Aurora

Se todas as coisas tem um lugar? Tem, mas creio que não é essa a pergunta certa, rapaz. Experimente esta – todas as coisas tem um único lugar?

Você se sente deslocado não é? Eu também. Esta não é a terra onde cresceu, embora eu saiba que seu lar não seja um lugar onde você tenha se ajustado.

Não se preocupe, você não é o único a ter essa sensação.

Mas enquanto nossa estada nessa cidade não termina, deixe-me lhe contar uma estória.

Por gerações os humanos sussurraram histórias sobre nós – seres do mundo encantado – a quem eles chamam genericamente de fadas e duendes. Acreditavam que nós, “pequenos seres”, os visitavam, e nos atribuíam alguns acontecimentos em suas vidas. É claro que muitos eram pura invenção, contudo outros...

Sim, um deles é exatamente este. Às vezes uma mãe do reino encantado perde seu filho, e querendo aplacar a dor, desliza para dentro da casa de outra mãe para trocar seu bebê morto. Muitas vezes um bebê humano.

Claro que nem todos os bebês humanos que amanhecem mortos são obra de nossos pares. Acredite, a maioria de nós tem ciência de que além da vida curta, humanos são essencialmente diferentes. Eles se encantam por alavancas, números e eletricidade.

Se eu vou lhe contar a estória de um humano adotado por uma fada? Oh, não, mas não queria saber o meio antes do começo. Venha, vamos andar. Porque? Porque gosto de andar, às vezes acho que fico mais solto enquanto ando.

Ahn? Não, está é do tipo real. Tanto é real que eu mesmo faço parte dela.

Ora não ria, não há heroísmos, nem nada do tipo, na realidade eu...

Porque quero lhe contar? Porque é uma boa estória.

***

Nola, vivia as bordas da Terra do Verão, um dos muitos reinos que habitam nosso povo. Residia numa casa construída entre duas macieiras as bordas de um lago que espelhava o mundo dos humanos.

Ela gostava de lá, porque naquele lago haviam cisnes. E Nola sempre gostou de branco. Então ela tecia sonhos, sentada numa pedra a beira do lago, olhando os cisnes do outro lado.

Naquela época Nola já havia perdido dezessete filhos, e ninguém conseguia crer que tentaria uma décima oitava vez. Nem ela, nem o atual companheiro. Ela já havia deixado outros consortes, na esperança de que seu ventre aceitasse outras sementes. E sua dor se recusava a aceitar que talvez ela pudesse ser uma árvore dessas que nunca da frutos.

Foi assim que naquele verão ela caminhou pela floresta, para pedir permissão para os pequenos espíritos da floresta para mais uma vez retirar madeira nova das árvores, para construir um novo berço. Não havia traço da gravidez em sua silhueta, mas ela sabia. Não havia como não saber.

E os primeiros botões da primavera acompanharam o nascimento de uma menininha, e ela lembrou-se com alguma dor que era a sexta filha que tivera. Respirava e era bom sinal, pois apenas quatro crianças o fizeram. Nola não queria dormir, não queria comer, e vigiava a filha, com uma aflição eufórica. Coen, o pai desta e de outros dois filhos de Nola observava preocupado e resignado. Ele, que já tinha filhos, não sentia que precisava de mais um para sentir-se inteiro. Aquela seria bem vinda se sobrevivesse, mas amava a mulher independente da prole. A amaria de qualquer maneira, mesmo que não tivesse os cabelos ruivos que tanto gostava, mesmo que fosse mais gorda ou mais magra. Amaria a filha também, que a mãe chamou de Gwen, pois era branca como um cisne.

Nola andava cantando pela casa, agradecendo aos Deuses pela filha branca. Com o sorriso angustiado e os olhos vigilantes. Mas até uma fada precisa dormir, e quando no dia seguinte a mulher viu a pequena inerte em seu cesto sentiu o mundo partir-se em dois. Eu não consigo mensurar o tamanho da tristeza daquela pobre mulher, mas segundo me contaram, ela não chorou. Sequer suspirou. Embrulhou a filha com todo o cuidado e foi até o lago. A lua, que estivera cheia no dia do nascimento de sua filha agora minguava. A via refletida no reflexo do lado, e seguindo o caminho prateado da Dama Prateada, seguiu o caminho para o mundo dos humanos.

