A Esquerda da Justiça
Todas as vezes que eu passo por uma representação da justiça, a ironia rasga meu rosto. “A justiça é cega”, eu adoro essas interpretações. As releituras são ainda mais fantásticas – e no fim, a maioria dos humanos esquece a figura clássica, que tinha por objetivo traduzir uma idéia em imagem, e não fantasiar seguindo um conceito de arte.
É uma mulher vendada, muito concentrada, que trás na mão direita uma balança e na esquerda uma espada.
A balança não faz parte de meus domínios. Basta saber que para ela existe apenas um peso e uma medida. O que acontece depois faz parte de meu serviço. Eu sou o golpe, a lâmina afiada na mão esquerda da Dama Vendada. Tão imparcial e precisa quanto a sua balança.
E justamente por isso me surpreendo tanto quando as pessoas oram por justiça. Se fossem mais francas e menos românticas orariam por ajuda, por paz, por vingança. Se levassem a justiça mais a sério, não haveria um sem numero de códigos diferentes, e principalmente, não fariam distinções.
Mas isso só é importante para mim porque entra em meu campo de trabalho, minha jurisdição, como diriam alguns. Eu sou uma das crias da justiça, filho legítimo da Dama. Uma das muitas. E quando minha mãe viu a maturidade preencher meus olhos, colocou-me sentada em seus joelhos e pintou de azul uma lágrima sob meu olho esquerdo. Deu-me uma clava, uma pena e sua benção.
“Bem amada, é você que irá executará as determinações sobre aqueles que usarem Meu nome.”
Sou eu quem gratifica e pune aqueles que usam o nome de minha mãe. Claro, a maioria das pessoas acha que sou eu quem salva o pai de família da forca quando este rouba um pão. Tolo engano.
Eu sou aquela que infecta o corpo de um juiz que absolve o culpado, que introduz a infelicidade na vida daquele que se vale da mentira para defender o réu. Sou eu quem atraio a desgraça para a vida do ser que ousar chamar de justiça qualquer ato que manche o nome da minha mãe. Para o bem, ou para o mal.
Mas não faça mal julgamento de mim. Não se atreva.
E se isto ajudá-lo, sou eu quem dá forças ao justo, quem conforta ta os obstinados, quem faz reverberar os feitos corretos. Você acha isso pouco? Sou eu quem propaga a confiança. Mas é claro. Confiança.
Você deixaria seu dinheiro na mão de quem, em nome de um bem maior, pudesse distribuí-lo segundo suas próprias idéias de igualdade? Acreditaria em quem mente em nome do bem e da paz? Seguiria os ideais daqueles que quebram as próprias regras?
Confiança se baseia num único preceito: um peso, uma medida. Sem exceções.
Mas como eu já disse, eu adoro interpretações. Acho-as interessantíssimas, pois seus donos crêem que sua visão dos fatos tende a assumir o papel de verdade. E assim, povos criam sistemas e códigos de leis distintos, muitas vezes divergentes. Veja só, existem culturas que aceitam punição física, mutilação e morte como sistema de punição, contudo outras acreditam que um ato criminoso não da o direito a sociedade de punir o réu com violência crua. Eles preferem enclausurar o ser, violentando sua mente com jaulas e exclusão. E é claro, há quem lute pelos direitos daqueles que infligiram as leis da sociedade. É uma desordem tão louca, que muitos clamam pelo direito dos assassinos esquecendo-se do direito de seus pares de viver sem medo. Premiam infratores em vez de puni-los.
Mas não sou eu quem ira corrigir este caos. Tão pouco nasci para isto. Aqueles ao lado direto da minha mãe o fariam com propriedade, e apenas alguns.
Como executora, outras das coisas que aguçam minha curiosidade é a falta de bom senso. Como alguém pode crer que seus atos não terão resultados? Que os efeitos não afetarão seu entorno? Como um homem pode agredir outro e não esperar uma ação em retorno – ou surpreender-se com as conseqüências? É como uma mulher que se envolve com um homem infiel e espera fidelidade. Que coloca o filho de um mal caráter no ventre e sonha que este cumprirá com as responsabilidades que ela julga serem do pai.
Você pensa que apenas os humanos sofrem esse desajuste de valores? Apenas eles fantasiam interpretações absurdas?
Mas bem, tudo isso torna meu trabalho, como direi, variado. Nunca sinto tédio, pois cada caso é único, embora o cerne seja sempre o mesmo. Veja, é como contar a história da chapeuzinho vermelho de formas diferentes. Era uma vez uma menininha vestida de capa vermelha, que desobedeceu os pais, encontrou um lobo, e quase foi devorada por ele. Era uma vez uma menina de boné vermelho que não seguiu as leis da cidade, passou por um local proibido, encontrou um estuprador e quase foi violada por ele. Era uma vez uma senhora com um chalé vermelho que desafiou o marido, saiu de casa e encontrou com o sogro, que ultrajado quase a devolveu para a família. Eu poderia fazer isso o dia todo. Semelhança não indica paridade, e nem mesmo gêmeos idênticos tem vidas e sentimentos iguais.
E ao contrário do que muitos acreditam, para cada caso uma ação. É claro, ou justiça não seria justiça. Obviamente o pai que rouba um pão por necessidade e um rapaz viciado que rouba para comprar drogas não são iguais. Veja bem, podem ser similares – infrigiram a regra movidos por uma necessidade, mas por motivos diferentes, e provavelmente de maneiras diferentes. Não há justiça em colocar um ganancioso ladrão de colarinho branco ao lado da criança que roubou um calçado, porque não tinha o que colocar no pé. Mas ambos serão punidos, cada qual em sua esfera. Então o advogado que mente para salvar o inocente não recebe o mesmo tratamento que aquele que engana juiz e jurados para livrar o culpado.
Se todos tem o direito de defesa? Claro. Mas defender um assassino não significa eximi-lo de culpa.
E porque eu estou lhe contando tudo isso? Porque essa é minha punição para você, meu caro. Saber da minha existência. Saber que daqui por diante você pode esperar as ações da minha clava e minha pena, lembrar-se de acontecimentos passados e meditar sobre sua responsabilidade por muitos deles. Precisamente. Sua responsabilidade e não minha. Eu sou apenas a executora, cumprindo meu papel. E veja só, este é um dos meus trabalhos mais interessantes, porque saber de minha existência também é uma gratificação. Doravante, saberá exatamente o que lhe aguarda cada vez que colocar o nome de minha mãe em suas palavras. Saberá que a justiça também é recompensada.
E creio que para você, que até alguns momentos atrás era certamente crédulo de que seu mundinho era a única realidade, uma das formas de premiação e ter muitas certezas para descartar e crenças para renovar.
Se existe inferno? Ora ora, tem medo de ir para lá?