A Cidade dos Caminhos - Invasão - III

O mundo parecia ser dor, e apenas isto. O jovem Guia -as entidades condutoras dos caminhos da criação - estava estirado no meio de uma das muitas vielas próximas ao portal que conduziria aos campos do reino chamado Valhalla. Haviam restos ali, retalhos humanos espalhados por todo aquele setor da cidade. Era a primeira vez que tinha a oportunidade de conhecer o horror de um campo de batalha após a luta ser encerrada. Um espetáculo essencialmente tenebroso. O chão a sua volta, bem como seu corpo, estavam viscosos, exalando um odor fétido. Não havia sangue no outro mundo - não havia plasma e células, mas a energia circulante, em muitos espíritos assemelhavam-se ao fluido vital vermelho dos seres humanos. Mas devido a violência ali, aquela energia, expelida por ferimentos dos seres e espiritos que permaneciam num quase coma devido as chagas, deteriorava-se de tal forma que o ar ficava impregnado por ares extremamente desagradáveis. E quanto mais tempo passava, mais pegajosa ficava aquela energia desperdiçada pelo chão.

Já os retalhos davam toques ao show de horror. Pedaços de corpos, literalmente, haviam sido deixados para trás. A batalha havia sido tão dura ali, que muitos dos seres atacados, por conta da violência e agonia, simplesmente haviam entrado em choque, como se estivessem mortos. Outros deixavam a mostra a parte mais interior de seu ser em alguns pontos, e provavelmente levariam muito tempo se recuperando - e infelizmente a memória era sempre a primeira afetada por tais traumas.

O jovem Guia já não sabia se conseguiria cumprir suas tarefas - não apenas pela perda do membro, mas por não se lembrar do que já havia feito. Sentia a ligação de seus compromissos... mas...em que pé sua missão estava mesmo? Foi então que ao focar sua mente para tentar levantar, notara a falta de algo - uma perna para ser mais exato. Uma perna! Como conseguiria se mover dali?

Respirou fundo. Ele poderia tentar compor uma nova perna, ou reatachar a perdida - caso a encontrasse. Colocar de volta seu pedaço extirpado seria uma forma bem menos custosa de sair dali, mas sentia-se tão mal que duvidava que pudesse fazer qualquer das duas coisas. Sentiu-se enjoado e abandonado. Logo aquela sensação tornaria-se despespero. Depois viria o pânico.

O mundo foi tomando nova forma, agora que estava mais centrado. Foi então que os notou. Bárbaros, ainda ali, saqueando os corpos. Eles tinham aquele hábito, conservado e entranhado em seus seres. Arrastou-se sobre a bunda para trás de uma coluna ali próxima e deitou no chão. Aguçou os ouvidos. Escutava ecos, talvez em algum lugar alguém ainda estivesse lutando.

- Droga. - gemeu, pensando em mil maneira de dali, tentando descartar as que lhe fariam sofrer ainda mais danos. Constatou alarmado que sobravam poucas opções de fuga. E nenhuma delas incluia a falta da perna.

Então ele percebeu um vulto acima da cabeça. Encolheu-se, assustado, para se deparar com uma quimera azul. Podia ser descrita como um gato, mas tinha uma cauda tão longa quanto a perna que havia perdido. Parou um instante olhando para ele.

- Ciano. - Uma voz feminina chamou. Em algum lugar os Vikings também a escutaram.

- Volte Ciano! - ele viu uma moça de cabelos louros, como ouro envelhecido, aproximar-se. Tinha o olhar cinzento, cabelos longos com as pontas onduladas. Trajava roupas brancas, um vestido solto, simples, como o de camponesas da época do império romano. Um espírito humano, reconheceu imediatamente. O que fazia ali?

Imediatamente a pequena quimera azul recuou, e foi correndo até a garota.

-Fuja moça! Eles vão vir atrás de vocês!

Eles vão estuprar você, foi o que quis dizer. Não que sexo tivesse a mesma função que no mundo da carne, mas a pratica era possível. E de igual forma, a vergonha, a sujeira, a indignidade de uma violação.