Passou pelos cisnes brancos, e chegou a um pequeno deck aonde havia um barco atracado. Branco. A frente havia uma casa. Branca.

Nola passou pelo gramado, afagou os cães de guarda que dormiam junto a casa, seus conhecidos, e parou frente a paredes estranhas, translúcidas, como cristal. Exatamente rapaz, vidro. Eram de vidro. Como uma sombra, passou por elas também, sabotando magicamente o mecanismo que as mantinham fechadas – sim sim, muitas alavancas.

Sabe, Nola já havia sentido o cheiro. Do leite. Ela soube por todo outono e inverno que uma mulher humana havia ido morar naquele lugar, que raramente recebia pessoas. Havia ido para lá com duas acompanhantes e uma grande barriga. Penso que ela já havia conjecturado isto, embora não possa afirmar. Mas o fato é que ela sabia que havia uma criança ali. Alguns dias mais velha que a sua.

E no dia seguinte, Coen não fez nenhuma pergunta. E só muito tempo depois é que os amigos e a família de ambos souberam que a pequena Gwen nascera com cabelos brancos, e não dourados.

***

Eu só vim a conhecer esta espécie de árvore quando vim para esta terra. Existem ipês de muitas coras, e são arvores curiosas, pois quando florescem deixam o verde para trás, exibindo apenas as flores. Como esta agora. Vê? Nenhuma folha. Quando todas as flores brancas caírem, ela terá apenas galhos, e depois de algum tempo novos brotos vão romper a casca. Por um curto período você pode crer que a árvore esta morta, mas ela esta muito, muito viva.

E no mundo dos humanos, a mãe da pequena criança loira acordaria com os gritos das criadas. Que não queriam tocar a menina deitada no Moises, pois acreditavam que algum mal, alguma doença, alguma coisa muito ruim havia branqueado os cabelos daquele bebe. Pelo telefone, o pai da criança dissera para sua esposa histérica, que era apenas o cabelo, que era tão ralo e fino, que ela poderiam estar se confundindo. Que ninguém poderia ter entrado naquela chácara para simplesmente trocar bebes. A mulher argumentou que as portas estiveram abertas, mas os cães jamais deixariam um estranho entrar. E que ser humano se arriscaria pela propriedade, entraria dentro da casa, ignoraria o que ali havia de valor e levaria uma criança? Ou melhor, trocaria uma criança.

O pai, que estivera viajando por seis meses, e ainda mais dois estaria fora, não acreditava em tal possibilidade, por isso, energicamente bronqueou as empregadas por colaborarem com os delírios da mulher, e gentilmente disse a esposa que voltaria mais cedo antes para ampará-la. Chegou quatro dias depois seguido por um psiquiatra, uma enfermeira e boa parte da ala feminina da família da moça – a mãe e as irmãs mais novas da esposa.

De fato, o cabelo era branco. Diferente do grisalho dos velhos, era branco como uma flor, de uma maneira que poderia ser completamente natural aquele bebe, salvo o fato que humanos não possuem naturalmente cabelos brancos.

-Vê querida, tem olhos azuis, exatamente como me falou.

Mas a mãe jamais poderia se enganada. As desculpas dos médicos, a justificativa do marido, as palavras da família, nada poderia apaziguar o coração daquela mulher. E devagarzinho, ainda que a criança lhe sorrisse e tomasse seu leite com grande satisfação, foi desgostando daquele bebe.

E quando Gwen, que agora atendia por Aurora, completou supostos quatro anos de idade, a mãe foi embora, acompanhada de outro homem, carregando seu filho na barriga.

Simplesmente foi embora. Sem se despedir, sem olhar pra trás.

E por anos a pequena se culpou, em silêncio. Soube desde o primeiro dia - embora o pai dissesse primeiro que mãe tivesse viajado, depois adoecido e por fim morrido - que a mulher havia ido embora. Fácil assim.

