O CARROSSEL
 
A porta de entrada, ainda que jamais escancarada,
ela a encontrou sempre aberta necessitando apenas
de um leve toque para afastar a folha e entrar. Em
poucos dias familiarizou-se com o ambiente e com o
inquilino a quem se habituou a vir quase todos os dias.
Parecia-lhe ser um homem mais feliz do que infeliz.
Passava muito tempo escrevendo. Quando não o via
diante do monitor do micro era porque acarinhava as
flores nos fundos do chalé. Se não o via em parte
alguma nos arredores, o coração se inquietava, ela
se consumia em mau humor que precisava ocultar. A
ele dizia chorosa que o coração se enchia de
preocupações, mas o que realmente lhe devorava a
alma eram os ciúmes.
 
Via a alegria nos olhos dele em muitos momentos e
com frequência tinha absoluta certeza de que em parte
a alegria lhe vinha em razão de sua presença.
Ocasionalmente ele a levantava abraçando, rodava
com ela negando-lhe por brincadeira os lábios para o
beijo eufórico. Ela então vibrava intensamente e
rodando suspensa nos braços dele fechava os olhos
para sonhar girando num imaginário carrossel do amor.
 
Certas coisas que ele falava ela não compreendia, mas
gostava de ouvir. Uma vez lhe falou sobre a mulher
que passou com uma carroça muito carregada,
carregada a tal ponto que em determinados trechos
da trilha precisava ajudar puxando a carga pela
corrente ao lado dos burros. Ela nunca soube se ele
havia visto tal mulher com a carroça, e, se a vira, se a
estava elogiando ou lastimando-lhe as escolhas. Era
algumas vezes brincalhão como quando contou sobre
a mulher que abraçou uma foca ao desejar sair para a
areia, na praia.
 
Tinha uma coisa de bom. Sempre a fazia sentir-se
pertencente e jamais se escondia das pessoas quando
em passeios com ela. Nisso diferenciava-se da maioria
dos homens com os quais já havia se relacionado e
que não eram poucos apesar de sua pouca idade. Nos
primeiros dias mentira para ele dizendo-lhe que
dissera aos pais que passaria a noite na casa do
namorado. De outro modo ele a teria levado para casa
a despeito da noite escura e muito fria. Desmentiu
alguns dias depois, sem ser pressionada a fazê-lo,
pois ele nunca mais demonstrou preocupação pelo
giro dos ponteiros arrastando as horas para dentro da
noite. Mas a surpreendeu presenteando-a com uma
flauta doce. Disse-lhe que não era difícil aprender.
 
— Soprando uma flauta - dissera ele - você será aos
meus olhos um símbolo dos novos tempos.
 
Ela pediu explicações. Estavam em um parque, sobre
o gramado de um verde muito escuro aparado,
próximos ao lago. Ele a levantou nos braços e girou
com ela num ritmo quase alucinante, de sorte que ao
deixá-la sobre o chão firme precisou ampará-la para
não cair como acometida por uma vertigem. Então a
fez deitar-se e beijando-lhe os olhos disse:
 
— Ao longo de milhares de anos, religiões e filosofias
tornaram inevitáveis os movimentos feministas. Você
pertence a uma nova humanidade que está surgindo,
e, ainda que não saiba disso, anuncia a nova era ao
seu modo.
 
— Mas eu não sou feminista.
 
— Não! Claro que não. Você é feminina.
 
— Gosta assim?
 
— Claro!
 
— Então gosta de mim?
 
— Por que não?
 
Ela sentia que sim. Fosse de outro modo não seria tão
bom rolar com ele sobre o tapete da sala, nas noites
mais quentes, arrepiando-se com os toques dos lábios
e dos dentes dele mordiscando-lhe o lóbulo, a cavidade
e a área posterior da orelha. Não! Não era como eram
os outros quando lhe beijava a nuca e descia a mão
acariciando-lhe as costas. Não era igual a ninguém
quando lhe punha louca ao lhe beijar as partes internas
das coxas, excitado e excitando-a sobre o carpete da
sala.
 
O que ela não sabia é que ele se deixava vencer pelas
premências da carne e por isso a tomava daquela
forma. Não desejava vê-la um dia com as cargas físicas
e emocionais da mulher da carroça, esquecida de amar
em razão dos encargos atraídos sobre seus ombros
pelos resultados dos movimentos feministas que
alardeiam a libertação feminina. Ele a via menina com
tanta estrada a avançar em sua caminhada e temia
pelo que pudessem lhe fazer as pressões sociais,
humilhando-a e levando-a a desistir de sua marcha,
voltando como a foca que nunca se decidiu por ser um
animal da terra ou do mar.
 
Tomando-a nos braços, sentia-se ele próprio como se
posto por uma força estranha sobre os cavalos de um
carrossel, completamente incapaz de impedir o
movimento de sobe e desce no giro do tempo.



(De meu caderno de capa de pano, páginas de minha busca por minha  individuação)

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 11/04/2010
Reeditado em 23/12/2010
Código do texto: T2191195
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.