Uriel
Uri´el. Veja, não é bem um nome. É mais um posto.
Eu nasci Lia, filha de mãe judia e pai católico. Costumava dizer que era "judólica" quando mais nova, só porque não sabia que religião eu queria seguir. Entenda, aa parte materna da fam+ilia diz que a religião vem da mãe, meu pai acha que por ser ele o chefe da casa, ele quem decide as coisas, então eu encontrei nessa piada uma forma de ser deixada em paz enquanto fugia dos compromissos espirituais. Poxa, e se eu quisesse, sei lá, ser budista?
Antes dos dezesseis, eu sentia como se minha opção religiosa fosse como a opção por um time de futebol, entende? Como se ao optar eu fosse ser a palmeirense do papai, ou a corinthiana da mamãe. Ou qualquer coisa como flaXflu. Ou ainda escolas de samba... havia uma rivalidade em casa, e era como se minha posição fosse... não sei bem, fosse indicador de mais amor por um que por outro - pro "perdedor" eu sempre teria fortalecido o time adversário. Então eu era judólica e São Paulina, veja bem, e colocava a culpa no meu padrinho - de consideração, um amigo de catecismo do meu pai e jura que ainda me batiza - porque quando eu era nova, dizia assim "Lilica, só São Paulinos tomam sorvete de flocos e ganham lego". Da pra adivinhar quais eram as minhas paixões de infancia?
Lego e Flocos. E, ok, eu gosto de vermelho.
Então um dia eu estava voltando da manicure, chinelos de dedo no pé, os dedos da mão bem abertos para não estragar o esmalte - eu era qualquer coisa estranha na rua, desengonçada, olhando cada irregularidade da calçada pra não dar uma topada com meu esmalte novinho - quando relampejou.
Chuva.
Fraca. Daquela chata que gruda e congela a gente.
Em outras circunstâncias, eu teria adorado, tomar banho de chuva é uma das curtições de infancia que trago até hoje, mas a minha unha, eu tinha acabado de fazer. Acelerei o passo de batedeira enquanto os pingos engrossavam e o céu roncava sobre minha cabeça. E os carros não param, você sabe, amo essa capital, ate me orgulho do trânsito de um modo bem peculiar "o trânsito é uma merda, você jamais ficaria preso nele na SUA cidade", mas na chuva os carros não param, e eu precisava muito atravessar.
Então eu estava do outro lado da calçada. Relampejou e eu estava em casa.
Foi assim, besta assim. Tão, sei lá, insignificante, tão ordinário, que eu fiquei em choque.
Quer dizer, quem descobre ser "o relampago celestial", "senhor disso", "anjo daquilo", eteceterás, fugindo de uma chuva porque não quer estragar a unha?
Só eu.
E o que eu vou fazer com isso agora? Eu não sei.
Eu me sinto meio como o Frodo, quando titio chega e diz "olha só, de presente pra você esse anel". Claro, nem todo mundo leu Tolkien, eu posso fazer uma analogia mais simples - imaginem Jesus quando bateram no ombro dele e contaram "Sois o filho de deus e teu carma é ensinar o caminho do amor para essa gente rude".
Me deram uma manga e esqueceram a faca, é como eu me sinto agora.
Por sorte eu não tenho fome.
Ou talvez eu tenha, mas sinto como se fosse fazer uma sugeira tão grande... que sei lá. Pelo menos disseram pro filho do Cara que o que ele tinha que fazer. Eu acho que eu fiquei com o Um anel mesmo.
Pois é, quantas pessoas diriam "do que você esta reclando, tem gente na africa morrendo de fome, tem gente no oriente médio explodindo de graça, tem gente no Brasil que...". É, nunca ninguém me disse isso, mas toda a noita é como se o mundo inteiro gritasse isso pra mim.
Porque quando eu relampejei em casa, fugindo da chuva por causa das unhas, eu me lembrei, ou melhor, tomei consciencia do que sou. Ou o que me habita. Mas na verdade eu sou o que sou, habitando o corpo que recebeu o nome de Lia, e é essa moça que tem medo. Então eu tenho medo. Acho.