E no reino das Fadas, Aurora, que seguia Nola por todos os cantos e sorria ao ser chamada de Gwen, sequer suspeitava do que acontecia no reino que o lago refletia. E ela, como sua mãe fada, adorava os cines.

***

Como você deve ter adivinhado, quem vive nessa casa é a menina Aurora de cabelos brancos, que já deveria ser uma mulher pelas contas do pai, mas do alto de seus vinte e nove anos de vida, ainda parece ser uma menininha no começo de seus vinte. Mal sabe ele que ela envelheceu um tanto rápido para os padrões de nossa raça, mas esse é o toque do mundo dos humanos sobre seu ser.

Quando eu a conheci, ela tinha pouco mais de dezoito anos, e se questionava do porque seu corpo não desabrochar para as formas da maturidade, como o de muitas de suas amigas e colegas. Alguns humanos são assim, “encorpam”, como já ouvi falarem, mais tarde, ou mais cedo, dependendo de alguns. Contudo ela tinha inconfundíveis sinais de infantilidade nas formas do rosto, e como muitos jovens, apresentava sinais de deslocamento.

Devo dizer meu jovem, que nunca ouvi falar de um caso como o dela, em que uma pequena fada é posta no mundo dos humanos. É fato que muitos de nós vem pra cá, por opção, ou como no seu caso, obrigação, mas é a primeira vez que se ouviu falar em bebê criado aqui.

Quando eu a vi pela primeira vez, havia vindo para este lugar com o mesmo objetivo que você - para aprender do que os sonhos dos humanos são feitos. Sabe, por muito tempo eu quis ter o dom das mulheres de sentir, simplesmente saber. Depois descobri que essa estada obrigatória neste reino é algo especial. E que nós, homens, não tento a mesma intuição e sensibilidade que nossas mulheres, temos a oportunidade de aprender muito mais. Talvez por isso, os grandes artesãos, aqueles que enviam tecem os sonhos dos cientistas humanos, dos escritores, dos arquitetos, sejam nós, os homens. Pois nós vivemos aqui e experimentamos a humanidade. Sentimos os sabores de seus anseios e ambições, e provamos de suas histórias. Você não acha? Bem, vai poder julgar por si mesmo quando deixar esta terra. Enquanto o preparo para ficar aqui por conta própria, preste atenção.

Quando a vi pela primeira vez... se eu reconheci? Sabe, eu creio que sim. Na verdade, eu tive certeza de que era uma fada, mas no instante seguinte achei que não. Eu acenei, sabe? E coloquei a mão sobre o peito, inclinando-me para frente, como todo homem do nosso povo deve fazer ao ver uma mulher, contudo, ela simplesmente olhou para o lado. Achou que ficou sem graça, ou talvez com medo, nunca perguntei. Mas ela evitou olhar na minha direção então, e ao vê-la deixar o terminal de ônibus – sim, um terminal de ônibus – acompanhada de outras moças, pensei ter me equivocado. No instante seguinte percebi que ela, como as outras moças estavam usando trajes iguais – levo você para ver, são trajes que usam para executar treinos esportivos em algumas ocasiões – e bem, não sei porque, mas ela parecia tão igual a outras. Sim, era diferente, mas havia algo muito humano nela.

Não, ainda iria demorar um tempo para que eu a abordasse.

Por um ano inteiro, eu a encontrava esporadicamente naquele mesmo lugar. Como deve suspeitar, os humanos me tomam por um menino de doze anos. Ou treze. Eu sou mais velho que ela, embora a experiência de Aurora dissesse que eu sou mais novo.

Mas como ia dizendo, um ano depois ela tropeçou em mim. Eu estava lendo um livro distraído, andando rente a rua. Quando passei perto do ponto, mal notei o ônibus que havia encostado. Ela e mais duas moças desceram rápido, apressadas devido um atraso e eu estava no caminho. Uma delas aos gritos me perguntou se eu não olhava por onde andava mas Aurora e a outras garota me ergueram. Meu cotovelo esquerdo sangrava, e todo o braço estava ralado. Eu sentia dor, mas a garota fada havia aterrissado em cima de mim. E por todo o ano, todas as vezes que nos encontramos, exceto aquela, eu havia observado-a, curioso – por vezes eu podia jurar que uma humana. Outras vezes achava que era uma fada, mas eu nunca havia tido coragem de abordá-la. Veja bem, sempre que ela me percebia, me ignorava e é engraçado, mas quando somos deliberadamente ignorados, percebemos.

