LADY LAND BLUE: A BELA DO SOL
LADY LAND BLUE: A BELA DO SOL
SAI DO BANHO quente, luz de velas. Olhar no reflexo dos encantos juvenis que ficaram no tempo passado. Mantém alguma delícia da sedução arcaica. Vaidosa, como fazer preservar os últimos traços do vigor, do elemento sedutor feminino a pulsar nas entranhas??? Que anfitrião dentro dela poderia recebê-la, fazer germinar a semente da juventude, dotá-la de uma vida extra??? Poderia, por mais tempo, desfrutar dessa coisa de que tanto gosta: as artes mágicas das finas iguarias apetitosas, que fazem as delícias do paladar.
O COSTUME sem cerimônia da mesa farta, os aperitivos picantes. como chegar ao doador dessa benesse??? Que teria de conceder em doação, para obter, talvez outra vez, aquele viço original? Satisfaz-se em conservar esse resquício de plenitude nos traços da face, do corpo. Importa-se ficar com essas estrias, pinturas da celulite. Mulher, mãe de todos os seres humanos, através dos séculos e milênios, quem melhor sabe evocar a arte antiga que a fará ficar em frente ao Senhor dos Anéis???
FAZER O PEDIDO, doar a alma. Quem seria tão bobo para querer sua essência nessa condição tão efêmera, sem puberdade, sem primavera??? Que poderia conter de valiosa, senão a aparência??? Aceitaria a permuta por mais dois séculos de permanência na Terra? As perguntas pipocam. Abre o livro muito antigo, o jejum de setenta e duas horas e os banhos de ervas, de certa forma a purificaram. A sétima etapa do ritual agora. Momento das evocações finais. Usar a criatura interdimensional, ser usada: ambas uma. Uma fenomenologia. Invulgar.
DOZE PESSOAS a cada mil anos, não mais que uma dúzia. A elas é concedido o privilégio de abrir, por momentos, o portal interdimensional, fazer o trato. Que mulher não abandonaria os filhos, o amante, as amizades, para que esse desejo fosse satisfeito??? As perguntas ecoam, as dúvidas pipocam. Quer respostas. Dois séculos bastam???
OUVIU, MAS NÃO, do outro lado do espelho, entre a névoa da sauna aromatizada por dez feixes exemplares do fruto capsular, colhido na lua cheia, gênero luchea. Daí derivou seu nome Lucha, a que não desiste de lutar. Olha no espelho, não vê ninguém, nem ela mesma. Diga sim. Apenas diga sim...Sim, sim, mil vezes sim. Desperta no chão do banheiro, dois dias depois. Ter-se-ia realizado a contento o ritual??? Em vez de respostas, dúvidas: terá agido certo? Insegura, medrosa, divaga. Recorda nitidamente a força ultra-humana das membranas interdigitais dentre os dedos que apalparam seus membros. Feito. Pancadas dadas e palavras ditas, nem Deus tira. Ela estava por conta do acontecido.
VALERÁ A PENA uma vida prolongada nessas condições sociais de ultraviolência??? Dois homicídios a cada noventa segundos. Um espancamento a cada sessenta. Os perigos de estar exposta a situações difíceis, inusitada, no futuro. Terá que aprender a conviver com, talvez, oito gerações diferentes durante os próximos dois séculos. Não será muito conhecimento, muita dor??? Soluça, misto de angústia e satisfação. Quem conta as lágrimas das mulheres??? Acredita compreender o mundo melhor que os homens. Por isso chora com mais frequência. Toda essa coisa não passa, talvez, de sonho, bobagem, um pacto de ficção.
NUM IMPULSO joga o cobertor para o lado. Deseja inutilmente voltar a sonhar. Desistir da opção da suposta e parcial perenidade de dois séculos. Dizer, outra vez, não, não, não. Vivenciar a possibilidade. A novidade causa medo. É natural. Esses temores. Precisa livrar-se do conflito, estar firme. Acredita que a mulher está num plano espiritual mais alto que o homem. Não frequentar salões de beleza, não se deteriorar frente ao espelho, nem virar poeira de carbono, exceto muito depois de suas conhecidas. Subsistir à vida de diferentes gerações. Talvez fosse macabro demais. Difícil demais.
NÃO SE DISSIPAR tão de pronto, pudesse essa vir a ser uma experiência incrível. É inato: o inusitado causa temores estranhos. Melhor assim. Fixa-se na superfície especular do quarto. A vaidade, filha da imagem de autocontemplação. Não quer nem pensar em como a coisa toda vai terminar. Detestaria estar numa praia, 73.000 mil dias depois, ao sol, na companhia de alguém de sua simpatia... Surpreender-se ao ver a pele do corpo derreter, os ossos desfazerem-se em cinzas à vista de todos. Como nos filmes de vampiros. Passaria por essa humilhação na passarela febril do futuro???
ESSA POSSIBILIDADE desfaz a vontade de ter realizado o ajuste. Na vida nada é gratuito. Esse desejo imperioso de viver mais tempo, apesar dos riscos implícitos, saborear longamente as substâncias sápidas da vida. Ficar à mercê da sombra dos sabores que se esvaem através da língua imperiosa do Tempo: o sereno egoísmo de se apetecer no gozo do cheiro, no saibo dos frutos da terra, do mar. Saturar-se deles.