Entende?
Se eu tivesse salvo alguém, se eu tivesse atravessado as chamas, se eu tivesse tido uma experiência muito louca tomando aquele chá do Daime, eu teria mais cara de sair refulgindo por ai. É, é lamentavel. As pessoas reclamam porque tem problemas, porque a mãe esta doente, porque o filho usa drogas, porque o chefe pede favores sexuais em troca de estabilidade no trabalho.
Eu resmungo porque não sei o que fazer. Porque eu acho que eu tenho um problema.
E eu tenho um problema. Chama-se covardia.
Inata.
Então eu fico inerte enquanto o mundo treme, enquanto as pessoas se afogam em angustia, enquanto eleitores choram de indignação, enquanto mulheres fogem de becos e estupradores, enquanto crianças são exploradas em faróis.
A mais de dois meses um "desenho estranho" começou a marcar as minhas costas. Quem viu primeiro foi meu irmão, enquanto me ajudava a fechar o ziper de um vestido "Lia, você fez tatuagem de hena e não me mostrou? Ta clarinha já...". Providência divina ahn? Alguns verões da minha vida foram acompanhados por praia e tatuagens de henna e limão.
Eu gaguejei uma desculpa da qual não me lembro, e fugi pro banheiro.
Asas. Um lindo desenho de asas. Não, não desses clássicos, nada de plumas fofinhas. É um padrão estranho, e eu podia associar o desenho a uma daquelas ilustrações que você ve em lojinhas de artigos místicos. Se eu tivesse aprendido a ler hebráico, teria uma pista do que raios acompanha essas asas meio estilizadas, mas não. Eu era judólica, e era preguiçosa. Não tentei aprender as duas e optar peloa melhor, eu tentava ignorar ambas e conversar com Deus a noite.
Se o próximo passo for uma auréola, ou sei lá, androgenia, eu vou ficar de mal com Deus.
Porque eu não sei o que fazer.
Eu não sei se faço medicína ou artes plásticas, não sei se quero continuar escondendo meu corpo do meu namorado, não sei se quero mentir pra todos que "me dei de presente uma tatuagem". Nem sei se quero continuar namorando. Uri´el tem sentimentos, mas não sei se a Lia ainda gosta do Marco.
É, coisas que eu não conseguiria dizer a ninguém. Embora eu ache que um diário é uma péssima maneira de manter meus segredos bem guardados, vale a pena tentar. Eu nem consigo dizer essas coisas em voz alta pra me escutar.
Então eu acho que vou arrebentar minha alma no papel e visitar minhas dúvidas registradas. Quem sabe da certo.
Ah é, hoje é 12/06/2007. Eu preciso ir ao Shooping comprar um presente - tenho que parar de deixar tudo pra última hora. Então é isso ai.
***
Subiu no ônibus uma garota próxima dos vinte anos. Enquanto passava pela catraca escolhia o lugar, ao lado de uma idosa, para sentar, sentido-se agradecida por haver tantas poltronas vagas. Tinha os cabelos muito claros, os olhos muitos azuis, a pele muito branca. O irmão falava que ela reluzia, branca como um frango de geladeira. O cabelo solto, caia pelos ombros liso, e descia ate os meio das costas, fino como véu.
Ia observando o movimento pela janela, alheia a senhora que, a despeito do sacolejo do coletivo, habilmente bordava uma toalha com linha e agulha de crochê.
Carregava uma bolsa grande, de onde tirou uma agenda grossa sem despregar os olhos da rua. Então voltou a atenção para o que estava em sua mão.
Folheou algumas páginas, velhas conhecidas suas e suspirou. Lá fora o ar estalou, reluziu e então rugiu.
- Minha nossa senhora - assustou-se a velha. - Será que vai chover?
Mas o céu estava claro, poucas nuvens espalhavam-se pelo azul, diáfanas.
A moça sorriu.
- Chove bastante agora no fim do ano, né? - comentou a garota, divertida.
Mas não naquele dia.