Anam Chara - Onde se encontra a felicidade?

Anam Chara - Onde se encontra a Felicidade?

O Salão apinhado de homens e mulheres tinha parca iluminação. O ar abafado tinha uma nota gélida, ainda que a respiração dos participantes do banquete o aquecesse - lá fora, neve cruel cobria a paisagem. Havia bebida, cerveja, vozes e agitação. Mas fome, comida e álcool haviam colocado a maioria dos convidados sentados quando os principais pratos do banquete foram servidos. No ano de 1.090 do calendário Juliano*, a corte do rei Inglês contava com um bardo - um grande nome - e por anos aquela terra não havia conhecido um tão bom.

Uma figura excêntrica e magnética, que capturava a atenção dos comuns mesmo quando tentava permanecer anônimo. Era alto, constituição enxuta, cultivava uma barba muito bem cuidada, assim como cabelos. Estava sempre vestido com roupas limpas, procurava manter alguma higiene, coisa pouco comum para a maioria. E claro, era fonte constante de boatos. Diziam na corte que o bardo, nomeado Emrys, é uma criatura vil, pagã, que vendera a alma ao diabo em troca das histórias do mundo e de boa voz. Mal sabiam eles que em parte estavam certos - Emrys constituía parte da Tríade do sacerdócio da antiga religião*² - pagão. A maioria dos homens e mulheres intitulados bardos não passavam de rascunhos indecentes do posto com que Emrys fora investido.

Contudo, naquela sociedade, não era interessante espalhar a verdade. E sua religião estava agora quase morta para o mundo. O que ele poderia fazer era manter alguma da sabedoria e conhecimento. E se os Deuses permitissem, encontrar alguém com competência suficiente para passar adiante a sabedoria dos antigos.

Um rapaz aprendia com ele, agora, há três anos. Emrys não tinha tempo a perder, pois sabia que precisava encontrar alguém apto, mas não tinha certeza sobre o garoto. Ele tinha potencial, sem dúvida, mas havia sido educado pela rudeza, então não sabia se algum dia sua mente e coração estariam prontos. Naquela tarde mesmo havia ensinado ao rapaz alguns conceitos e lhe passado o conhecimento sobre as anam chara*³ - as almas amigas.

Naquela noite, como sempre acontecia, haveriam de pedir que ele cantasse algo. Que contasse uma história. Então observava a platéia enquanto tal pedido não ocorria. Ao notar um grupo pouco mais distinto dialogar sobre o inferno, a boca de Emrys relaxou em um sorriso tímido. Aqueles homens falavam sobre sofrimento e punição, contudo, o que aqueles homens poderiam saber das mazelas do mundo? Cultuavam o sofrimento de um Deus e não sabiam quantificá-lo. Falavam em dor, mas o que é a dor comparada ao tormento da alma? Apenas os corações Negros sofreriam ao deixar essa Vida?

Então quando o rei dirigiu a Emrys bêbados pedidos por entretenimento, o bardo já tinha na ponta da língua a próxima atração. Ergue-se e afastou-se do canto reservado onde estivera até então, trazendo consigo a harpa que estivera dedilhando. Gostava dela e de sua flauta, contudo as colocaria de lado hoje.

Entoou então, com for clara e firme:

- Se me concederes a honra, meu rei, irei contar a vossa majestade e todos os presentes uma história que ouvi ainda menino. Foi-me passada pelo meu pai, que aprendeu com o pai, e que tem corrido minha família a gerações. Fala sobre os guardiões do mundos dos...

- Espíritos? - Interrompeu um dos cavaleiros. Sir William era um dos cortesãos que não perdiam uma oportunidade sequer de prejudicá-lo, mesmo que fosse de forma tão infantil. - isso é blasfêmia. Cornwall, nosso bispo, concorda, não?

- É apenas uma história, meu bom sir William. - Volveu o bardo - Garanto que meu intuito é vossa diversão. Uma fantasia. Creio que os distintos convidados de nossa Majestade entendem isto. A não ser, é claro, que pense que as tomo por verídicas. Ou o senhor as toma?

