Emboscada - Parte I (conto na 2ª Guerra)
Emboscada - Parte I
Ivan Almeida da Silva, o “Ivan Piro” (ivanpiro@gmail.com).
Este conto é uma continuação do Infiltração, o qual se encontra no Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br), na seção de e-books – contos.
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A mão grossa se enfiou sob a terra e agarrou firme a raiz do pé de batata, puxando-a no impulso do braço forte. Uma faca enferrujada terminou habilmente a colheita.
Alexander Corvonov largou a lâmina e passou as costas da mão suja no rosto áspero.
Uma sombra se assomou sobre ele subitamente, que imediatamente sorriu satisfeito. Doces lábios tocaram carinhosamente sua bochecha suada.
– Vem, amor. O almoço está pronto.
Ele amava Catarina em sua beleza simples e pura, pouco se importando com as marcas da vida severa na pele ainda macia dela, a qual exalava uma delicadeza que sempre o conquistara. Ela era sua única jóia, querida e preciosa, e era capaz de lhe dar a vida sem hesitar. Lançou-a um olhar sereno, externando discretamente seu contentamento.
– Só mais alguns e já vou.
Alexander estava feliz naquele ano de 1941. A safra seria farta e precisava terminar a retirada antes do inverno. Por causa disso, dedicava-se com ardor, a fim de não perder nenhuma batata para o inclemente tempo russo.
– Está bem. Só não demore muito pra não esfriar.
– Sim.
Enquanto ela se afastava, o fazendeiro continuava concentrado e ordeiro na trabalhosa faina repetitiva, mal parando para respirar. Ainda havia muito a fazer e não se importava com os cortes e arranhões nas mãos.
Entre uma batata e outra, repentinamente um estranho e distante barulho lhe chegou aos ouvidos. Virou-se para os lados, curioso por distinguir a origem dele. Logo o ruído se intensificou em um peculiar ronco de motor. Olhou para cima, franzindo o cenho.
Um avião (não sabia identificar qual) lhe voava perigosamente perto e, ao que parecia, aparentemente com dificuldades de controle, deduzido pelo rastro de fumaça negra que se misturava ao céu cinzento, constituindo-se num espetáculo belo, mas mortal.
Como que despertado pela distração, ergueu-se apressado e se pôs a correr, berrando desesperado:
– Catarina, sai daí!
Mas não havia mais tempo. Assistiu horrorizado a um projétil despencar do aeroplano e, por algum desgraçado motivo, atingir em cheio sua casa.
– Catarina! Não!!!
***
– Catarina!
Cabo Corvonov abriu os olhos abruptamente, algo atordoado. Estava estirado no chão de um porão escuro e fedorento, enfiado em um saco de dormir.
– Merda, é o fim do mundo! Vamos morrer! – berrou o soldado Jacob, tão alto que ocultara a exclamação dolorosa de Corvonov.
– Relaxa, recruta. – disse o sargento Pavel, comendo tão tranqüilamente quanto possível um pedaço de algo que se supôs ser queijo bolorento por causa do cheiro, mastigando-o devagar. O cabo reconheceu-o de pronto, sua sombra encurvada e melancólica se destacando nas trevas.
Corvonov se soergueu, à medida que a consciência lhe voltava lenta e angustiosamente. Talvez por preguiça ou fraqueza, deixou-se deitar novamente suspirando e se encolheu tapando os ouvidos como um miserável, balançando-se lento a fim de espantar o som das explosões que ainda teimavam em torturá-lo.
– Camarada Pavel, vamos sair daqui! – ouviu-se novamente o grito do soldado, jovem recém-incorporado às fileiras do Exército Vermelho, cujo aspecto repulsivo denunciava-lhe a origem: o extremo sudeste da Rússia, um dos lugares mais remotos do mundo, terra agreste de vulcões adormecidos. Levara mais de ano somente para cruzar o país a fim de se juntar à "cruzada" anti-nazista.
O robusto graduado gesticulou com desprezo para que silenciasse antes de se levantar da mesa segurando capacete e metralhadora. Alcançou Corvonov, agachando-se ao seu lado e lhe observando as sombras da fisionomia envelhecida e triste, ocultas sob uma barba espessa coçada insistentemente pelo ex-fazendeiro.
Olhando para o homem deitado, também se sentia infeliz, mas não podia se forçar a morrer. Não queria morrer! Era um guerreiro e, como tal, sua obrigação era lutar. Tinha pena do depressivo Corvonov, pois, no fim, a guerra certamente acabaria por matá-lo.
Cutucou-o insensivelmente com os pés, porque assim as circunstâncias exigiam:
– Você estava sonhando. Levante-se: logo o bombardeio vai acabar e seremos atacados. Pegue suas coisas, cabo Corvonov.