- Você esta acordado. - Ela parecia surpresa - Eu vou tirar você daqui.

- Não. Saia! Vá embora! Vá embora! - o jovem guia ficara alarmado com tal decisão, mas a garota não ligava. Com certeza deveria estar de passagem por ali. Seu guia deveria ter sido pego. Será que ela estava ali para reencarnar? Poderia ter sido pega na confusão enquanto era acompanhada por um Guia, como ele e a baixotinha foram. Se assim fosse, que destino cruel era aquele, carregar a sensação tão corrosiva de uma violação para o nascimento.

A moça agachou ao lado do Guia, e colocou a mão no coto da perna dele. Logo o rapaz viu uma criaturinha azul insinuar-se ao lado da moça, saltando para seu colo. Assemelhava-se a um gato, mas possuia a cauda mais longa que o corpo.

- Fareje, Ciano. Procure. Vamos, procure! – Ela havia dito ao serzinho, uma quimera, que logo estava saltitando entre as peças de carne ali, procurando a que se encaixaria no ferimento do Guia. - Ele vai achar, não se preocupe.

A moça sorria, enquanto olhava em volta, procurando por outro ser consciente. Ninguém. Estranho, ela parecia a vontade naquele local- humanos, costumavam ficar imensamente desconfortaveis e assombrados com Axis Mundi. De onde viria? Mas não havia tempo para procurar tal respostas. Os Vikings, cinco deles, avançavam para cima de ambos agora.

Até que uma terceira figura somou ao lado deles. Havia um gibão de pele grossa, negra e densa sobre seu corpo. Tirou-o, depositando nos ombros da garota. Aquela peça desprendia uma energia tão essencialmente maligna que o Guardião afastou-se num ato reflexivo.

- Saiam. - Disse o homem num murmúrio para eles. Tinha cabelo negro, desengrenhado, curto. O olhar verde, cruel e sanguinário. A pele que quando encarnado deveria ser branca, dava sinais de escurecimento, como se estivesse acinzentando. As unhas eram negras e grossas, a boca era mais escura do que se podia esperar, bem como a língua. Os dentes pareciam mais agudos do que caberia a um ser humano. Ele percebia veios negros onde deveriam haver veias e artérias, em toda a extensão de pele que via. O ser carregava um elmo na mão, complemento da armadura romana completamente preta. Havia uma espada - não um gládio. Era longa, tão escura quanto a armadura, opaca. Colocou o elmo sobre a cabeça e adiantou-se.

A menina ao lado do Guia, segurou-o por trás, passando os braços pelo peito dele, e o colocou sobre de pé, sobre a única perna.

- Vamos ver se isso funciona. Tente andar. - disse a garota. O rapaz teria de saltar, espaços muitos curtos para não cair.

Moviam-se muito devagar.

- Não desista, uhn? - Ela tentou animá-lo, mas o guia, atordoado como estava e dependendo de apenas uma perna, tropeçou. Pisou em falso, ao tocar em um dos muitos retalhos corporais, e desequilibrou-se. Ambos no chão, escutaram o horrível som que vinha de trás. Os vikings haviam encontrado o homem trajando roupas romanas, e agora, gritos, gemidos, e golpes de espadas. O Guia não olhou para trás.

- Ai droga, ele vai ficar uma fera comigo. - sussurrou mais para si mesma, então falou com o Guia perneta:

- Eu não demoro. - A garota estava cheia de convicção. Pos-se de pé, e antes de sair correndo deixou a proteção maligna sobre o corpo da entidade. O guia nunca sentiu tanto pavor de algo, quanto daquela coisa em cima dele. Preferia estar no meio do embate a ter aquilo sobre ele. A energia daquela coisa fazia seu corpo arder e seu ferimento verter mais e mais energia. Aquilo o estava exaurindo, infeccionando sua pele, violando sua essência.