Emrys não permitiria ao bispo expor suas opiniões. Depois de algumas risadas e reclamações do sir, o bardo pode finalmente voltar a falar:

- Os guardiões do mundo dos espíritos. Veja, há um limite entre o céu e o inferno, e diz a história, existe na fronteira em comum de todos os mundos, uma cidade. Lá todas as línguas são uma, e lá todos os caminhos se cruzam. Assim, todas as almas passam por aquele local. Não é um lugar nem bom nem mau...

- Chamam isto de purgatório, meu caro Emrys - falou um dos sacerdotes de cristo. O bardo coçou a barba, suspirando por ter de adaptar um conto que tanto lhe agradava. "Falarei de Anjos e de Cristo" pensou "e que os Deuses me perdoem..."

- Pode-se dizer que sim. Mas nesta história a cidade - ou o purgatório - é de menos importância. São dois guardiões voluntários daquele local o centro desta narrativa. Permitam-me...

---

O Centro do Mundo, eis o nome da cidade. Lá, bem e mal, luz e sombra, dia e noite podem se encontrar num mesmo lugar. A cidade faz fronteiras com todos os mundos, possui todas as trilhas, conhece todas as línguas. Lá Estella e Esther são conhecidas como deveriam, Estrela - Todas as línguas são uma, então todos os nomes são apenas seu significado. Eu poderia discursar por toda a noite o que há lá e o que vocês encontrariam naquele local de maravilhas, contudo, hoje lhes contarei sobre dois guardiões daquela cidade. O que há de especial sobre eles é que são voluntários. Não que sejam os únicos nessa condição, mas há um motivo muito especial para que o sejam.

Mas comecemos do começo, não?

Fogo e Estrela - como disse, lá é como são chamados - conheceram-se ainda andavam por esta terra. Isto foi depois do filho de Deus ter andando sobre o mundo, mas muito antes de todos aqui conhecerem a vida. Foi a tanto tempo que parece impossível que seus espíritos ainda estejam empenhados em sua tarefa, mas, se for verdadeira, talvez permaneçam lá até o dia do juízo final.

Pois Fogo foi condenado ao que todos conhecemos por inferno.

Quando a vida ainda empurrava sangue por suas veias, ainda que cristão, Fogo foi um homem cruel e frio. Grande guerreiro, contaram-me que por prazer, encharcava a terra de sangue e espalhava terror pelos campos inimigos. Contudo, ele orava. Orava com sinceridade, dizem, e dirigia-se a Deus assim "Senhor, em honra a minha devoção, salvai a alma de Estrela. Pois a minha esta afogada em pecados dos quais não me arrependo. Dai a ela a salvação, pois seu coração é bom, ainda que seja pagã. Ensina a ela sua vontade, pois Estrela, antes de tudo, é essencialmente mais cristã do que eu jamais poderei ser."

"Salva-a".

E assim, Deus, ouvindo o sincero desejo de Fogo, por ser esse altruísta, honrou um dos poucos sentimentos puros em seu coração. Aquele que o levava a interceder por Estrela.

Mas a vida traça caminhos insensatos. Por uma falha da mulher que ele quis proteger, um erro feio e rude, que faria brotar sentimentos vingativos na maioria dos homens, Fogo morreu. Estrela o havia traído.

Condenado ao inferno e ao sofrimento, seu coração se encheu de veneno. Cada instante parecia ser eterno, e seu rancor multiplicava-se monstruosamente, até ele mesmo não conseguir ter qualquer outro pensamento que não fosse à dor daquela que um dia ele havia desejado salvar. Quando a chama ardente da raiva já havia calcinado quase todo o sentimento que tivera por ela junto com suas lembranças, alguma coisa aconteceu. Desconheço o que, mas certamente foi à graça divina. Sim. Um fiapo de luz iluminou o ultimo fiapo bom de recordação que ainda conservava, o sorriso de Estrela. E ela reluziu nas sombras daquele coração corrompido, cintilando.

Como descreveu meu pai "Mesmo todo aquele sofrimento não foram capazes de atormentá-lo mais do que a idéia de nunca mais ver o sorriso dela."

Pois o sorriso dela era qualquer coisa brilhante, capaz de espantar qualquer treva. Afinal é isto que estrelas são, pontos de luz impossíveis em meio à escuridão.

