Luz para a Morte
De costas, o anjo prostrado aguardava
Alvas eram sua pele e toga
Negros eram cabelos e plumas
Poderia, um dia, ser vivo encarar seu olhos abissais?
Talvez, em sua ultima hora, possam todos testemunhar
Quão profundo é seu olhar
Que como mar atrai e fascina,
Inconstantes pacíficos, selvagens inconquistados
-Poderia o oceano devolver seus afogados?
- Canção pelo Anjo da Morte
A criança estava sentada em um dos bancos da primeira fileira da sala de espera. Ainda vestia o uniforme escolar azul e branco, mantendo a mochila alojada sob o assento. Tentava, sem sucesso prestar alguma atenção na conversa dos adultos a sua frente - mas pelo menos conseguia fingir algum interesse. Quando a mãe voltava a descansar no assento ao lado, o menino finalmente relaxava, deslizando o corpo no banco até que encostava a cabeça na parede, voltando os olhos para o teto.
Sua irmãzinha resmungava, aconchegada no colo da mãe - tinha apenas 3 anos, e bem poderia ter ficado com seus avós, mas seu pai certamente iria querer vê-la. Eram 03h00 da manhã e o menino mal sentia o corpo devido ao cansaço. E a fome. Embora suspeitasse que se ingerisse alguma coisa acabaria enjoando. E não era apenas o cheiro do hospital que iria embrulhar seu estomago, mas o stress também. A matriarca também não havia se alimentado, apenas a caçula da família.
O menininho pulava da cadeira num arranque, colocando-se de pé na frente da mãe. Ambos tinham olheiras profundas, e clima do hospital só servia para oprimir ainda mais seus ânimos. O pai do menino estava doente, e apesar da mãe não lhe revelar o quanto, sensível, o pequeno sabia que deveria ser grave. Era a terceira vez, em dois meses, que aquela situação se repetia.
- Mãe, eu to com fome.
A mulher suspirava, sem o menor animo para acompanhar o filho mais velho a cantina. Ajeitava a menininha que tinha no colo, e ia se preparar para levantar quando o filho fazia uma negativa, maneando a cabeça. A cabeleira negra que já estava despenteada caia quase toda na frente do rosto, mas o pequeno estava tão cansado que não ligava
- Eu vou sozinho, mãe... pode deixar. - a criança suspirava, tentando aparentar alguma disposição, para que sua mãe não tivesse de descer até o piso térreo também - já fui da outra vez...
- Esta bem. - a mulher concordava com ele, de certa forma aliviada. Trazia a bolsa que estava apoiada num outro banco para perto, e caçava ali dentro algum dinheiro para dar para o filho. O que achava não era muito, porem suficiente para o garotinho comprar algo que o alimentasse. E logo o rapazinho estava andando pelo corredor, do alto de seus sei anos, com o rostinho voltado para cima, observando adultos em jalecos brancos irem e virem, atarefados, quase alheios a sua presença nos corredores brancos do local. Ia para a frente do elevador, e com outras duas pessoas esperava que este chegasse ao andar. E, enquanto fazia seu caminho para a lanchonete, ia pensando que a mãe deveria estar cansada e faminta... não havia pedido o dinheiro do lanche para si... não conseguiria comer de qualquer forma.
Quando voltasse, inventaria uma mentira para mãe sobre o que supostamente teria lanchado, e lhe daria o que tinha comprado.
Sim, porque seu pai havia dito, ainda de manhã, logo depois de ter chegado, que ele iria ter que cuidar das duas mulheres da família. E não ia desapontá-lo... não agora, quando elas estavam precisando de cuidados, e o patriarca estava doente.
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Eram sentimentos conflitantes dentro dele. Em algum lugar, seu espirito antigo dizia que este era o caminho natural, que nada havia a temer. Mudança, transformação. Pensava nisso em seu caminho até a cantina, passos lentos.
Mas sua mãe jamais entenderia. Ele mesmo sentiria profunda saudade do pai.
Embora seu espirito soubesse, de maneira intrínseca, que esta era a condição única para a vida, a morte. Que não haveria como escapar dela, e que o espírito simplesmente perderia a roupagem de carne. Contudo, agora, o garotinho não poderia acompanhá-lo, e a alma antiga ali dentro daquele corpinho tão jovem pela primeira vez na vida experimentava uma dor tão pessoal. Mais forte do que ver seus irmãos jogando-se nos abismos. Mais íntima do que jamais pudera julgar conhecer.
Ainda que soubesse que essa era a porção humana que adquirirá ao habitar esse corpo.
Pediu um salgado para a atendente sonolenta e uma vitamina. Mergulhado em seus pensamentos, o pequenino mal notara a aproximação da moça com o pedido.
- Ei, aqui esta.
- Ahn? –Retrucou aturdido, sequer havia ouvido. Ergueu os olhos para a moça, que haveria de se perder naquele olhar. Era apenas um garotinho, mas havia qualquer cisa grandiosa ali. Velha como o tempo. Quando era bebe, a mãe costumava dizer, brincando, que nunca vira um homem de olhar tão profundo.