Quando perguntei o porque dela me evitar, um tempo depois, contou-me que tinha vergonha, que o pai havia ensinado a não “dar bola” para estranhos na rua. Bem, eu não tinha uma desculpa assim - nada na minha criação me impedia de parar a frente dela e dizer "oi". Talvez ainda não fosse a hora de conversamos.

Mas nesse dia, enquanto pressionava um lenço de papel contra meu cotovelo – e depois quando tirava restos do lencinho que ficaram grudados na pele devido ao sangue – ela se apresentou.

Aurora.

"Bonito nome".

Engraçado, eu tinha muitas perguntas pra ela, quer dizer, muitas perguntas sobre ela, mas foi tudo o que eu disse. E quando ela se despediu, eu me despedi também, a moda de nosso povo, e ela riu. Ela e as amigas. Devem ter achado que eu estava encenando algo para impressioná-las, eu nunca perguntei do que ela achou graça. Porque eu fiz a reverência? Ora, porque eu não faria? Veja bem, não tive tempo de pensar nas minhas dúvidas naquela hora, ela simplesmente era uma fada.

E nos cumprimentávamos, quando nos víamos, até o dia que ela veio perguntar meu nome.

“Não perguntei daquela vez”, e em seguida me deu a mão. Eu já havia aprendido isso, então apertei a mão que ela estendeu e sorri. Ela achou Nolan um nome bem incomum, apesar de ter comentado que nunca havia encontrado outra Aurora. Estava sozinha naquele dia, vestida casualmente.

“Vou encontrar minha mãe hoje” ela disse desanimada. Aurora ansiava pelas visitas que faria a mãe, mas sempre sentia-se melancólica. Depois de alguns anos a mulher resolveu comunicar-se com ela de novo, mas o abandono, a culpa e o estranhamento fizeram aquela senhora criar um muro muito alto entre ela e a Aurora. Não posso dizer que a mulher não a ame, mas creio que não consiga se permitir chegar perto. Aurora por sua vez sentesse mal com esse distanciamento, pois ela sabe que fora a mãe que dera o primeiro passo para voltar a vê-la, mas sentia-a tensa e nervosa toda vez que abria a porta para recebe-la em casa. E Aurora me disse que a mãe parecia aliviada quando se despedia.

“Ela não é obrigada a me ver, sabe?” comentou depois de algum tempo que nos conhecíamos, mas naquela ocasião apenas me disse que queria ver muito seu irmãozinho. Aquele que a mãe teve com o homem com quem foi embora. O conhecia à apenas dois anos, mas dizia, que era um menino muito bom, que gostava de futebol como ela.

Sim, ela gosta de futebol. Você se lembra quando lhe mostrei varias pessoas vestidas com camisas semelhantes... isso mesmo, a “torcida organizada”. Eles gostam de sonhos bem peculiares.

Uhn? Como tive certeza de que ela é uma fada? Até mesmo em historias cada coisa tem sua hora.

Mas onde eu estava... a sim, futebol. Eu quase sempre a encontrava de uniforme de treinos, mas não, não naquele dia. Naquele dia ela me perguntou o que eu estava fazendo ali, e eu disse que ia estudar. Na verdade eu estava estudando. Não lhe disse ainda, mas estações de trens, metrôs e ônibus são ótimos lugares para observar os humanos. Sabe, há todo tipo de pessoa ali, com todos os tipos de gostos, e elas passam por você concentradas em suas vidas. As vezes você pode se interessar por um em especial e segui-lo até seu destino, e enquanto isso ir espiando seus pensamentos atrás do que ele tem sonhado.

Devagar eu fui conhecendo ela. Naquele terminal de ônibus. Soube que ela trabalhava numa floricultura meio período, que estudava quase todos os dias para o vestibular – vestibular? É uma prova, um método de admissão em uma escola para ensino avançado. Chamam isso de faculdade, posso levar você em algumas públicas.