MANTÉM A FORMA física devido ao jejum de 24 horas que gosta de fazer de sete em sete dias, após os quais passa uma semana alimentando-se de maneira frugal, como se hóspede de uma estância termal. Gosta de frutas secas e legumes cozidos. Nove décadas depois, sonha-se a correr na esteira natural de areia, em direção as ondas. No sonhar recorrente, a sensação de estar velhíssima, ao mesmo tempo o corpo moderado. Após esses anos todos, mantém a elasticidade balzaquiana. A sensação dos estímulos oníricos repete-se. Os dias, semanas, décadas passam. Ela sempre tenra, juvenil.
AO CONTATO morno da água, os membros inferiores dissolvem-se aos poucos. Vira-se desesperadamente em direção à areia, quer sair fora da água. Viver, correr, voltar, pisar a terra firme no leito da praia. Os pés, as pernas, os joelhos, as coxas, desmancham-se no sal d’água. Água, maldito solvente definitivo. E o sol desse dia lindo. O calor cruel. As mãos resistem, os dedos fincam-se como garras na areia úmida. Buscam, no furor da extrema cólera, puxar os braços que nadam inutilmente no seco. "Mon dieu", mesmo depois de dois séculos, ainda gosta tão intensamente da vida. De namorar.
A QUALQUER custo, quer trazer o resto do corpo para a terra aquecida à beira-mar. Tenta tudo, quer salvar-se da extinção que lentamente acontece na superfície de seu corpo. No desespero definitivo, começa a entoar, baixinho, fixado o olhar no céu límpido, solar, os versos da canção chorada por Édith Piaf:
“MON DIEU! Mon Dieu! Mon dieu!/Laissez-le-moi/Encore un peu/Mon amoureux/Un jour, deux jours, huit jours/Laissez-le-moi/Encore un peu/Le temps de s´adorer/De se le dire/...Le temp de se fabriquer/Des souvenirs...”.
OS OLHOS lacrimejavam fartamente, como se a se despedir da vida tão intensamente amada. Sob a sombra do guarda-sol ela recolhia os membros inferiores que estavam sendo lentamente despojada da pele. Virou-se para o lado em posição fetal, olhando o movimento dos casais que nem sequer prestavam mínima atenção ao acontecimento fantástico, assombroso, que se desdobrava lentamente nela.
“MON DIEU! Oh oui, mon Dieu/Laissez-le-moi/Remplir um peu/Ma vie.../Mon Dieu! Mon Dieu! Mon Dieu/Laissez-le-moi/Encore um peu/Mon amoureux/Six mois, trois mois, deux mois/Laissez-le-moi/Pour seulement/Un mois...”.
ELA OLHAVA a figura esbelta da modelo no outdoor próximo a um quiosque na praia. A bela modelo era ela mesma. Sua imagem bela, sorridente, cheia de vida, parecia olhar em direção dela mesma. Sorriu de si para consigo. Os cabelos brilhavam a propagar o shampoo da moda. Prometiam beleza inusitada nas cores leves e iridescentes do arco-íris que a natureza desenhava na paisagem do sol poente no entardecer na praia.
UMA CRIANÇA a brincar chamava sua atenção. A babá jogava e recebia de volta uma bola de tênis. As raquetes movimentadas de mãos a mão, de lado a lado. Ela sorriu, despedindo-se da vida do menino que brincava. O frasco de shampoo unissex prometia, no sorriso largo da modelo, cabelos para sempre adolescentes.
DE ALGUMA forma tudo parecia que ia num instante, virar cinzas. Conduziria o cinzeiro de seu corpo a outra dimensão do inexistir??? Sentiu que a máxima ambição do ser humano é o esquecimento, o quimérico existir ilusório. Perturbadores esses vestígios de gentes na praia que se desvanecia em anoitecer.
UMA MENINA próxima a ela, provavelmente sua filha, olhava para ela e a metamorfose que se desdobrava em seu corpo e repetia, insistente, a vozinha infantil:
— MÃE, MAMÃE...
OLHANDO PARA a menina, Luchea balbuciava últimas palavras, murmura ativas: “Le temps de commencer/Ou de finir/Les temps d´illuminer/Ou de soufrir/Mon Dieu! Mon Dieu! Mon Dieu/Même si j´ai Tort/Laissez-le-moi/Encore.
A MENINA olhando para o irmão, levanta a voz a chamá-lo repetidamente. Uma titiquinha luminescente, dir-se-ia uma “faísca quântica” destacou-se das cinzas ósseas da modelo, desaparecendo muito rapidamente em direção ao sol poente no horizonte da noitinha que sombreava a praia, os edifícios, afirmando o dia a anoitecer. Despedindo-se do sol, seu eterno namorado, a faísca quântica vivenciava-se e se distanciava ligeira em direção ao horizonte.
(P.S: “Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!/Deixe-o comigo/Mais um pouco/Meu namorado/Um dia, dois dias, oito dias/Deixe-o comigo/Mais um pouco/Para mim.../O tempo de se adorar/De se dizer/O tempo de produzir/Lembranças/Meu Deus, oh sim, meu Deus/Deixe-o comigo/Preencher um pouco/Minha vida/Meu Deus, meu Deus, meu Deus/Deixe-o comigo/Mais um pouco/Meu namorado/Seis meses, três meses, dois meses/Deixe-o comigo/Por somente/Um mês/O tempo de começar/Ou de terminar/O tempo de iluminar/Ou de sofrer/Meu Deus, meu Deus, meu Deus/Mesmo que esteja errada/Deixe-o comigo/Um pouco.../Mais um pouco).