E assim, aos poucos, Fogo reuniu forças, e como um dia fizera na terra, agora nos domínios inferiores difundiu o medo e o horror. Sim, meus caros, era tão terrível que o fez mesmo entre as criaturas vis e desumanas que habitam o submundo. "Se ela chamar, irei. Mesmo que tenha de passar por toda sorte de bestas. Lá estarei". E assim foi. Sua alma venceu barreiras, criaturas abissais, e quem poderia com tamanha força de vontade? Assim os senhores do abismo o deixaram escalar até a cidade da Fronteira, o lugar onde todas as trilhas se encontram. E lá ele seguiu a estrada que o conduziria a ela.

E pacientemente aguardou. Velava seu sono, assistia-a caçar. Sussurrava conselhos, consolava-a nos sonhos. Quando as sombras estavam à volta de estrela, ele quase podia tocá-la - e a muito custo arrastava-se atrás dela sob a claridade dolorosamente esmagadora do sol. Ele, que sempre preferia a noite, agora sentia sua alma queimar sob a luz. Mesmo o bruxelar de uma vela o incomodava.

Então a luz da vida de Estrela apagou-se para o mundo. Creio que irei contar como isto aconteceu em outra oportunidade. Hoje, lhes digo, naquele instante não existia homem mais ansioso que Fogo, que aguardava por ela. Confuso em sua angustia, o homem quisera as entranhas de quem ousará machucá-la, sofrera a dor de Estrela, quisera socorrê-la. Contudo, ansiara tanto por sua morte. Era como um menino a espera de um brinquedo.

Não permitiu que qualquer anjo se aproximasse dela. Seria ele o primeiro a saudar a estrela que brilhara no firmamento escuro de sua existência. Naquele momento não importava o que ela havia feito - embora a culpa existente no coração de Estrela pela morte de Fogo fosse como ambrosia para o homem. Oh sim, ele sabia, no peito daquela mulher havia remorso, havia culpa.

Quando finalmente pode tocá-la, ela não disse palavra alguma.

Nem ao menos houvera choque. Talvez a jovem esperasse reve-lo também. Com certeza havia ansiado por isso, pois sem pestanejar abraçou o amigo, o amante, o companheiro. Quando vivos haviam sido um para o outro como irmãos a principio. Sempre juntos, ainda que opostos.

E então o drama que seguiu abriu chagas profundas no coração de Estrela e dos anjos que rodeavam o casal. Ainda que seus pecados não fossem suaves, estrela deveria seguir o caminho oposto de Fogo, para a luz, para o paraíso. Deus, afinal, havia atendido um pedido especial. A oração sincera de um homem que conhecia poucos motivos para fazer o bem - e ainda assim fora capaz de uma ação altruísta.

E o que faria Fogo?

Os anjos olhavam, descrentes da sinceridade dos desejos que o rapaz havia direcionado a Deus. Vejam, que homem enfrentaria demônios, arrastar-se-ia pelo inferno, aguardaria com ânsia pelo reencontro com a mulher que amava para em seguida deixar o ser cobiçado partir?

Então o que era cinzas tornou-se nada, pois não havia rastro de coração em Fogo quando ele afastou-se de sua Estrela. O esforço de separar-se dela, deixá-la seguir para onde ele jamais poderia ir, haviam exterminado o ultimo resquício, o ultimo fiapo de luz que havia em seu ser.

Ela não compreendia, não podia entender. Quis saber porque ele se desvencilhara brusco, se estava ali, para recepcioná-la. Acaso ela dissera que o deixaria? Não havia pergunta que Fogo respondesse. Ele já não tinha animo pra explicar - ele sequer julgava que devesse uma satisfação por tal ação. Porque ela simplesmente não ia?

Mesmo os benditos anjos de Deus, pasmos em sua descrença, nada conseguiram falar.

Mas afinal, havia o que ser dito?

Então tomaram Estrela, a menina cintilante, gentilmente pelos braços. Os anjos tentaram guiá-la pelo claro caminho ascendente logo atrás deles enquanto as sombras aguardavam fogo. Derrotado, ele havia dado as costas ao cortejo, sua despedida seria simplesmente esperar que fossem. Para longe. Para o impossível.

" Mas eu não quero ir!" protestou a garota.

"Não diga tolices, criança" volveu um dos anjos "pois não sabe que este caminho conduz ao céu?"

"Céu?" titubeou a moça.

"O paraíso. O lugar que nosso senhor reservou aqueles bons de coração."