Ela estudava para a faculdade de arquitetura, que foi o mais próximo de artes que seu pai a permitiu chegar. Veja bem, na visão dos humanos ele é um homem muito bem sucedido, e de acordo com sua própria visão, artes não dão futuro para ninguém no país em que nos encontramos.

Eu também acho uma pena. Mas para eles sucesso tem a ver com dinheiro, então para o homem não importa todas as noites infelizes que ele passou em seu escritório de advocacia, fazendo coisas que em seu íntimo suspeitava não estarem corretas, insatisfeito. O que importa é que ele tinha um carro caro, sua filha estudava em uma escola conceituada. Ah sim, estudos são importantes, mas acredite, metade dos colegas de classe dela não aprenderam nada, simplesmente porque não queriam estudar. Ah sim, como nós, eles todos são obrigados a aprender algo. Então não fique tão infeliz.

Mas voltando a estória, eu fui conhecendo Aurora aos poucos. Soube que ela tinha animais em casa. Que ela gostava especialmente de coelhos, mas tinha toda a sorte de bichos. A maioria deles ela havia encontrado. Outros havia ganhado. Ela contava com uma empregada para deixá-los todos “em ordem” e passava um bom tempo com eles enquanto estudava. Gostava de sentar-se no quintal de casa e estudar.

Então, um dia, eu resolvi segui-la. A dias eu sabia que ônibus ela tomava para ir até sua casa, então um dia eu estava simplesmente na fila do mesmo. Chamei por ela, para que ficasse para o meu lado.

“Para onde vai?” perguntou-me. “Ver uma amiga” respondi. Não gosto muito de contar mentiras, e quando ela quis saber mais sobre essa amiga, eu respondi que era a primeira vez que eu ia a casa dela, e que de certa forma ela era da minha família. Creio que este úultimo comentário deve ter exorcizado qualquer pensamento sobre eu estar indo aonde ela ia ou qualquer coisa do gênero. Veja bem, eu não era nada dela além de um conhecido, além do mais sou bem diferente. Fisicamente quero dizer – pele morena, olhos amarelos e cabelo encaracolado e negro são bem diferentes de toda aquela brancura.

Desci um ponto depois do dela, e ela já havia me contado que morava próxima ao ponto. Principalmente, que havia um Ipê branco. Minha sorte é quando ela mencionara que não demorava muito para chegar ao ponto não era algo como setecentos metros e sim duzentos – pouco mais de um quarteirão e meio. Sim, na época ela já morava nesta casa. Veja, este é um local da cidade onde você vai perceber que todas as casas são grandes e tem um espaço para o jardim. Mas por se tratar de uma casa de esquina, o jardim passa pela frente e se estende pela lateral direita, e se você olhar bem, vai perceber que quase não há piso, há apenas poucas pedras que fazer o caminho até a casa, e que somente na garagem há ladrilhos.

Eu esperei até a noite para pular as grades que circulam a casa e aterrissar no gramado, logo em cima das flores. Juro que tentei tomar cuidado, foi uma fatalidade. Como você Passei pelo cachorro, na época um filhote de meses, sussurrando o nome que eu já conhecia “Fique quietinho Jasão” disse “só vou visitar a menina” e então entrei para a casa.

Estavam todos dormindo.

Subi a escadas com cuidado, tomando cuidado pra não tropeçar nos degraus, e quando ganhei o andar de cima parei para olhar em volta. Mal podia ver as paredes a minha volta. Não dava para arriscar acender uma das lâmpadas do corredor, então recorri a um velho truque que aprendi com meu avô.

Exatamente. Luz de fada.

