A Cidade dos Caminhos - Sem medo do Abismo - IV

Adorada, era assim que a moça chamava a Guia dourada que se comprometera a ensiná-lo. Guias - os seres que conheciam todos os caminhos da crianção - não possuíam nomes, se identificavam pelas características únicas que seus espíritos detinham, e não eram os únicos seres assim. Contudo, humanos, por cultura e costume, pareciam querer rotular tudo e todos. A moça dizia que a guardiã era uma criança adorável, dai o nome.

- Eu desci por causa dela. - Explicou a garota - eu a vi entre correr para defender os muros e o portal, e vim acudi-la. - Segurava em seus braços a Guia em questão, desacordada e fatiada, tão pequenina em seus aparentes dez anos humanos. Tão frágil.

O outro humano, o armadurado que havia enfrentado os invasores de Axis Mundi, parecia imensamente insatisfeito com as atitudes da garota que segurava "Adorada", mas permanecia em silencio.

- Me chamo Estrela. - Apresentou-se a gorota, ajeitando a pequena entidade ao colo - Este é meu companheiro, Fogo.

- De onde vocês são?

- Daqui mesmo. - respondeu Estrela, sorrindo.

- Impossível.

Fogo soergueu a sobrancelha. O Guia recuou.

- Mas é verdade. - Prosseguiu a moça, sem se abalar com os animos do amigo - Se houvessem habitantes nessa cidade, esses seriamos nós.

A verdade é que não haviam casas em Axis Mundi. Salões sim, templos, plenários. Todos poderiam ser chamados de locais de trabalho, estudo... mas nenhuma morada. Todos os seres que ali passavam, nunca permaneciam indefinidamente. Mesmo os senhores do destino uma hora juntavam-se à Memória do Tempo, a Dama muitas vezes chamada de Acácia.

- Nunca vão embora?

- As vezes deixamos Axis Mundi. - Contou como se lhe falasse de um fato corriqueiro.

O Guia achou aquilo muito triste. Espíritos humanos que se reusavam a fazer seu caminho e permaneciam perambulando pelo reino da carne sofriam imensamente. Por inúmeros motivos, mas um dos mais dramáticos era a falta de um lugar, um lar. Mesmo o mais pavoroso reino do submundo era, de certo modo, como uma casa. Esses espíritos poderiam sofrer imensamente, escravizados, mas não eram algo fora de seu ambiente. Poderiam querer trocar de habitat, mas a menos tinham um. Cada espírito era encaminhado a um lugar, porque, fosse o que fosse, e porque motivo fosse, aquele local ele pertencia.

Olhou o homem chamado Fogo e soube que a luz o incomodava. Espíritos como ele odiavam a luz com todas as suas forças. Mesmo a mais tênue.

- E para onde vão?

- Para qualquer lugar, moleque. - Ainda que aparentasse uma idade humana avançada, de algum modo, Fogo soube que ele tinha pouca experiência. E a curiosidade daquela entidade definitivamente estava irritando o homem.

Quis perguntar porque andavam juntos, porque ele havia protegido a garota, mas achou melhor não.

***

- Ela terá de descansar. Um outro Guia me disse que designaram um de seus pares para realizar as tarefas dela. - Falou Estrela, enquanto afagava uma quimera pequenina.

- É... - resfolegou o jovem Guia de pele mulata.

- Que sorte terem conseguido recolocar sua perna. - Estrela tentou anima-lo.

A sorte na verdade consistia em não ter sido intoxicado pela energia do gibão que ficara sobre ele enquanto os vikings remanescentes eram afugentados e abatidos.

Mas agora ele tinha um problema.

- Ela iria me ajudar.

- Adorada ajuda muita gente. - Sorriu, sincera. - O que ela iria fazer por você?

O Guia sentiu que podia, então narrou todo o seu enrosco. Desde de a aceitação da tarefa, ate suas desventuras em conseguir auxílio.

- Ora, eu e Fogo podemos acompanhá-lo. - Concluíu, suave. A moça era lunática? Não devia ter entendido direito onde ele iria, só podia ser!

Fogo que não estava muito distante dos dois, sentado em uma mureta verificando o fio da própria espada, ergue-se e afastou-se. Estivera próximo o suficiente para escutar a conversa dos dois.

- Acho que ele... - O guia engoliu seco os ultimos vocábulos. Por certo que o homem não gostara nada do que ouvira.

- Não se preocupe. - Ela cochichou - Ele vai.

***

A caravana em direção aos pântanos saiu algum tempo depois, composta por três guias e dois espíritos humanos. Adorada não estava entre eles, desacordada e em tratamento para restabelecer-se do ataque. Os dois humanos seguiam lado a lado, e a frente do grupo ia o jovem Guia encarregado. Ciano os acompanhou ate a os primeiros metros da estrada que penetrava aquele reino funesto, e então miou alto. A pequena quimera esperaria na porta da cidade dos muitos caminhos pela volta da garota que havia lhe dado um nome. E lhe ensinado o que era afeto.

O Guia jovem estava ansioso pela viagem - Estrela ainda pensava em um bom nome para ele, havia lhe dito que encontraria um. Haveriam de enfrentar obstáculos, uns muito perigosos, ele sabia, contudo isso não amenizava a excitação que sentia. Enquantos alguns preferiam terreno seguro, ele se voltava para desafios.

As outras duas entidades que compartilhavam com ele a função haviam lhe contado um pouco sobre os dois espíritos que estavam com eles. E ensinado um pouco mais sobre os reinos inferiores.

Fogo havia saído de um dos mais perigosos lugares do submundo, e ninguém sabia como, chegara consciente da viagem que fizerapara voltar a Axis Mundi - e sem qualquer ajuda. Já Estrela que deveria ter se encaminhado ao céu, não o fez, preferindo a companhia do guerreiro de aura maligna.

Quando o Guia inexperiente, perguntou porque Estrela não ia pra casa, para o lugar destinado a seu espírito, a garota sorriu. Tão logo todos pisaram na estrada, o homem de armadura escura deu a mão a ela, depois de ter jogado o gibão - aquela coisa maligna- em suas costas novamente - que era uma forma de proteção, embora ninguém além deles dois compreendesse como Estrela suportava aquela energia. Fogo deu a mão a moça, e assim, mãos dadas e dedos trançados, percorreram as primeiras milhas do caminho, a mais tranqüilas.

O jovem Guia obteve então, sem qualquer palavra, a resposta para a sua pergunta - aquela que estrela deixará sem resposta. Sorriu a luz da compreensão.

"Ela esta em casa".

***

E quem dirá ser esse o fim?

>>Esse conto é a conclusão dos contos

A Cidade dos Caminhos I - A Fronteira de todos os Mundos

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2171702 e

A Cidade dos Caminhos II - O Desafio do jovem Guia

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2173565

A Cidade dos Caminhos III - Invasão

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2174805

>>Pertence ao mesmo cenário dos contos

A Esquerda da Justiça

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2125521

A Barqueira

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2148394

Anam Chara - Onde se encontra a Felicidade

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2164471

>>E o Poema

A prece da Estrela

http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdeamizade/2164487