olhos mais bonitos que eu já vi. Mas é muito séria e não dá bola para ninguém. E o pai é um verdadeiro cão de guarda. Fiz para um soneto para ela. Quer ouvir?”

Eu nem preciso ordenar imagens coerentes
Para dar-te versos de fidelidade irretocável,
Porque em tudo que ti me vem à mente,
Há instantâneos de beleza incomparável.

Não sei registros anteriores de uma visão,
Que fosse farta para mostrar-te com justeza,
E que aos olhos confirmasse esta impressão,
Que o paraíso é no teu corpo, com certeza.

Talvez eu tenha me enganado de portão,
E ao invés da concretude de um evento,
Tenha entrado no abstrato de uma lenda,

Onde Deus, no exercício pleno da profissão,
Ou se superou na perfeição do seu talento,
Ou fez mais do que pediu a encomenda.

"E aí, o que deu?", ele perguntou. "Nada", respondi. Ela sorriu, mas foi tudo que cnsegui arrancar dela. 
Depois andamos um pouco para esticar as pernas. Passeamos pela Praça Norival Tavares.Olhando a lua ele disse:

Ah! É preciso uma noite como essa
Noite de rendição incondicional!

E em frente ao Cemitério São Salvador, eu fiquei um pouco triste. Ele notou e perguntou o que se passava.

Neste cemitério enterraram meu irmão
Perdi a direção do túmulo dele
E depois não achei mais nenhum rumo
.

E foi então que ficamos ambos sentimentais olhando a cidade lá do alto do Ipiranga.

A noite desmascara os homens.
De dia, como são outros os seus pesares.
Pagar dívidas, descontar duplicatas,
Carimbos, assinaturas, politicagem.

A noite é chá de jasmim nas refeições.
Panacéia para digerir o dia insosso.
Tomai um cálice, na janela ás seis horas
E mais, na rua, à meia noite.

E mais: fazei calar os pensamentos.
Identificai estrelas, galáxias desconhecidas,
E não resistais à frouxidão que te enlanguesce.

Notai as luzes, piscando longe, longe,
Aquele carro que está descendo a Mogi-Dutra
Porta a chama que trará o novo dia.

Daí um galo cantou em algum lugar. Os primeiros sinais do dia apareceram com a buzina de automóvel que passou por nós a mais de oitenta. Pronto. O Poeta e eu somos apenas dois notívagos curtindo o fim de uma noite de poesia e bebedeira que o orvalho da manhã ajudou a mitigar. No primeiro bar aberto, ou no último a fechar, o derradeiro gole de conhaque. O Poeta embarca no trem das cinco e quarenta.
Ao subir no trem o último olhar do Poeta recai sobre o velho prédio em demolição do Hotel Carioca. Acompanho o olhar do Poeta, que com um movimento de cílios pergunta por que? Abro os braços e faço uma careta, como a dizer: ― Não sei. Olho para o velho prédio como quem está se despedindo de um velho amigo.

Vai embora velho hotel,
Que já cumpriste tua missão.
(Adeus Poeta, obrigado pela visita)
Agasalhastes instantâneos amores
Proporcionastes bons momentos.
(Volta um dia nos visitar)

Eras velho e o visual
Feria os olhos progressistas
(Nossas lembranças à Dama Branca
Se a encontrares antes de mim).
Dos que jamais se liberam
Da sansão das leis e dos carimbos.

Travesseiros sujos, amores limpos
Jesus Cristo de cabeceira,
Abençoando os ofegantes.
(Quando voltares a Pasárgada
Diz lá que a visitarei)
Amor sem ontem nem amanhã,
Amor caixeiro viajante.

Para quem chegava á cidade,
Teu cartão era o primeiro.
(Não esqueça o pneumotórax)
Nada de RGs, preencher fichas
Tu não tinhas formalidades.

A vida comprada a varejo
Por quem só no dia dez
Tinha a paga nem sempre justa
Pelo suor do mês inteiro.
(Peça por mim à Nossa Senhora da Boa Morte).

E era suar nas tuas camas.
Suor gostoso, exxpontâneo,
(Lembranças à Jacqueline..)
A cama de molas que rangia
E a explosão que aglutinava.

Mas atrapalhavas o progresso,
Tua feiúra incomodava
(Quando chegares à velha chácara
Escreve teu testamento)
Toda velhice também incomoda
Pois sabia de tudo e não olvida..

Enfim viraste posto de gasolina.
(Com que andam os carros em Pasàrgada?)
Afinal há quem goste de amar num automóvel.
Tudo mudou, até o amor
Hoje independe de homem e mulher.
(Adeus, poeta, adeus....)

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DO LIVRO NOITE, VENTO E CHUVA, CRÔNICA DA CIDADE AMADA, PUBLICADO PELA EDIGRAF, SÃO PAULO, 1986.




















João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 12/04/2010
Reeditado em 12/04/2010
Código do texto: T2192883
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