Aquela bolinha luminosa, que se assemelha ao longe a um vaga-lume. Consigo fazer a minha ficar do tamanho de um ovo de pato, mas tão grande seria a mesma coisa que acender a luzes, então desta vez emprestei energia a ela para que ficasse do tamanho de um dedal. Haviam três portas. Então fiquei com medo. E se eu tivesse entrado na casa errada? O cachorro era o certo – um filhote de são bernardo chamado Jasão. Ao menos ele respondera ao nome. A casa tinha um ipê branco. Cruzei com os coelhos. Com o jardim colorido. Mas era possível, quer dizer, havia uma chance mínima de haver outra garota-que-tivesse-um-ipê-branco-coelhos-e-um-filhote-babão-chamado-Jasão.

Deixei a sorte escolher uma porta.

Havia uma mesa de madeira, com livros em cima, cadernos, estantes com livros um tapete e um gato manco dormindo sobre a cadeira.

Porta errada.

Mais uma. Bem, eu poderia ter dado de cara com o pai de Aurora, mas ela era mesma. Resmungou um pouco por conta da luz e virou-se na cama. Prendi a respiração.

Cobri a bolinha de luz com as mãos e cheguei perto, sem prestar atenção nos meus arredores. Tropecei em um chinelo e quase cai em cima dela.

Sim, veja, eu estava nervoso. Eu já havia entrado em outros quartos, espiados outras pessoas, mas eu não queria ser descoberto de jeito nenhum dessa vez. Porque se fosse, sem dúvidas teria de apagar a memória dela. E a não ser que você seja um mestre na arte de bolir com a mente humana, nunca da certo apagar um fato. Sempre esquecemos uma ponta solta, e essa ponta um dia vai fazer a memória voltar. Problemas, só problemas.

Então, naquele segundo em que eu tropecei, já pensei que iria acordá-la e que teria que apagar toda a memória dela sobre mim. Um exagero, entenda, eu estava nervoso.

Mas consegui me equilibrar, nem me lembro bem como.

Depois de respirar fundo algumas vezes eu olhei pra dentro da cabeça dela, procurando por sonhos.

E foi ai que eu soube que ela era uma fada.

Exatamente, meu caro, não havia nada. Apenas humanos podem sonhar.

O que aconteceu? Ora, nada. O que você faria no meu lugar?

Ah claro, você acordaria ela, e lhe diria quem ela era. Tem certeza?

Bem, eu fiquei ali, olhando, sem a mínima idéia do que fazer com a minha descoberta. Eu tinha essa opção sabe, dizer que a havia seguido, entrado sorrateiramente no seu quarto, mas qualquer pessoa de bom senso sabe que ela teria gritado, ou ficado apavorada, ou qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse escutar o ser que estava ali, invadindo propriedade alheia.

Fui embora. O que mais havia para ser feito?

Por semanas eu ruminei essa novidade, e por semanas eu não a vi. Coisas do destino. Foi a minha sorte, creio que eu teria gaguejado idiotices para a garota se a encontrasse.

Uhn? Não, eu não me apaixonei por ela, nem ela por mim. Não estou narrando uma fábula de cavalaria.

Um mês depois eu fiz de tudo para me encontrar com ela, dava plantões naquele terminal, incansável.

Quando a revi, meu estomago revirou. Nesse exato momento eu me perguntei porque diabos eu contaria a ela. Aurora acreditava que seu pai era seu pai, sua mãe era sua mãe, e o mundo dos humanos era sua única realidade.

Foi a conversa mais estranha que tive em toda a minha vida. O tema não saiu do corriqueiro, mas eu me sentia virado do avesso.

E quando tive de voltar para nosso mundo, bem, pode imaginar como eu me senti covarde, não pode. Não contei a ela, e comecei a ter medo por ela. É medo.

Pode imaginar o que algumas pessoas da corte fariam se soubessem que há uma fada entre os humanos?

Toda aquela vida pacata, que ok, não era perfeita, mas que ela gostava – seu pai, seu cachorro, os coelhos, o Ipê – poderiam ser tiradas dela, ao passo que ela própria fatalmente se transformaria em fonte de assuntos em nosso reino. As pessoas apontariam o dedo e cochichariam, tentariam incluí-la em nossa sociedade ao mesmo tempo que a excluiriam de qualquer atividade importante. Você pode imaginar?

Ah, sim, e como eu soube de onde ela veio? Ah você quer saber como eu descobri sobre Nola e Coen? Muito bom. Depois de todas essas perguntas, achei que não faria a mais importante.