- A vitamina e... oh. Você esta... – ela iria falar abatido, mas apenas sorriu. – Não quer um suco também? É por minha conta.
- Preciso levar isto para a minha mãe. Ela não comeu ainda.
-Não vai demorar muito. Prometo.
O pequenino não teve como dizer não, e suspirou. A moça foi até o balcão preparar o suco para ele. Quando voltou com o outro copo de plástico – para viagem – perguntou:
- Qual seu nome? - Como se chamaria a criança de olhos negros, tão intensos, profundo quanto o universo?
- Azrael... –respondeu sem pestanejar.
- Que nome diferente. Mas é muito bonito. Seu pai que escolheu?
O garoto gelou. De fato, era o pai que havia encontrado seu nome dentre as muitas opções que a mãe oferecera. Mas era Pedro, Pedro.
- Eu...
- Você deve estar com sono. Parece abatido.
Sem conseguir corrigir o engano, apenas acenou com a cabeça.
- É um tio seu que esta aqui? – perguntou a cantineira curiosa.
-É meu pai.
- Oh, sinto muito. Mas tenho certeza que ele vai melhorar. Tenha fé! – Ela tentou anima-lo. Retirou do pescoço algo que enrolou na mão, beijou, e colocou no pescoço dele.
O pequenino não conseguiu sequer dizer obrigado. Estava arrasado. Pois ele sabia que tão logo o dia raiasse o pai morreria.
- Eu ganhei de um amigo quando meu pai estava doente. Reze bastante. Vai ajudar.
De fato ajudaria, mas era pela mãe que oraria.
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No dia seguinte, enquanto os tios acalentavam a mãe, o garoto se refugiara no pátio que ficava logo a frente da entrada do hospital. O dia estava bonito, Pedro imerso em dúvidas, tristeza e inquietude.
Seu espírito sabia, mas o coração humano era muito tenro para suportar o que acontecia.
Sentou-se em uma mureta, e puxou de dentro da roupa o terço que ganhará ainda ontem. Sem retira-lo do pescoço, ficou observando-o: as bolinhas brancas, os elos prateados, a cruz de metal. Cristo nela pregado.
Estava imerso em seu próprio mundo, entre a compreensão e a tristeza, a paz e a inquietude. Sabia que dali para frente, tudo seria muito mais difícil. A mãe estava devastada. E sua irmãzinha necessitava de muita atenção. Seu pai não estava mais perto para tudo fazer ficar certo...
Mas o conhecimento deveria acalmá-lo. Deveria. Saber que aquele não era o fim – embora não soubesse qual o destino da alma de seu pai, sabia que poderia reencontrá-lo. Nenhuma separação era eterna. Nenhum estado era imutável.
Sentimento e conhecimento se debatendo, brigando como leões em sua mente, seu coraçãozinho, jovem e humano demais.
Sua mente resvalou para longe daquele momento. Para o conhecimento, pois ele, Azrael, sabia de cada morte que acontecia, cada transformação, a todo momento. Quantos filhos ficariam sem pais. Quantas mães pediam suas crias? Quantos amigos teriam menos um companheiro...
Ainda assim a vida não parava, continuava certa de que isto não era para sempre, portanto não havia luto para o tempo. Ele não espera, simplesmente continuava.
- E então, pequeno, como esta?
O sorriso da moça iluminou a alma da criança.
- Bem. Obrigado. Muito obrigado.
***
Um ano depois, quando a cantineira adoeceu, o garoto, tendo fugido de casa por alguns instantes, de algum modo que ela não saberia explicar, foi encontrá-la. No leito de sua morte, devorada por um câncer voraz, a moça sequer sentia dor pois a morfina não deixava.
- Eis aqui... deixe-me falar a você... do que virá depois.
Mais dono de si, naquela noite, durante sua passagem, a moça foi pessoalmente escoltada até as portas do outro mundo por um grato Azrael. Dali em diante ele não poderia acompanhá-la, mas sabia que ficaria em boas mãos. Ele, o anjo da morte, havia escolhido a vida da carne. Confidenciara ao espírito da jovem moribunda o quem era e dali pra frente o que encontraria. Lhe contara sobre a dor que o consumia naquele dia que o conhecera e contara como fora grande o favor que a ele prestara.
- De alguma forma, eu não sei explicar como, você me deu a confiança, a fé na vida que eu precisava para não desistir. Por essa dádiva, muito obrigado.
Os humanos eram assim. Fontes de esperança onde quer que fossem.
- E o que você veio fazer aqui, menino Azrael? - Sorriu, no momento que entendeu a intensidade daquele olhar. Fitar aqueles olhos era como fletar com o abismo, encarar a morte.
Era uma boa pergunta esta. Porque o anjo encarnara? Mas esse segredo não poderia confidenciar.
- Só peço que reze por mim.
E do outro mundo, a mulher que derá Luz ao anjo da morte, por ele iria rezar. Feliz.