A Cidade dos Caminhos - O desafio do jovem Guia - II
Na grande torre de cristal, localizada no centro da cidade, que muitos carinhosamente chamavam de "Coração do Labirinto", o Guia mais jovem, que não há muito tempo havia acordado para a existência, aguardava uma de suas primeiras tarefas. As entidades chamadas Guias eram os conhecidas por Condutores dos Caminhos, e exerciciam uma infinidades de funções na criação. Dentre as tarefas que este já realizara, havia buscado espíritos humanos em seu desencarne, guiara entidades pelos caminhos labirínticos e mutáveis da cidade, conduzira um mensageiro para um dos reinos superiores.
- Lembre-se que pode declinar a tarefa - disse um dos Senhores do Destino. Aqueles seres conheciam o destino de cada peça da criação e coordenavam, basicamente, todas as atividades da cidade.
- Eu aceito. - Disse o jovem Guia. Havia tomado como sua uma aparência humanóide madura, o que um humano calcularia por quarenta e poucos anos. Tinha cabelos grisalhos misturados a fios negros, olhos escuros e pele morena, de constituição magra e enxuta. Mulato, definiriam alguns.
- Então tome as devidas providências para que possa executar seu próximo trabalho com eficiência. - Em tom de despensa, a outra entidade dirigiu-se a ele e depois voltou-se para uma das muitas mesas ali, onde pegara uma esfera que parecia ser constituída de cristal. E o jovenzinho foi deixado com seu encargo.
Algumas trilhas, para alguns reinos, guardavam o perigo e risco que seus os habitantes do lugar impunham. E isso era verdade em grande maioria dos reinos inferiores.
"A próxima tarefa encaminhada a você" dissera o senhor do destino " É a recolocação de uma alma no plano carnal. Uma alma que vive nas periferias dos Pântanos de Degeneração, a meia distancia da capital daquele reino. Como sabe, se aceitar a tarefa, estará imediatamente ligado a ele até que o trabalho seja concluído" reiterou. Quando um Guia aceitava uma tarefa, uma ligação se fazia entre ele e seu objetivo. No caso, em questão, ele teria de buscar o espírito alvo, trazê-lo para Axis Mundi onde seria preparado para a reencarnação, e então levado para o mundo mortal onde seria ligado com seu novo corpo. Portanto ele precisaria convidar a essa tarefa outras entidades que pudessem tornar essa operação possível. Uma cria da justiça, uma fada da geração, entidades que pudessem ajudá-los a trilhar o caminho que o levaria a alma em questão os Pântanos da Degeneração - se fosse sozinho, corria o risco de ser atacado, escravizado ou pior - mutilado, exaurido de sua energia ate sobrar unicamente um ovóide, essência divina de que todos os seres são feitos. E esse ovóide só teria nova chance de evolução ao ser resgatado, reintegrado e restaurado - mas então todas as suas experiências teriam sido perdidas, pedaços espirituais espalhados por uma terra inóspita. Talvez nunca fossem recuperados. Seriam mantidos junto aos dejetos de outros seres. Ovóides costumavam ser uma caríssima moeda de troca - pois possuíam energia vital básica inesgotável. Não obstante, um ovóide jamais fugiria, jamais reagiria. Era como um ovulo que acabara de ser fecundado - contento todo o potencial para a vida, contudo, apenas um projeto, um gérmen.
Era o primeiro real desafio do Guia, por isso apressou-se em procurar por toda a ajuda que precisaria. Passeando pelas ruas em eterna mutação de Axis Mundi, o jovenzinho observava a cidade a sua volta e pensava, seu assombro seria eterno. De fato, em toda criação não havia local mais elaborado, cidade mais movimentada. Ali era possível encontrar todo o tipo de entidade, conhecimento. Ao procurar pelo ente que iria ligar o espírito ao corpo. A cultura popular as chamavam de fadas, e ele as encontrou aos montes, em um pátio, plasmando pequenas esferas que costumavam chamar de sementes-da-vida. Eram usadas para moldar ovóides, ligar espíritos a carne, dar forma a egrégoras, quimeras e formas-pensamento. O lugar era como um grande bosque-jardim, incrustado entre as demais construções, que se espalhava por todo um setor da cidade. As trepadeiras ganhavam algumas construções, espíritos de plantas e animais, dos mais variados, espalhavam-se pelo lugar. Havia chuva, ali, e apenas ali, as vezes. As estações passavam por ali também, da primavera ao inverno. Criaturas de todos os climas e regiões poderiam ser encontradas ali. O Guia sabia, os caminhos que saiam dali davam para o reino chamado Primeva, o local onde toda vida era idealizada. Ele nunca havia ido até lá, mas sentia que gostaria de conhecer tal lugar.
