O DIABO, DEUS E EU
Estacionei o carro no trevo de acesso à cidade de Feira de Santana, para pedir uma informação, já que ali se encontravam dois homens. Aproximei-me e logo percebi que ambos estavam em atitude muito estranha, se olhavam, olhos nos olhos, muito próximos um do outro, pareciam prontos para se atracarem a qualquer momento. Os homens tinham aparências muito semelhantes, mediam em torno de um metro e oitenta, tinha cabelos crespos, barbas ralas, vestiam apenas calças brancas e estavam descalços. Tive certo receio, mas fui em frente e perguntei:
_ Vocês podiam me dar uma informação? _ O homem a minha esquerda me deu uma bordoada muito forte no braço na altura do ombro, e disse:
_ Você não vê que está nos atrapalhando?
_ Posso até estar atrapalhando, mas que direito você tem de me agredir? Quem você pensa que é? ¬_ Falei alteando a voz.
_ Eu sou o Diabo, e posso agredir quem eu quiser. _ Foi quando o homem da direita me desfecha outra bordoada ainda mais forte, na mesma altura, só que agora do outro lado, e falou:
_ Não vê que isso aqui é briga de cachorro grande?
_ E você? Quem pensa que é pra me bater, também? _ Perguntei me sentindo avacalhado. Ele respondeu:
_ Eu sou Deus.
_ Companheiro, esse cara que se diz Diabo me dar uma porrada ainda vai, mas você que se diz Deus ter o mesmo procedimento, é sacanagem.
_ Olha o respeito, eu posso lhe aplicar uma penitência. _ Advertiu-me o tal Deus, me dando outra pancada no braço.
_ Você está muito brabo é comigo, com o Diabo aqui você fica com essa postura de quem vai atacar, mais no fundo está doido que ele desista do embate. _ O sujeito que se dizia Diabo me da outra porrada, só que agora mais amistosa e disse:
_ É que eu conheço todos os truques do Gulú, _ Era por esse nome que o que se dizia Diabo, se referia ao que se dizia ser Deus. _ Eu morei uma época lá no céu e aprendi mais do que devia. Acho até que foi por isso que Ele me mandou embora.
_ Eu não te mandei embora, eu te expulsei do céu. _ falou o tal Deus, e continuou. _ Confesso que me arrependi, não sabia que irias me fazer tanta oposição, eu subestimei tua capacidade, na verdade era melhor ter aturado tuas insubordinações.
_Que isso Gulú, eu só estou fazendo o meu trabalho. _ Falou o Diabo envaidecido com a confissão, que vinda de Deus, era um grande elogio.
Nesse momento os dois voltaram a se encarar, eu me sentindo ignorado, falei:
_ Na minha terra, homem que encara homem não é bem visto. _ As bordoadas agora vieram dos dois lados ao mesmo tempo, a sorte que já prevendo uma reação não muito amistosa, eu abri as pernas para firmar uma base mais forte ao chão, técnica de jui-jitsu, que me foi ensinada na cidade de Petrópolis pelo professor Salin Mu Salim, se não teria caído. Desta feita Deus pareceu ficar bem mais aporrinhado do que o Diabo.
_ Você vai arder nas chamas do inferno, por blasfemar contra a divindade. _ E mais uma porrada.
_ Que nada, a coisa lá não é ruim assim como eles pintam, não. _ Falou o Diabo e continuou.
_ O inferno é muito mais democrático e muito mais animado do que o céu, pra lá vai quem quer, e se o digníssimo cavalheiro me permite dizer, hoje temos até ar condicionado e pra quem não gosta do cheirinho de enxofre, temos incensos de fragrâncias variadas, uma beleza, só vendo.
_ Confesso que já estava me simpatizando com o danado do Diabo, que mantinha sempre nos lábios um sorriso cativante, já Deus, que olhava pra o diabo de rabo de olho, me dava à impressão de estar realmente com medo, mas tentava manter uma postura autoritária comigo. Tudo bem, que ele sendo mesmo Deus não pode deixar a coisa correr muito frouxa, mais tratar o Diabo com mais deferência do que a mim, ah, não! Isso eu não admitia. Então eu perguntei:
_ Olha aqui cidadão, (chamar de Deus também eu não chamava, não, vai que eles estivessem de sacanagem comigo, convinha não me expor muito ao ridículo) o Diabo aqui fala que o inferno é melhor que o céu e você não contesta? Você parece que esta mesmo com medo dele.
_ Não se contesta tamanho descalabro e não tenho o que temer, já que nenhum mal a tinge o Ser Supremo.
_ Alto lá! _ Falou o Diabo. _ Ser supremo pra tuas beatas, lá na minha área o supremo sou eu. E além do mais, eu tenho notícias advindas de fontes fidedignas, que o inferno hoje está muito mais bem administrado do que o céu.
Eu queria ir embora, e terminar com aquela discussão besta, e já estava cansado daquelas porradas nos braços, que os dois tinham mania de dar, (não sei com quem eles aprenderam aquilo), mais a curiosidade me mantinha preso ali. Se aqueles sujeitos fossem realmente Deus e o Diabo, apesar de eu nunca ter acreditado muito nessas bobagens, mas a gente nunca sabe, não é? Eu poderia estar presenciando um momento histórico.