Estrela estancou no lugar. Ela mal conseguia juntar dois pensamentos em um raciocínio, acabará de deixar a carne. Sequer pudera dizer a Fogo quanto sentira sua falta, quanto se arrependia de seus erros. Mas não demorou muito para entender o que significava seguir com os seres alados.

"Entendo, e agradeço." Respondeu, desvencilhando-se deles com delicadeza. Agora ela era muito mais dona de si. Ainda que tivesse duvidas, sabia que para onde ia, Fogo não poderia ir. "Mas não irei." Arrematou a garota.

"Entende o que diz? Para onde irá então? Recusas ir para o lugar que todas as almas desejam como destino?"

"Peçam perdão a Deus por mim. Ou a Deusa. Creio que se me concedeu este lugar é porque sabe quem sou, quem fui, e o que vai em meu peito." Cintilou Estrela. "E para mim, aquele lugar é impossível".

Fogo sentiu-se gelar, mas não havia qualquer compaixão ali. Ela simplesmente desperdiçara seu ultimo esforço negando o céu. Ela, que o traíra, que deixara a morte engoli-lo, atraiçoava-o novamente.

"Esta confusa ainda, pequena. Seus pecados foram perdoados, seu caminho esta assegurado. Não vê que até mesmo aquele ser grotesco reconhece que seu lugar é no céu, que deve partir?"

"Aquele é Fogo, eu sei e entendo o que ele fez. Mas vão, não se demorem por minha causa. Não irei com vocês."

"Porque?" Indagou um dos anjos, que até então havia assistido tudo sem manifestar-se. Mesmo ao ver Fogo recebê-la na morte, o anjo mantivera-se apartado, observando, achando muito curiosa a presença daquele habitante infernal ali.

"Porque meu caro..." ela disse, experimentando as palavras "Porque o paraído, para mim, não fica ali. Não ali." apontou o caminho luminoso por onde os anjos certamente a teriam levado.

"Engana-se" disse outro "Sem duvidas aquele é o caminho do paraíso". Pensava o enviado divino que talvez, por ela ter passado a vida como pagã, desconhecesse a trilha. Mas aquela era uma conclusão tola.

"O que é o paraíso, meu bom anjo?" perguntou Estrela.

"É onde mora a felicidade Eterna." - respondeu o ser alado sem titubear. "Onde Deus fez sua morada" Completou.

"Uma vez um cavaleiro cristão disse-me que ate mesmo no vale mais escuro, Deus estará. E lá, no seu paraíso, ao menos para mim, não há felicidade." Disse, e continuou a explicar "Porque ali não estará o homem que veio me receber após a morte, aquele a quem eu traí, num momento de cega irá, que eu abandonei sem pestanejar, por orgulho. O homem que creio, teve séria dificuldade em chegar aqui."

Fogo remexeu-se. Algo nele ainda a acusava por todos os erros que havia cometido contra ele. Ainda a odiava por desperdiçar seu último ato altruísta. Havia sido tão difícil solta-la, logo agora que podia segura-la novamente.

"Seu amante teve o que procurou, e ele sabia. Oh, ele sabia." Disse o mais enérgico dos anjos, as penas arrepiadas. "Ate mesmo quando se dirigia a Nosso Senhor, sabia que seu modo de vida o impediria de ir ao encontro do paraíso. Mas foi ele mesmo orou por você, para que alcançasse um lugar no céu, a despeito de teus erros, mulher."

"O fez em vão." Estrela sorriu. Quando a mãe dela escolheu o nome, o fez porque acreditava que estrelas eram guias, pontos de luz e esperança onde tudo era treva. “Porque meu caro” continuou, não apenas para o anjo, mas para o homem de costas, que aguardava, a alma morta, pela partida da sua Estrela "Eu jamais seria feliz se cometesse o mesmo erro duas vezes. Se deixasse aquele que foi meu amigo, meu irmão, meu refugio, meu companheiro, sozinho, abandonado, uma segunda vez. Eu estaria pecando de novo, veja bem, e não mereceria o céu."

Os anjos calaram. As almas que ali transitavam por um instante estancaram. Tudo era imobilidade. Ela estava louca?