A moça virou numa viela, embora não tenha visto isso. Retirou de corpos ali caídos duas armas- uma espada e uma adaga, e voltou voando para junto do jovem, passou por ele, e gritando, foi ajudar o outro guerreiro armadurado em negro. Ambos eram espíritos humanos, como os vikings. Agora, coberto pelo gibão de pele, asfixiado por sua energia, a entidade não raciocinava direito. O que aquele homem fazia ali? E porque aparentemente o estava ajudando. Ainda que fosse muito suave, ele tinha claramente o aspecto e a aura de um espírito Abissal. Então, o que fazia aquela moça indo ajudar-lo? E em primeiro lugar, porque ele a tinha protegido?

***

Adorada, era assim que a moça chamava a baixa Guia dourada que se comprometera a ensiná-lo. Guias não possuíam nomes, se identificavam pelas características únicas que seus espíritos detinham, e não eram os únicos seres assim. Contudo, humanos, por cultura e costume, pareciam querer rotular tudo e todos. A moça dizia que a guardiã era uma criança adorável, dai o nome.

- Eu desci por causa dela. - Explicou a garota - eu a vi entre correr para defender os muros e o portal, e tive de descer. - Segurava em seus braços a guia em questão, desacordada e fatiada. Ainda bem que não estava consiente para enfrentar a agonia de seu corpo retalhado.

O outro humano, o "negro", parecia imensamente insatisfeito com aquilo, mas permanecia em silêncio.

- Me chamo Estrela. - a moça olhou de lado e percebeu os humores do outro humano - Este é meu companheiro, Fogo.

- De onde vocês são? - Quis saber o jovem Guia.

- Daqui mesmo. - respondeu a garota, sorrindo.

- Impossível.

Fogo soergueu a sobrancelha. O guia recuou.

- Mas é verdade. Se houvessem habitantes nessa cidade, esses seriamos nós.

A verdade é que não haviam casas em Axis Mundi. Salões sim, templos, plenários, museus, bibliotecas... Todos poderiam ser chamados de locais de trabalho, estudo... mas nenhuma morada. Todos os seres que ali passavam, nunca permaneciam indefinidamente. Mesmo os Senhores do Destino uma hora juntavam-se à Memória do Tempo, a Dama muitas vezes chamada de Acácia.

- Nunca vão embora? - quis saber a entidade.

- As vezes deixamos Axis Mundi. - Repondeu Estrela.

O Guia achou aquilo muito triste. Espíritos humanos que se reusavam a fazer seu caminho e permaneciam perambulando pelo reino da carne sofriam imensamente. Por inúmeros motivos, mas um dos mais dramáticos era a falta de um lugar, um lar. Mesmo o mais pavoroso reino do submundo era, de certo modo, como uma casa. Esses espíritos poderiam sofrer imensamente, serem escravizados, mas não eram algo fora de seu ambiente. Poderiam querer trocar de habitat, mas ao menos tinham um. Cada espírito era encaminhado a um lugar, porque, fosse o que fosse, e porque motivo fosse, aquele local ele pertencia.

Olhou o homem chamado Fogo e soube que a luz o incomodava. Espíritos como ele odiavam a luz com todas as suas forças. Mesmo a mais tênue.

- E para onde vão?

- Para qualquer lugar, moleque. - Ainda que aparentasse uma idade humana avançada, de algum modo, Fogo soube que ele tinha pouca experiência.

O Guia quis perguntar porque andavam juntos, porque ele havia protegido a garota, mas achou melhor não. As vezes certas perguntas tem respostas desagradaveis... seria o caso?

***

Continua...

>>Esse conto é condituanção de

A Cidade dos Caminhos I - A Fronteira de todos os Mundos

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2171702 e

A Cidade dos Caminhos II - O Desafio do jovem Guia

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2173565

>>Pertence ao mesmo cenário dos contos

A Esquerda da Justiça

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2125521

A Barqueira

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2148394

Anam Chara - Onde se encontra a Felicidade

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2164471

>>E o Poema

A prece da Estrela

http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdeamizade/2164487