Seu primeiro obstáculo foi conseguir que um daqueles seres lhe fizesse uma semente. Após saber quem receberia, a maioria delas simplesmente recusou-se a prestar o serviço. Faziam seu trabalho com tanto amor e carinho que era quase um ultraje desperdiçar sua energia com esse tipo de ser humano. "São criaturas passionais" ficou alarmado "e agora? Eu não deveria ter falado onde esse espírito estava." concluí. Algumas ate mesmo recusavam-se a continuar no assunto. O jovem descobriu, sem querer, que barganhar funcionaria.
- Se me fizer um favor, eu até posso fazer essa semente para você.
"Opa", pensou "minha chance".
- Claro.
Um favor que lhe custaria caro e um grande desvio. Teria de atravessar toda a cidade, atrás de um dos Executores, para que um deles fornecesse material a ela. "Coisa boba." Disse a fada "Eu preciso deste material, mas é tão longe." e era mesmo. Os Plenários do Equilíbrio ficavam do outro lado.
- Farei esta a vocês assim que me trouxer o que preciso. Veja, tenho muito trabalho atrasado - Cintilou a pequena fada, satisfeita por ter conseguido que alguém percorresse aqueles caminhos por ela. Sozinha, perder-se-ia com certeza.
Não foi diferente com a escolta que necessitava. A maioria não se sentia a vontade para arriscar o pescoço ao lado de um novato. Não que fosse falta de vontade, mas perder a própria consciência porque uma criança resolveu abraçar uma tarefa difícil era o tipo de sacrifício que bem poucos estavam dispostos a fazer. O jovem guia sentia o tempo passar, e não encontrava nenhum guia ou protetor disposto. Apelou para os mensageiros. Nada. Executores, não. Predadores, Buscadores, ninguém. Já cansado, pronto para voltar a torre de cristal e pedir para que sua tarefa fosse passada para outrem, encontrou um Guia num corpinho infantil que também procurava os Senhores do Destino.
- Parece que você teve um longo dia ahn? - Era uma menininha loura, de cachos e olhos dourados. Parecia feliz, andando em passo apertado para
- Uhum - Ele suspirou, e continuou, sem deixá-la responder - Acho que deu tudo errado com esse meu novo trabalho. Não consigo ajuda.
- Sei. E que trabalho é?
O Guia titubeou. Mas como mais nada poderia dar errado, respondeu:
- Tenho de encontrar uma alma num dos reinos inferiores, pois é tempo dela reencarnar.
- Ah.
Isso era tudo? Ah? Ele esperava algo como "É, realmente, difícil" ou "Ok, ajudo você".
-É... - suspirou desconcertado com a resposta de "irmã". A garota riu.
- Se quiser minha ajuda, terá de pedi-la.
Será que ela o estava fazendo de bobo?
- Pode me ajudar? - perguntou irônico.
- Claro. Posso fazer mais do que isso. Posso ensiná-lo. Mas... - ela fez uma pausa dramática. Adorava esses pequenos gestos, pareciam dar peso as suas ações - mas... - repetiu - eu quero algo em troca.
- Esta bem. E o que seria? - Será que haveria algo tão ruim que ela precisasse resolver. Talvez o mandasse ao lugar mais distante da dimensão mais periférica...
- Sempre que puder irá me ajudar em minhas missões. - Sorriu - Para ser justa, farei o mesmo. Mas somente quando eu não tiver outro compromisso. O mesmo vale a você.
Era só isso?
- Tudo bem.
- Jura? - perguntou marota.
O rapaz engoliu seco.
- Juro.
A garotinha sorriu.
- Jure que é verdade, que diante da Dama Vendada, jure que ira me ajudar sempre que eu pedir. Contanto claro, que você não tenha outro compromisso que o impeça.
E ele jurou, solene. Passando por ele um mensageiro riu, e continuou seu caminho. O jovem guia sentiu-se de repente muito enrascado.
- Então tudo bem. A primeira lição é essa. Só jure esse tipo de coisa na condição da outra jurar o mesmo também. - Sorriu.
E ele engoliu seco. E agora?
- Mas não se preocupe - tranqüilizou a menina. Ela fez um juramento similar ao dele, muito menos passível de segundas interpretações.
- A segunda lição é: barganhe. Para trabalhos fáceis sobrará auxilio, mas quando você realmente precisar, poucos arriscarão o pescoço. Faça tratos. Aconselho-o a pedir a um dos filhos da Dama Vendada que explique a natureza dos juramentos feitos sob a tutela da mãe deles. Mas até mesmo você, novo como é, deve saber que não se quebra nenhum deles.