Os dois voltaram a se encarar, eu tive vontade de botar a mão entre os dois e mandar que eles cuspissem, que era um sistema que utilizávamos na minha infância, quando uma briga estava demorando muito pra começar. A mão era colocada entre os adversários que deviam cuspir, assim se o cuspe de um atingisse o rosto do outro a briga era inevitável. Mas vai que os dois não fossem Deus e o Diabo, e da briga saísse uma morte, eu poderia ser indiciado por estimular o confronto. Por outro lado, se o que se dizia ser Deus, fosse Deus mesmo, valia a pena ter um pouco de respeito.
Nesse momento o Diabo olhou pra Deus e disse:
_ Gulú, eu vou trocar o nome dessa cidade, e, por favor, não tente mais me demove dessa idéia. _ Essa era a pendenga entre os dois, o Diabo mancomunado com o novo prefeito de Feira de Santana, que professava uma religião dessas que não acreditam em santos, enviaram para a câmara de vereadores um projeto de lei para mudar o nome da cidade para “Luz e Fé”, que era o nome do Diabo quando ele ainda era anjo e morava no céu, tornando-se “Lúcifer” quando foi expulso. Esse fato obrigou Deus vir à Bahia para interferir, já que o numero de cidades com nome de santos é muito grande, e Deus não queria que o Diabo atentasse para esse filão de divulgação que Ele sempre dominou.
_ Mas Lúcifer, o povo já esta acostumado com Feira de Santana. _ Falou Deus com muito jeito e diplomacia, omitindo o verdadeiro motivo de sua interferência.
_ Se está acostumado, que desacostume.
_ Mas essas coisas não se resolvem assim. Vamos fazer um trato, você deixa a esta cidade em paz e eu te recompenso de alguma forma.
_ Dependendo da recompensa, a gente conversa.
_ O que você esta precisando lá? Perguntou Deus
_ Olha Gulú, de mais urgência estou precisando de um porteiro, pra não ficar aquele entra e sai toda hora, o sujeito vai ao purgatório volta, parece casa de Mãe Joana, eu só preciso acertar essa parte pra minha administração ficar cem por cento.
_ Mas um porteiro não é difícil.
_ Um bom porteiro é difícil sim. Será que você não me manda São Pedro?
_ Mas São Pedro não cuida só da portaria, é ele que vê a parte das chuvas.
_ Em termos de chuva ele está muito mal, eu recebo dados meteorológicos diários e tenho tido notícias de seca em varias partes do planeta.
_ Não, eu não posso negocia São Pedro e além do mais, eu já mandei São Jorge abater a besta que habita as profundezas e ele nunca mais voltou.
_ Nem me fale em São Jorge, nem me fale em São Jorge. _ Se descontrolou o Diabo. _ continua com aquele problema de dupla personalidade, uma hora acha que é santo católico, outra hora que é Oxum, vive pra lá e pra cá com aquele dragão, me cagando o inferno todo, ele já está me tirando do sério. Vamos fazer o seguinte: _ Você me manda São Pedro eu te devolvo São Jorge e ainda de dou Hitler e George W. Bush. _ Propôs o Diabo.
_ Sem chance, São Pedro é inegociável. _ retrucou Deus. _ Pense bem Lúcifer, se eu ponho Hitler pra cuidar das chuvas, ele só vai mandar chuva ácida, ou então de chumbo derretido, você sabe muito bem como é que é Hitler. Por outro lado se eu ponho George W. Bush na portaria, ele vai deixar entrar coisa que não deve. E além do que, ele nem morreu ainda e você já quer negociá-lo.
_ Mais Gulú, aquele você sabe que é meu.
_ Não sei coisa nenhuma, até o ultimo instante a pessoa pode se arrepender, e pare de me chamar de Gulú.
Nesse momento Deus colocou o braço no ombro do Diabo, e sem se despedirem de mim, (Quem é onipresente não precisa se despedir), deram alguns paços e começaram a flutuar em direção a cidade de Feira de Santana. Só aí que eu vi que o diabo tinha rabo, um rabo irrequieto, um rabo que não parava um instante se quer, rabinho feio aquele, parecia ter vida própria e seus movimentos rápidos não condiziam com os gestos calmos e pausados de seu dono.
Era bonito ver os dois se tratando com camaradagem. Deus perguntando como estava Napoleão, Mussolini, Jack o Estripador, Menenguele. Já o Diabo mandando lembranças a Madre Teresa de Calcutá, Jesus Cristo, Mahatma Gandhi, Lady Di, São Francisco de Assis.
Olha, do jeito que eles partiram flutuando, com certeza aqueles caras eram mesmo Deus e o Diabo. Eu estava com os braços em carne viva, de tanto levar porrada, a maioria delas e as mais fortes dadas por Deus, o sujeitinho aborrecido. Mas eu estava estranhamente satisfeito, testemunhei o momento em que Feira de Santana quase mudou de nome, e mais que isso, hoje tenho certeza de que há esperança de dias melhores.
Por algum tempo eu fiquei ali pensando, se aqueles dois continuarem se entendendo, muitas mudanças devem acontecer nos próximos milênios. Talvez o Diabo até mostre ao mundo que é gente boa. Certamente nesse momento muitas religiões perderão o sentido.
Meu destino era a cidade de Salvador, segui viagem sem a informação que tentei conseguir com aqueles dois. Olha, vou te falar! E que dois...