Por Coen, o marido de Nola. Ah, sim, exatamente. Ele sabia.

Compreenda, depois de conhecê-lo descobri que ele é um bom homem, apesar de ter cometido alguns erros.

Como pai, ele sentiu a perda da filha, mas permaneceu em silêncio por causa da companheira. Creio que eu faria o mesmo. Quando a pequena criança humana cresceu, e nossos pares notaram que se tratava de uma troca – e antes que a criança descobrisse de forma traumatica, contaram a ela da "adoção" – Gwen começou a perguntar coisas do lugar de onde vinha.

Nola não quis contar a criança sobre a casa, sobre o mundo dos humanos sim, mas nunca sobre o exato lugar de onde a tirara. Contudo, quando Coen perguntou, não encontrou motivo ou justificativa para esconder dele.

Então Coen atravessou para o mundo dos humanos encontrou a casa branca desabitada. Entretando, pelo lugar haviam porta retratos, e ele pode ver, através de poucas fotos espalhadas aqui e ali, sua filha. Quando era bebê com o pai, aos dois anos com um coelho, aos quatro de maiô perto do lago, aos sete trepada num banco, suja de farinha, tentando fazer algo para comer – um bolo? É a minha aposta.

Como eu, ele não contou a Aurora a verdade - a verdade sobre quem ela era e de onde vinha. Nem a ela, nem a Nola.

Nem a ninguém.

Como eu, teve os mesmos temores. Ou bem, a maioria deles, e alguns bem incrementados pela preocupação patriarcal.

Anos a fio visitando a filha em segredo. Anos.

Eu não teria tido a mesma fibra – e gosto de acreditar que no lugar dele teria tido coragem para me aproximar.

Coen diz que me viu, um dia, quando acompanhava a filha de longe. Observou nossa conversa fora de nossas vistas, muito aflito.

Sabe, às vezes eu acho que ele tinha esperanças de que eu contasse a ela. Lhe dissesse tudo o que ele mesmo não dissera por anos, fosse o causador do caos, aquele que lhe revelaria sua origem.

É, o caos. Porque? Você consegue imaginar seu mundo virado de pernas pro ar? Acredite, a sensação é bem pior do que a que você esta sentindo por ter de vir para o mundo dos humanos a contra gosto.

Mas voltando... ela teve o azar de atrair apenas covardes. É o destino.

Quando Coen me procurou, creio que o fez por dois motivos. O primeiro era para se certificar de que eu não revelaria a existência de Aurora a nossos iguais... e o outro bem, ele precisava falar. Desabafar. Precisava que alguém o escutasse, precisava ouvir o que ele mesmo nunca dissera. Não poder falar da filha deve ser um fardo um tanto duro, não acha?

Mas eu não gosto de falar muito disso sabe? É a família dele, e eu não vivo a vida de Coen para dizer ao certo o que ele deve ou não fazer.

Nola? Vive feliz com seus dois filhos. Pois é, um ano depois da pequena Aurora, ela teve outra criança que sobreviveu, e hoje brinca com os sonhos da irmã humana.

Ah sim, Coen ama a filha adotiva, um dos temores dele era que, ao revelar a Nola a verdade, a filha pensasse que ele não a amava - ou pior, que ele tentaria ou almejaria desfazer a troca. Quanto a Aurora? Ele gosta dela. Claro. Mas veja, é um amor empanado pela distância. Não pense mal desse homem. É uma vida complicada a dele.

Nós - eu e ele - ainda visitamos Aurora. Mas apenas a noite, enquanto ela dorme. Eu aprendi que não posso lhe dar sonhos, mas ela dorme mais feliz quando escuta grilos, então eu os reúno próximo da janela dela para cantarem. Roubo seus livros e os devolvo depois de lê-los. Conserto seus ursinhos de pelúcia velhos e as bonecas da infância. Brinco com os animais. Ajudo suas plantas a crescerem. Escondo doces pelo seu quarto, deixo flores secas em seus cadernos. E as vezes roubo frutas da cozinha.