- Não quero um Executor na minha cola.
- Ninguém quer. - A garotinha de cabelos dourados continuou saltitando.
Ela explicou a ele que ao ensiná-lo, ela estaria ajudando a si mesma tanto quanto a ele. Ajuda confiável e bem disposta era um pouco difícil. Ela dificilmente aceitava trabalhos para o qual ele havia dito sim, pois tinha poucos companheiros com quem contar.
- Só faço isso quando me sinto entediada. - Confidenciou, sem mencionar que isto não tão raramente acontecia.
- Normalmente novatos como você não pegam esse tipo de tarefa - explicou a garota - por ser perigosa demais. Se todos nós fossemos incumbidos de tarefas assim em tenra idade, mais da metade dos ovóides-escravos nos planos baixos seriam antigos Guias. - a garota olhou pra cima, medintando - É, os Senhores do Sestino nunca erram.
- O que quer dizer?
- Que ele sabia que você encontraria ajuda certa. Ou a pessoa certa. - sorriu, falando de si mesma -Mas se você não estivesse tão enrascado, eu não perderia meu tempo.
Aquilo foi um soco na boca do estomago. Ele tentou gaguejar uma resposta, mas a pequena atalhou:
- Eu gosto de desafios. Ademais, eu sou solidária a quem tem problemas. Um dia já fui eu no seu lugar.
E assim ensinou ao rapaz o que fazer para angariar mais ajuda. Passaram ainda um bom tempo de cá para lá, fazendo pequenos favores pela cidade, procurando por oportunidades de conseguir boas trocas. Ao se encaminharem para a ala dos Defensores, depararam-se com uma multidão correndo. Os Defensores compunham o corpo de vigias de Axis Mundi, da mesma forma que compunham escoltas de investidas e incursões em reinos inferiores - normalmente no intuito de recuperar almas cativas ou ovóides.
Esconderam-se atrás de uma pilastra, para não serem atropelados.
- Estamos sendo invadidos. - a menina exclamou excitada.
- Você nunca perde o bom humor?
- Não por isso! - riu-se.
- Quem são?
- Não tenho certeza, mas a julgar pelo lugar só podem ser Vikings! - O jovem Guia entendeu por que ela dissera isso. O reino chamado Valhalla ficava num dos poucos portais que tinham portões, bem perto de onde estavam. Contudo, lembrou-se de que hoje em dia ninguém mais era encaminhado para aquele lugar.
- Vikings! - Ofegou o jovem.
- Sim. Os espíritos que ainda caminham por aquelas terras estão entediados com seu dia a dia. A muitíssimo tempo lutam a mesma batalha, vêem os mesmos rostos. Então as vezes ele se organizam, percorrem a trilha do arco-íris e investem contra nossos muros. - Explicou a baixinha - Acham isso imensamente divertido, acredite. A noite, eles estarão animadíssimos, falando sobre a grande batalha de hoje. Euo levo um dia ao Valhalla.
Não importava o quanto de dor e agonia infligissem a outros seres. Os vikings pilhariam, matariam, estuprariam, como faziam em sua época, e então, a noite, reunidos em torno de uma mesa, fartando-se em um banquete espiritual, falariam das cicatrizes que ganharam, das cabeças que arrancaram. A maioria lá sequer tinha lembranças de sua vida terrena, depois de tantos pedaços perdidos. Mas eles certamente não ligavam para isso.
As entidades mais resistentes haviam ficado para defender a cidade - que jamais seria tomada devido a seu tamanho - contudo todas as criaturas pacificas ou inofensivas haviam encontrado caminho certo para longe das laminas nórdicas.
- Você precisa ver quando são os romanos!
- Existem espíritos daquela época ainda? - Não que ele tivesse consciência na época. Havia despertado pouco antes da guerra do Vietnã, mas ouvira historias.
- Oh, muitos mais do que você imagina!
Um estrondo alarmou a pequena. Ela era safa, e saberia livrar-se de qualquer problema mais grave. Contudo, o rapazinho ainda era cru, e teriam problemas caso não saíssem logo dali.
Uma constatação tardia.
***
Continua...
Este conto é continuação do
A Cidade dos Caminhos - A Fronteira de Todos os Mundos
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Pertence ao mesmo cenário dos contos
A Esquerda da Justiça
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A Barqueira
http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2148394
Anam Chara - Onde se encontra a Felicidade
http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/2164471
E o Poema
A prece da Estrela
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