Ele não gostou do tom autoritário e bufou contrariado e resmungando. Só porque Pavel ganhara a promoção por ter derrubado milagrosamente um bombardeiro inimigo apenas com rajadas de metralhadora (e se levando em conta os problemas mecânicos do avião), salvando todos em ocasião passada e caindo nas graças das pessoas certas (chegaram a dizer que ele era um orgulho para o Exército Vermelho), não significava que podia ficar abusando da graduação.
Em segundos se desvencilhou do saco de dormir, enrolando-o e o jogando dentro da sacola de campanha junto com uma toalha encardida. Apalpou a bússola dentro do bornal com o equipamento médico. Ajeitou seu suspensório e cinto, conferindo os carregadores, a ferramenta de trincheira roubada de um alemão (pá e picareta em uma única peça, sua preferida) e o cantil.
O rústico cabo era um combatente pragmático ao abrir mão de itens importantes. Odiava a imagem do soldado curvado com uma pesada mochila nas costas, preferindo o alforje. Assim, não transportava baioneta (desde Stalingrado, para matar em combate corpo-a-corpo, usava a ferramenta de trincheira), mapas (os quais deixava com seus superiores), corda (não gostava de escalar e de alturas), equipamento pessoal de cozinha (com exceção de uma caneca, comia apenas com faca) e lanterna (acostumara-se à escuridão). Tateou a faca de combate presa ao coturno (o calcanhar dele o estava matando) para ver se ainda estava lá. Por fim e o mais importante, pegou seu fuzil Mosin-Nagant.
Antes mesmo de se erguer tomou consciência do seu erro: eles o haviam deixado dormir mais do que devia.
Ondas de poeira e nuvens de fumaça penetravam pelas frestas da porta alquebrada. Corvonov acariciava sua arma cabisbaixo, em um ritual pessoal a fim de espantar a ansiedade.
A tensão permaneceu durante um tempo que lhes pareceu uma eternidade. Com exceção de Jacob, já haviam perdido a conta de quantos tiros de barragem da artilharia inimiga haviam levado nos sofridos anos de guerra e, em todos eles, o sentimento de impotência.
Corvonov passou a tossir e pigarrear enquanto Pavel espremia as pálpebras, ao mesmo tempo em que prendia a fivela da tira do capacete.
– Uma luta dura será sair daqui. – murmurou o grandalhão.
– Acha mesmo que eles atacarão, Pavel?
O sargento apenas acenou com a cabeça, soturno.
O amedrontado Jacob cuspiu. Talvez por um estranho prazer, prendeu o olhar na saliva que escorria tremendo sobre o chão úmido.
– Tem razão. É o que faríamos se fosse com a gente. Mas lembrem-se: isto é guerra urbana, portanto, quando essa droga acabar, fiquem longe das ruas!
– Se esse bombardeio continuar, não teremos mais ruas! – retornou o jovem, a aflição transparecendo em seu rosto. Limpou as gotas de cuspe da boca.
Entre os abalos de cada estrondo destruidor, sem se dar conta, Pavel parou para estudar a figura do recruta: as linhas das sombras dançavam nos seus sebosos cabelos escuros e rosto volumoso embora amassado, totalmente apalermado sob a farda encarquilhada. Pelo menos era essa a impressão que se tinha ao olhá-lo. Desacreditava totalmente que ele sobreviveria para ver o fim da guerra, muito embora por vezes também aplicasse esse senso de fatalidade a si próprio. Nesses raros momentos chegava a simpatizar com os pensamentos de Corvonov, que só conhecia tristeza e raiva.
Um brilho estranho permeava os olhos do cabo, refletindo a calma e frieza ante a iminência do combate. Apenas sob tais circunstâncias modificava-se-lhe a fisionomia. Mas, no fim, havia sempre o ódio.
– Os alemães já deviam ter aprendido. É gasto de munição mirar apenas em pedra. – ironizou, referindo-se à capacidade dos soviéticos de sobreviver, erguendo-se da destruição tal qual ratos ou baratas. – Ah, como gostaria de ter um chucrute como alvo agora! Minha belezinha aqui – deu alguns tapinhas na metralhadora –, acabaria com tudo num susto!
O cabo se acostumara há tempos com as opiniões fantasiosas e por vezes insensatas proferidas no calor das paixões. A verdade é que havia visto muitas mortes para se impressionar com qualquer coisa. Ele era um indiferente.
O último dos silvos da artilharia e o fim dos tremores e da cacofonia mortal veio com um breve alívio, apenas para dar lugar aos gritos dos feridos e à intranqüilidade.
– O inferno acabou. Hora de começar outro. – afirmou Corvonov, num esgar de sorriso sombrio. Raramente se expandia em alegria e mesmo esta nunca era legítima. Comprazia-se apenas com a desgraça.
– Vamos. – ordenou Pavel, subindo rapidamente.
– Espera. O garoto vai na frente.
– Por que eu?
– Não pergunte.
O soldado atravessou a escada a passos apreensivos e, antes de empurrar a porta, voltou um olhar hesitante ao sargento que se limitou a responder lacônico:
– Apenas abra.