E não, não conversamos mais. Se quisesse guardar segredo, teria de “dizer adeus” um dia. Porque como ela, eu não envelheço como um humano.

Exatamente meu caro, essa é a história. Sem heroísmos, sem cavaleiros, sem finais. Exatamente rapaz, não há um fim.

Eu lhe contei essa história por dois motivos. Um deles, o óbvio, é para que você entenda que não há um lugar certo para ninguém, qualquer lugar é lugar, desde que você queira fazer parte dele. Um sem número de vezes eu percebia que ela sentia como se alguma coisa não encaixa-se. Sabe, Aurora acredita em vidas passadas, espíritos, destino, e essas coisas. Usava isso pra justificar alguma estranheza que sentia vez ou outra. Usando as palavras dela “É como se eu fosse meio estrangeira. Mas bem, quantos imigrantes – e filhos de imigrantes – não vivem aqui, não é?”. É, ela não deixa de ser, de certa forma, uma imigrante também.

Talvez seja a juventude, e ela simplesmente queira deixar seu espírito jovem ser livre. Talvez seja a fada dentro dela. Ou talvez não seja nada disso...

E bem, o segundo motivo, menos óbvio, é que você tem coragem. Ou parece ter. É a vida não é justa de fato, veja só, você nem de longe tem a sutileza necessária, mas...

Ah não, não estou empurrando para você o papel de “portador do caos de minha vida”, eu já empurrei.

Sabe, me xingar não vai ajudar. É claro, você pode simplesmente não fazer nada.

Eu não vou lhe chamar de covarde. Não em voz alta.

Vê, se não fosse tão impulsivo, eu não precisaria ter feito isso. Esta doendo?

Ora, então fique com a sua dor.

Mas deixe-me contar apenas mais uma coisa. O pai da jovem Aurora esta morrendo. Ela não sabe, e duvido que ele vá lhe falar até... bem, até ser impossível esconder.

Sim, eu sei o que é, é câncer.

Como sei? Ora, devo dizer que o pai humano dela não escapa da minha curiosidade. Eu sei que ele tem uma namorada que dificilmente trás em casa. Eu vi os documentos que ele preparou, o testamento que providenciou com um desses advogados a um mês, o coelho que ele escolheu ainda ontem para dar para ela de aniversário semana que vem.

Ele ora para sobreviver à doença, e mais, ele pede a Deus para não deixar a filha só. Ele quer viver por ele e por ela, porque não há avós para Aurora, apenas tios distantes.

Eu posso realizar apenas um dos desejos dele, mas eu não faria isso agora. Exatamente. Eu tenho medo. Eu tenho medo do caos, e mais, eu tenho medo do que ela vai pensar de mim.

Talvez ela me odeie. E bem, se ela me odiar, como eu poderei atender ao desejo do pai dela?

É, Coen errou e eu errei. Ou talvez não tenhamos errado, e tenha sido apenas o destino. Esse destino que não quis que nem eu e nem ele fossemos a companhia de Aurora depois que o pai humano dela se for. Ah, claro. Milagres acontecem, e talvez ele viva por muitos anos.

Ah, calma, muitas perguntas! Veja, eu lhe contei uma história, mas a resposta a todas essas questões não estão em meu poder. E mais, quem sente esse “terrível deslocamento” é você, não que companhia? Sabe, serão dois anos cruéis, esses, sem poder retornar ao nosso mundo. Você sabe como sobreviver e até mesmo como viver aqui, mas não sabe como começar. Como eu sei? Acho que todos nós, que somos obrigados a vir, sentimos isso. A diferença é que enquanto uns ficam desesperados, outros ficam excitados. O seu com certeza é o primeiro caso.

É agora? Bem é com você.

Tocar a campainha, ou dar as costas para a casa do ipê branco, ou o que quer que decida fazer, será parte da sua história. Podem ser capítulos inteiros ou apenas algumas linhas que daqui alguns anos você irá ignorar.

Quanto a mim, meus temores permitem apenas que eu cruze os dedos e torça para que o meu destino cruze novamente o de Aurora, mas principalmente, para que o final da história dessa garota inteira branca seja feliz.