"Se o céu é felicidade, então aquele lugar seria o inferno. Creio que lá, muitos dos meus queridos me aguardam. Acreditem, eu sinto a falta deles. E é para lá que muitos de meus conhecidos vão. Mas, entendam, eu sei que eles me conhecem, e da mesma forma que eu sei que não posso ir para o céu, também sei que eles me entenderão." Ela afastou-se dos anjos” Eu sempre disse que não é o lugar, mas sim nós mesmo que fazemos nossa felicidade. Eu já passei por tanta dificuldade. Mas me lembro de ter sido feliz em meio ao horror, a mais severa prova, porque tinha aqueles que amava comigo. Sei que de onde estão eles direcionarão seu amor a mim, mas eu seria o pior dos traidores se me permitisse errar duas vezes, conscientemente."

O assombro dos anjos não podia ser maior. Como iriam erguer a voz, ousar tentar qualquer argumento contra Estrela?

" Eu não vou deixá-lo" Disse quando se aproximou de Fogo.

E ele, em sua imobilidade permaneceu.

"Vou para onde você for" Continuou a moça.

E meu pai e avô juram que toda a criação parou naquele instante, na expectativa da resposta.

E ela veio.

"Você me desperdiça, e não o quero. Estive sem você por muito tempo, e é assim que deve ser."

"Pode esbravejar, fazer o que for" riu brincalhona "Não mudarei de idéia". Ao escutar isso, o outro ardeu em íra.

E ela o percebeu.

"Ah vê, não pode resistir a mim. Tenta parecer frio como gelo, mas é quente como fogo, ahn?"

Aquele gracejo aqueceu alguma coisa a mais dentro dele. Mas ainda tinha ira. Contudo, como sempre havia acontecido enquanto era vivo, e mesmo após a morte, nunca conseguiu ódio. Não puramente, com vontade verdadeira. Não como facilmente havia odiado tantos outros humanos.

Mas não haveria de amolecer. Não ainda.

Ele entrou nas sombras.

E ela o seguiu.

Entendam, ela poderia ter sido feita em mil pedaços, que seriam a representação perfeita da dor, e ele sabia. Ele sabia que ela nunca morreria, pois ele mesmo havia sofrido o indizível, mas sabia que haveria tormento atroz, e que recuperar seus pedaços... Então ele a acolheu, muito próxima, protegendo-a com o corpo e braços, cobrindo-a com as trevas que eram sua carapaça contra os flagelos do inferno.

"Louca!" Exclamou enquanto a aconchegava na dura e grotesca proteção, deixando a própria pele nua, exposta. Quando ela era apenas uma criança humana, ele havia cuidado dela, quase uma baba. Naquela época, ele, que amava os animais acima dos humanos, via Estrela como um filhote de bicho. Era essa a impressão que tinha dela agora - algo frágil e ignorante demais dos seus arredores.

"Para onde vamos?"

Aquela era uma boa pergunta. Ele não poderia voltar, não para o inferno. Como a levaria lá? Nem ao menos para as terras nas profundezas, onde havia imposto sua força. Para ele, aquele era um local seguro afinal era lá que havia conquistado o respeito de alguns e o temor de muitos. Obviamente haviam outros mais fortes, mas Fogo era incansável. Nenhuma dor parecia ser realmente capaz de pará-lo, nenhum tormento poderia paralisá-lo, então poucos se atreviam a desafiá-lo.

A exceção daquela pequena insolente que desperdiçara suas preces. Ousará atraiçoá-lo e sem titubear descartava seus esforços.

Então, para onde irião?

Contam por ai, que inicialmente ele a manteve protegida de tudo, guardada pela armadura que a custa de muito sofrimento havia forjado para si. Devagar, foi amolecendo, para ele, ela era uma verdadeira estrela, um ponto brilhante naquele oceano sombrio. Então logo não podia sequer pensar em afastá-la. Contudo não poderia mante-la, não tinha coragem de permitir que sua menina ficasse naquela escuridão sem fim.

Devagar abriu espaço, cada vez mais perto da fronteira da Cidade dos Caminhos. Talvez ela jamais estivesse segura, pois todos seus inimigos - os que tinha conquistado no inferno ou na terra - como sempre, tentariam chegar a ele através dela. Porém ali, no Centro do Mundo ela ao menos veria a luz. Conviveria com outros seres que não apenas grotescos demônios. Veria outros espíritos com luz.

Seria mais feliz.

Mas estrela não reclamava. Jamais. Na verdade aprendera a falar com as feras sem mente que pairavam pelas sombras e ao redor da Cidade dos Caminhos, o Centro do Mundo. Aqueles seres não eram bons nem maus, mas aprendiam. Divertia-se com eles, quando não estava ocupada com Fogo, ou brincando com qualquer outra coisa. Isso às vezes irritava o rapaz. Mas ela se distraia, fingia que não via.

E Fogo se perguntava, temeroso, quando aquele absurdo teria fim. Quando ela finalmente se arrependeria, quando tomaria o caminho iluminado, rumo ao paraíso.

Então um dia, enquanto tentava impedir que ela cativasse mais uma daquelas Bestas, esbravejou "porque não vai de uma vez? Aqui só arruma brincadeiras para feras e é infeliz nas sombras. Vá. Suma.”

"Porque eu já disse, aquele não é meu lugar. Mas se sinceramente quiser que eu vá, não por mim, mas porque já não me suporta mais, então, eu ficarei aqui. Na cidade e você poderá voltar a seu domínio"

Ele poderia ter reafirmado o que dissera. Ter urrado algo como "Desapareça da minha vida", mas... Ela ficaria? Ali, naquela cidade? Não que fosse um lugar ruim, mas não era o céu.

E quando reafirmou o que dissera, ela respondeu com uma pergunta "O que é o paraíso para você?"

Então, o que era? Ele não soube explicar, mas lembrou-se das palavras dos anjos, repetindo-as uma por uma.

"Se paraíso é onde esta a felicidade, o que o faz crer que as trevas me são tão repulsivas?"

Então ele percebeu, que, apesar de não gostar daquele lugar, ou do inferno, para ele já não era insuportável.

"Logo você, com quem tanto convivi, ainda não sabe que a felicidade para mim não é um lugar? Também não são pessoas, ou talvez eu estivesse escolhido onde estão a maioria de meus queridos. " Ele não entendia. Alias, aquilo havia sido um golpe para Fogo. Então Estrela não estava ali por ele? Ela continuou "É onde me sinto em casa, tolo. E foi assim que sempre me senti com você. Antes de sermos amantes. Ate mesmo antes de sermos amigos. Você é minha casa. E se Deus esta em todos os lugares, bem, então é perfeito não é? Estou com Deus e em casa."

Não muito tempo passaria, ate que ele resolvesse guardar a cidade dos caminhos por livre vontade. Veja, Fogo possui qualquer coisa destrutiva em si, então encontrou uma maneira de usar sua violência. Estrela ajudou-o na escolha da forma, e ela mesma esta sempre a seu lado na tarefa. Juntos eles defendem a fronteira de qualquer entidade que atente contra a integridade da cidade-purgatória, que desde o começo dos tempos, foram e são muitas. Dizem que ele é feliz assim. Tem sua guerra, seu Deus e sua Estrela. Quanto a ela, duvido que algum dia tenha sentido verdadeira infelicidade na vida. Talvez seja favorecida por Deus, ou seja louca de fato.

E esta meus amigos, é a história de dois pontos luminosos que perseveraram nas sombras. Um deles arde, chama destrutiva, alimentando-se no fulgor da batalha. Como dizem ter sido quando esteve nessa terra. A outra pulsa branca, no alto, na sombra, perseverante, reluzente, alegre e perene. E assim permanecem, segundo as histórias, e permanecerão. Até voltarem a terra ou quem sabe. até Fogo poder alcançar o céu.

---

O burburinho ao fim do conto era intenso. Alguns indignados, outros extasiados. As mulheres, sem exceção, haviam se perdido em suspiros. Emrys observava os padres, os homens, e ria baixo. As reações deles eram infinitamente diversas.

E deixou o salão. Passos seguros em direção aos aposentos a ele reservados.

Pouco depois alguém o seguiu. Um jovem que a pouco tempo havia tomado como aprendiz.

- Foi uma bela história, senhor. - saudou o rapaz, humilde.

- Mesmo? - o homem riu, esquadrinhando seu aprendiz. Sabia que muitos dos ouvintes se perderiam em detalhes supérfluos, mas precisava saber se o rapaz havia entendido o cerne da questão que ele havia tentado abordar - Me diga, o que achou.

- Acho que é uma bela história de amor senhor. Abdicar do que se quer em prol de outrem.

Ardan tremera em sua resposta, incerto dela. "Tem razão em sua duvida" pensava o bardo, "O conto não fala apenas disto". Mas ele não poderia dar respostas prontas, tão pouco pensar pelo jovem. Se um dia quisesse ser investido como bardo verdadeiro, e não transformar-se apenas numa caricatura, o rapaz precisaria aprender a ver além do óbvio.

- Amor às vezes pode não ser suficiente Ardan. - O homem sabia disso melhor do que ninguém. - Me diga meu caro, poderia ser feliz aqui?

Ardan não tinha certeza.

- Talvez. - Respondeu. - Mas... Então sua história não tem sentido.

- Não tem?

Ardan titubeou. A pergunta de Emrys fora feita com a segurança de alguém que sabia de mais. Era como se indagasse "como ousa duvidar da veracidade de minhas lições?".

O bardo deixou o garoto com as duvidas pairando em volta de sua mente e se recolheu. "Ardan precisa de tempo" pensou consigo "para absorver o conhecimento e a sabedoria". E assim, depois de suas preces, descansou o corpo em um catre de palha. Contudo, até encontrar o sono, ficou matutando sobre o ele próprio havia entoado aquela noite.

A história, adaptada como estava, havia perdido muito de suas peculiaridades. Se quisesse estar entre a corte, teria de maquiar as suas maneiras, e dançar conforme a música dos cristãos. Quando escutou de seu pai a história dos dois heróis, seu coração também não pode compreender. Mas o entendimento dela era necessário. Como bardo, ao menos se verdadeiramente almejasse ser um, Ardan precisaria compreender a diferença entre dor e sofrimento, aprender o que verdadeiramente atormentaria a alma de um homem. Qual era a diferença entre a cobiça material e o desejo da alma. O que distinguia paz calmaria. Esse conhecimento encontraria nos registros sobre os homens, no colorido das histórias, nos detalhes do ser.

- Senhor - Ardan, pouco depois do desjejum juntara-se a ele e agora estavam ambos no mesmo salão da noite passada, conversando, rodeados por alguns dos homens abandonados pelo chão, ainda bêbados e mergulhados no sono. Estava aprendendo um pouco de latim com seu mentor. Repetindo as lições que Emrys ditava, Ardan parecia um pouco distante, sua mente brigando com a narrativa da noite anterior.

---

Guardado consigo ainda permanecia a pele de carneiro com a escrita quase apagada. As letras ficavam mais pálidas a cada dia, como as recordações que tinha da época em que era apenas um aprendiz. Ardan as vezes voltava aqueles versos. Foram preciso anos para entender verdadeiramente o significado daquelas palavras. Muito cedo perdeu a família. E não por muito tempo teve seu mentor consigo. Hoje, havia juntado, em poucos amigos, uma família com quem podia contar. A menina que a poucos meses adotara, ensinava a trilha que com Emrys havia lhe mostrado. Ela era a filha que nunca tivera. Nunca conseguiria pensar nela como um pensava em sua esposa, contudo, desde que podia se lembrar, sentia-se a vontade para conversar com a garota. Para falar de suas agonias e felicidades. Para falar de qualquer bobagem. Com prazer a ensinava, e ansiava pelo sucesso da garota. Como um pai, como um irmão, um amigo.

Decidiu por fim, transcrever o texto em outro pedaço de couro. Ainda que toda a tradição devesse permanecer oral, acreditava que este poderia ser escrito, pois era um presente, um amuleto que a recordaria de certos valores. Murmurou baixo cada sílaba, enquanto pena e tinta imprimiam os sons:

Desde os doces vales iluminados por cálida luz,

Pelos mais gélidos e sombrios vales,

Imperturbado estará meu coração,

Pois sei que estará comigo,

Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,

Que perdoara meus erros, pois sou humana também.

Se me deres sua amizade, eu lhe darei o mundo,

Pois sua felicidade é minha também.

- A Prece da Estrela

* Sobre o calendário Juliano

http://pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_juliano

*² Eram Bardos, Ovates e Druidas

*³ Amigo da Alma. Diferente de alma gemea. Pode ser um amigo, um irmão, um parente, um amante.

Este é um conceito bem legal. Infelizmente não achei nenhum artigo legal pra vincular aqui. Assim que encontrar, edito e coloco. :-)